Vila Rica

TEMPLOS

colônia ação
colônia produção
colônia expropriação
suor, sangue, morte

colônia servidão
ouro devassidão
terra devassidão
minas devassidão
geraes espoliação

colônia entregue
colônia lesada
pátria esfolada
pátria esfomeada
lesa-pátria
acabada

CONFESSIONAIS
I
É um ponto
é uma meta
é um rumo.
Persigo
sigo
avanço.
II
Entranhas, noites, sussurros, segredos
histórias, cumplicidades, desvãos
Um leque, uma moeda, um retrato
um terço
um meio
um décimo de vidas
um centésimo de tristezas
um milésimo de revelações.
Revelações de últimos meses, de últimos dias e horas.
Confidências insuspeitáveis.
III
Bato à porta,
que fechada, me permite contemplações
Bato à porta,
que inerte,
me permite reflexões.
Bato à porta,
que signo, me conduz a leituras internas.
Adentro o adro sagrado, profana que ainda sou.
Bato à porta.
IV
Cruzeiro de joelhos
ainda que doam e sangrem feito penitência ignorada.
Cruzeiro do madeiro bento
Cruzeiro da Senhora do Carmo
respondendo por mim
entendendo a mim
respondendo a mim.
Cruzeiro cheio de luz dos dias frios de junho.
Minas escorrendo sempre por minhas veias.
V
Luzes em penumbra
altares, sinos e santos
toalhas brancas, presépios, mistérios,
ritos de vida e de morte,
encontros domésticos, casuais, sacramentados,
flores brancas,
perfume de rosas, jasmins, camélias e cravos brancos
Silêncios sigilosos de evocações
Humanos, sagrados pecadores.

OFERECIMENTO


ESTRADA, DERRAMA, ÓDIO

Passadas largas
tropeços
Passadas curtas
tormentas

Passadas trôpegas
Medo.

Quem vem lá?

É dia
Há pedras
Há marcas
Há dores
Há gritos
Há ferros
Há fogo
Há brasas
Há mortes.

Quem vem lá?
É noite.
Há choro
Há cortes
Há súplicas
Há berros
Há arrependimentos
Há delações
Há entregas
Há torturas
Há conspirações.
Há corpos.
Há retalhos de corpos.
Há deflagração de ódio.

Para sempre.

ORAÇÃO

CONFIDÊNCIAS A MINEIROS
Nesse século dezoito, nas pedras em que vivo,
correm notícias ao pé do ouvido
são encontros secretos de vontades rebeldes
são encontros secretos de amores proibidos
percorro becos e vielas
salto calçadas em ritmo lépido
contorno esquinas
atravesso pontes
salto muros
Ali está ele
lá estão também eles.
Há luz na morada de uns
Há espera nas derramas dos outros
Tenho ouro em mim.

TESTEMUNHOS

PATAS DE CAVALOS
Há que se ter medo.
Há que se ter cuidados
Há que se ter ouvidos, olhos e mãos de entender.
Há que se confidenciar a poucos.
Há que se omitir de muitos.
A pata, a opressão, a chibata, a inaceitação.
Seguem-nos, cercam-nos, amordaçam-nