“O sertão não chama ninguém às claras; mais, porém, se esconde e acena.”
“O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.”
“O sertão é confusão em grande demasiado sossego.”
“O sertão me produziu, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca.”
“Sertão é isto o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.”
“Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada.”
“No sertão, até enterro simples é festa.”
“Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra.”
“Sertão, – se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”
“Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles estão sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas.”
“Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso…”
“O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte.”
“Sempre, nos gerais, é a pobreza, à tristeza. Uma tristeza que até alegra…”
“Sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera.”
“A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro.”
“Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Ali envelhece vento. E os brabos bichos, do fundo dele.”
“Mas nós passávamos, feito flecha, feito fogo, feito faca.”
Trechos de GRANDE SERTÃO VEREDAS, de Guimarães Rosa
”Quem um dia irá dizer Que existe razão Nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer Que não existe razão?” (”Eduardo e Mônica”- Renato Russo)
Outro dia li uma entrevista de Paula Lavigne onde afirmava ”Você viu no dia que o Caetano quis bater papo de Nietzsche e Heidegger comigo? (risos) Eu falei, gente, não dá! Liga para um amigo seu! (risos)’, completava perguntando ”O que não entendem é que é que se eu ficasse babando o Caetano, falando que tudo que ele faz é lindo, sem dar opinião, ele não estaria comigo, né, gente?”… – Refleti sobre as palavras dela (nas palavras dela,né, nas dela) que há homens que preferem certos perfis de mulheres a outros. ”É a vida” – como diria Saramago.
Sentiu um cheiro de mulher fatal nas palavras agressivas que destilava no Face. Gostou daquilo. De madrugada, sem que muitos se apercebessem postou um poema erótico de poeta feminina, ao responder algo postado por ela. Tinha traquejo nessas atividades, em sites de relacionamento. Sempre com picardia, atrás de um nick, mas se insinuando a uma, à outra, quem caísse na rede era peixe. Foi seguindo, na turma do gargarejo, por celular, mesmo quando estava distante, em estradas, viradas, picadas, veredas. Aspergia o sêmen autoritário – mas cabotino de beija-flor – ‘‘quem me quiser que venha ao meu jardim”, chamava pelas borboletas. E dá-lhe imagens de paisagens, versos de poetas consagrados, canções de efeito arrasador. Ele seguia.
Podia-se jurar que era mesmo sincero.
Ela sentiu o cheiro da competição feminina. Gostava de ser a desejada, a solicitada, a engraçada, a rainha da MPB. Entrou naquilo de cabeça. Foi atrás dele ”de véspera”. Entregou-se a ele, mas precisava demonstrar que ‘‘não era bem assim, ninguém é de ninguém, o bom de hoje é que a gente vai, mas no outro dia volta livre, leve e solta”. Era o seu número, companhia na cachaça, nas aleivosias, na iconoclastia genérica, nos disfarces. Mentia às amigas, aos conhecidos, que não tinha nada com ele “O peixe é pro fundo das redes, Segredo é pra quatro paredes”, entretanto em todos os fins de semana varava os céus de avião ao encontro dele em outro estado; em feriados, corriam para os mares do sul da Bahia, de mochila e cuia. Depois, seduziu a família do homem, condição essencial para efetivação no cargo (ele, sempre de quatro por ela, mas sem passar recibo, mentindo para amigos, conhecidos ”mulher tem muitas, fez doce, corro pra outra”).
Ora, ora, direis “E o que vocês têm com isso?” Pois é, sabe que nada. Apenas apreciar os fatos e escrever-se narrativas sobre eles. Aliás, bastante comuns, vulgares, tamanha a sua recorrência, não é mesmo? Aposto e ganho que você conhece outras narrativas semelhantes, alterados apenas tempo, espaço, foco narrativo …
”Instinto de sobrevivência” – me escreveu uma amiga, ao ler a história.
CÉU DE INFÂNCIA Era sol quente era tela vermelha era entardecer de pote de rubro entornado era frescor de contar estrelas era deitar na calçada, na grama, no banco da pracinha era fechar os olhos e ainda ver era fechar os olhos e ainda sentir era fechar os olhos … Ainda é.
AS DUAS MOCINHAS
A moçoila de 16 anos já estava em idade de casar. O pai, fazendeiro de gado leiteiro, iniciava seu plantel, porque entendia mesmo era de milho, de cana, de porcos e de galinhas. Mas era homi de visão e naqueles ano esticava o zóio pras outra empreitada, ah, mas se não; tinha visão, era veiaco e forte na lida. Gostava de se por junto aos camarada tudo e tocá o roçado.
Pensava no combinado da filha única, Maria do Carmo, com o rapaz, mais velho, filho do Zé dos Prados, dono de um colosso de alqueires nos arredor. Tinha planos para acertar o contrato. Tramava uma aproximação da jovem com o Benedito.
Zulmirinha era uma negrinha retinta, magrinha, de olhos claros; quase cor de violeta. Não, num era essa a cor, mas parecia ser. Era diferenciada, risonha, amiga de Maria do Carmo até dizê chega, núúú. Fiel, confidente … daria um braço por ela. Quase irmãs.
Assim, sabente do noivado que se encaminhava, Do Carmo deu de sonhar com o noivo. Sabia que era moreno de sol, o via no cavalo, da janela de casa. Era muito mais velho que ela, tinha seus 22 anos, devia conhecer mulher com as palma das mão; ela, tonta, desassemelhada, haveria de corresponder ao cavaleiro – se interrogava curiosa. Deu de pensar em beijos, mãos, abraços e despedidas da janela. Era o seu homem destinado, o seu homem acertado. Deus fizera os planos, ela agradecia.
Zulmirinha, alcoviteira, queria que ela fosse logo encontrar o moço, ninguém precisaria saber, só elas. Quisesse, ela levaria o recado. Assim já iria ficar sabendo das mão dele, dos abraço dele, dos beijos dele – insuflava paixão na amiga-irmã. Mas Do Carmo era paciente, aguardava, namorava os amanheceres, suspirava em luas cheias e acatava o desejo do pai. A mãe saberia a hora certa do encontro entre eles. Sabia que já o amava e o queria em si.
Já Zulmirinha sabia se fazer de difícil com o caixeirinho da venda lá da vila. Ria pre’le, jogava cunversa pr’ele, rebolava um tantinho ao entrar, ao sair e dava teloguinho c’as mão. Era puro feitiço. Gostava do jogo-de-dá-e-toma. Entendia que Camilo, mestiço em cor e fogo, também apreciava aquelas invencionices. Queria que vinhesse, sem ela dizê pra vim. Queria que desvendasse as senhas, seguisse as pistas e caísse em seus braços. Queria muito.
NA ROTA, UM PORTO Chapéu de aba larga florido vestido de fustão e renda botas de cadarços luvas brancas de seda. Colo branco, rosto pálido, boca rósea Olhar distante jardim florido de rosas, rosas, rosas … Pés de amoras, pitangas, goiabas Perfume de lenha pão bolo café Cavalos nas calçadas, homens de chapéus bengalas, meninos em calças curtas Olhar distante Horizontes perdidos em espaço e tempo.
ASSIM NA TERRA COMO NO CÉU Tempos há de nebulosidades Tempos há em que não se vê nada no céu , nem na terra Tenta-se iluminar os caminhos Tenta-se encontrar as rotas Tenta-se prever os destinos. Tudo é opacidade.
PASSADO PRESENTE, UMA VIAGEM Não me sei poeta não me sei menina não me sei sinhazinha não me sei senhora Não me sei de mais nada. Olho tudo como familiar olho tudo como presente olho tudo como passado ao mesmo tempo, futuro. Não me sei de mais nada. Era um mastro era um tronco era um rogo era um espelho. Não me sei de mais nada. Na viagem, um passado presente.
Daqui onde estive sempre ouço um chamado o pensamento no alto o coração no vale.
Daqui onde estive sempre um recorte de pedra e verdes uma moldura de roxos e verdes uma redoma em esplendor um perfume de incenso e mirra
Em ouro um pecado a ser redimido um perdão sagrado uma contrição insuspeita uma conversa entre sinos de igrejas internas uma oração latejante feito ímã em aço nesse aço que me devora.
GÊNERO: NOVELA
Carmo conhecera Trindade de forma estranha. Como também era estranha a forma pela qual se comunicavam: sinais, riscos no céu, fachos de luz, relâmpagos, trovões, madrugadas despertas, noites silentes, voos de pássaros, colorido de pétalas – era tudo místico, estrangeiro, incomum.
Naquele janeiro de chuvas densas e riscos de desabamentos, Carmo perseguiu o rastro das nuvens, seguiu as veredas e foi dar no século XVIII de sua existência. Era hoje e ao mesmo tempo era ontem. Ontem distante. Tinha casarios, céus, serra, pedras, eiras e beiras Gerais. Era vertigem, delírio, revelação sacra. Era.
Pousou na Pousada de pouca gente. Tudo místico, tudo lírico, tudo sacro. Estaria em sonho? Adentrara em um set de filmagem? O que era aquilo? Chovia, chovia muito. Não parecia haver chance de trégua nas chuvas. Queria seguir o facho de luz, o desenho das nuvens, como de costume. Era tudo névoa, neblina, fumaça …
Ainda assim foi. Cuidadosa no pisar, atenta ao caminhar, zelosa no ser, cheia de perícia no agir. Carmo foi indo. O lirismo jamais experimentado, a fluidez das enxurradas, o canto da chuva nas pedras. No século XVIII de si, seguia.
Pouca gente nas ruas. Temiam chuva, enxurradas, vento e frio? Carmo, não. Aquilo tinha sabor de Amor, gosto de prazer, encanto de semente, tato de flor. Seja como for, seja como flor – suspirava.
Seguiu registrando tudo em retinas molhadas pelas gotas de chuva. O guarda-chuva era para-raio de alegrias. Volta-e-meia saía fora dele, queria beber aquilo gota por gota, sem proteção. Nesse século XVIII tudo era assim. A sombrinha de tecido da sinhazinha protegia era do sol, não da chuva.
Procurava? Procurava Trindade? Procurava pelo quê? Não sabia. E ia. Pés molhados de buscas, pernas geladas de ventos, braços abertos de ouro em pó. Em cada pedra rolada, em cada pedra secular, sentia a presença dele em si. Marcas de um tempo, de um vento, de umas chuvas. Ia. Seguia. Trindade ali. Trindade em si. Em dó, ré, mi, fá, sol, lá, si.
Os sinos da Matriz anunciam o que virá. Os sinos de outra Igreja cantam por quem virá. Carmo persegue tons e cantatas matinais. Olha, porque o céu limpou a serra. Sente perfume de belezas, respira a cor sacra das nuvens. Queima sua pele o sol. Queima sua pele o desejo secular. Segue e espera.
Carmo está com Trindade no ano de 1785. Está em corpos e peles, aqui, ali, em qualquer lugar.
REFÚGIO SECULAR
Quando desavisadamente o céu mineiro quer me ensinar bate forte em mim bate forte na memória do real vivido.
Então fujo Então me escondo Então me deixo dormitar no colo das montanhas nas pedras do penar no alvorecer, no entardecer do desenho das montanhas.
Somos apenas nós elas e eu segredando verdades acolhendo súplicas curando feridas sempre abertas.
Se há alegrias … Tiradentes. Se há tristezas … Tiradentes.
Somos confidentes, secularmente.
AFIRMAÇÕES
Beijo-te a boca porque neste dossel estás Beijo-te a boca porque numa sóbria embriaguez pousas em mim Beijo-te a boca porque és onírico, fugaz e tépido.
Abro-te meus cofres para descobrires registros tênues Abro-te meus cofres para beberes sólidos, líquidos e gasosos Abro-te meus cofres para não indagares sequer um suspiro meu.
Encontro-te pelas manhãs nas curvas de mim Encontro-me pelas tardes no lirismo de meus versos Encontro-te pelas noites apenas para estares.
A série Viagens na bagagem nasceu de uma demanda de grupos do Facebook para se compartilhar fotos de viagens – visto que em tempos de pandemia isso se tornara impossível. Como sempre conecto o que escrevo a uma imagem, a uma canção, resolvi dar voz e vez ao que vi e vivenciei, em viagens, nas minhas criações, e com tudo isso, portanto.
Barba -acena Sobe Desce Venta Queima sol Olha rosas Olha Rua Quinze Olha Escola de Cadetes Olha a Cabana da Mantiqueira Olha as pedras Tropeça Levanta Cai Levanta Olha mais Olha isso aquilo, olha Que Visconde de Barbacena que nada. Que cidade de loucos que nada Que gente boa de tudo! Ah, Barbacena! Acena traz teus filhos todos de volta Que a gente muda esse negócio de política leite com leite Vota de novo Muito bem E reconstrói esse país. Eh, Minas, Eh, Minas !
[…] toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podemos nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precedido o uso das mãos, está no fundamento de toda prática, vinga e se expande, e perpetua, desde que seja justo”. Raduan Nassar, in: Lavoura arcaica. 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982 p. 85-86- 160
O ”TREM DE MISTO”
Naqueles anos, lá por 1950, Dona Conceição fazia viagens de trem entre Antonio Carlos, Barbacena … pela ”Oeste”. Era menina ainda, e lembra. Lembra e conta que gostava de viajar no trem de misto. Quem comprava levava aquilo que comprava no trem de misto. Fosse à Ressaquinha, fosse a ‘‘Antonho Carlos, fosse de onde fosse, pra onde vortasse”.
Em meio à conversa, revela que sabe declamar. Lembra, desde menina, de uns versinhos de cor. E os diz.
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto…
E conversamos toda a noite, enquanto A via-láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas”. – Olavo Bilac, em “Poesias”. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1964.
PRIMOS
“Quero contar sobre meu amor por um primo. Nunca consegui esquecer aquilo, sabe” – contou.
Viveram sempre em cidades diferentes, desde crianças. Passavam férias de verão no mesmo lugar.
Ali, sempre amiguinhos, descobriram-se adolescentes e apaixonados.
Armando – dizia ela – lindos olhos verdes, tímido, um poço dos afetos todos com a prima. Tanto afeto que, uma vez quando ela quebrara a perna, tinham os dois doze anos, cuidara as férias inteirinhas dela, dando-lhe preparação de água, esquentando-a, colocando em outro recipiente água gelada para que ela banhasse várias vezes ao dia a perna e o calcanhar ainda inchados – depois do gesso retirado. Era de uma gentileza que beirava à submissão – contava isso quase sem fôlego.
Ah, mas quem nunca brincou de médico com primas! Eles não. Cuidava dela como de uma flor do campo, frágil, mimosa. Para ela buscava o que fosse necessário, mesmo sem que pedisse. Lembrava Peri e Ceci em O Guarani, tamanha adoração.
Mesmo sozinhos, com todos os hormônios em ebulição, jamais efervesceram paixões neles mesmos. Nem um beijo roubado sequer. Eram primos. Filho de pai, irmão da mãe dela. Jamais poderiam ficar juntos e se casassem e tivessem filhos, como seria?
Que casar nada. Doze anos. Ouvindo oLobo bobo de João Gilberto, disco do primo mais velho, jogando pedrinhas, seis marias, e batalha naval. Férias.
Tempos e tempos se passaram
Ela se casara com seu engenheiro. Ele, com sua vizinha, tendo com esta uma filha. Separara-se, casara-se de novo tenho aí mais dois meninos.
Ela soubera pouco de Armando por mais de duas décadas. Até que voltaram a frequentar os mesmos lugares. O olhar dele sempre o mesmo por ela. Divorciada, livre, sequer demonstrava qualquer intenção para com ele, homem casado, pai de dois filhos então.
Os olhares dele, no entanto, encandearam-se em palavras mais adocicadas, mais atenciosas. Uma balançada geral nela.
Tempos e meses depois, tudo é carnaval na praça principal, onde sempre passavam as férias. Praça da Matriz.
Na barraquinha em que se vendiam bebidas, os dois se esbarraram. Ela já estava ali, bebendo cerveja com parentes e amigos há horas. Ele, pescando. Chegou depois, bem depois de as escolas de samba e blocos terem desfilado.
Sozinho, olhou para ela, que meio ali meio lá na casa dele, recuou.
Anos e anos de tesão reprimido, agora o sabiam mesmo – explicava a mim.
Por que não beijar na boca, rir muito e relembrar o quão tontos sempre haviam sido. Lembrou-se de Mário de Andrade apaixonado por sua impossível prima Luísa e resolveu aceitar aquele desafio por décadas adiado.
Lendo seus pensamentos, Armando puxou-a pelo braço, naquela música “me dá um dinheiro aí”, levou-a para uma calçadinha com jardim e, na frente de quem quisesse ver, beijou-a com três décadas de atraso.
Dali foram se amar como se jamais tivessem se conhecido, mas com uma intimidade tal, que pareciam ter estado juntos por todos aqueles trinta anos também.
“Depois só rezando na Igreja da Matriz uns três padres-nossos e umas três ave-marias, a pedir perdão a Deus pelo sacrilégio cometido. Mas teria sido sacrilégio, o senhor acha?”
REMÉDIO NA ESTAÇÃO
Não me recordo bem se era morena, loira ou ruiva. Sei que tinha um dor de amor nas costas que a fazia se sentar na beiradinha do banquinho e falar meio pra dentro, como se quisesse desistir a qualquer momento.
E o fez por umas três vezes. Vinha, começava, se arrependia e saía rapidamente, descendo as escadas que davam para a rua de baixo. Alguma vez a acompanhei com o olhar, nas outras desisti.
Na quarta vez, iniciou contando que havia amado um único homem em uma cidadezinha. Era forte, jeito de moleque, piadista, que o conhecera no bar em frente à estação. Gostava de ir ali comer qualquer coisa porque sempre apanhava uma história ou outra descida do trem com os passageiros. Assim teria o que contar mais tarde, no pensionato, às colegas de quarto, após o jantar.
Lembrou que vez ou outra faltava energia, e, ficarem ali à luz de velas era excitante … enchiam-lhe de prazer as histórias das colegas, muito mais experientes que ela, nascida e criada na zona rural da cidade mais distante daquele estado. Nem trem parava por lá. Trem para ela… novidade e tanto. Rita era calada, tinha cabelos ondulados qual essas moças de filmes antigos. Não sei por que não consigo lembrar de que cor eram.
Contou que conhecera lá o homem, que para ela dissera ser Júlio, representante comercial de laboratórios farmacêuticos. Vinha com uma bonita pasta marrom de couro que se abria como flor para um lado e para o outro.
Estava por ali a cada quinze dias e foi o bastante para Rita entrar na sua rota de conquista.
Havia um hotelzinho barato onde passaram a se encontrar. Apaixonou-se, ela, num tanto que já nem respirava bem, acometera-lhe uma certa asma brônquica que lhe tirava o ar. Mas quando Júlio chegava, não havia remédio melhor a sair de sua maleta que a camisa de vênus que usava sob os lençóis do hotelzinho barato. Era rápido sempre, beijos no fim, sem muito lirismo, quase sem nenhum lirismo, na verdade. Dava-se a ele e ele a ela assim em doses quinzenais, qual remédio em visita de médico.
E então, sumiu.
Anos e anos Rita comparecera à estação. Até que esta foi desativada. Não receberia mais passageiros, só cargas.
Rita perdeu as esperanças de reencontrar Júlio por um trem de amor daqueles. Só cargas e encargos apareciam por ali. Dor nas costas.
Fechou-se como um vagão em um túnel.
Não mais se entregou a viagens. Nunca mais.
Sofria dessa maneira, até enquanto sentou-se aqui para contar essa sua dor.
Pertinência: Nesses tempos de quarentena, quando os mais velhos têm se mantido reservados em seus lares, em seus momentos, amigos me relatam que emoções e memórias povoam seus pensamentos, reveem fotos, e começam a escrever, a registrá-las também, sejam por cartas a serem enviadas pelos correios, sejam em mensagens por e-mail, sejam via Facebook … Se essa VIAGEM DA QUARENTENA favoreceu essa outra viagem em si mesmos, que eu escreva também as minhas: seja aqui, ali, em qualquer lugar. Gosto de ler memórias afetivas das pessoas. Acho bonito.
A série Viagens na bagagem nasceu de uma demanda de grupos do Facebook para se compartilhar fotos de viagens – visto que em tempos de pandemia isso se tornara impossível. Como sempre conecto o que escrevo a uma imagem, a uma canção, resolvi dar voz e vez ao que vi e vivenciei em viagens nas minhas criações, e com tudo isso, portanto.
“… rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando aberto para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é.” Raduan Nassar, in: Lavoura arcaica, 1975
“Quem elegeu a busca, não pode recusar a travessia”
“O sertão é confusão em grande demasiado sossego.”
“O sertão está em toda a parte.”
“O sertão é do tamanho do mundo.”
“O sertão é sem lugar.”
“O sertão não tem janelas, nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa.”
“O sertão é confusão em grande demasiado sossego.”
“O sertão me produziu, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca.”
“Sertão é isto o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo.”
“Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra.”
“Sertão, – se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”
“Sertão. Sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso…”
“Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.”
“O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães… O sertão está em toda a parte.”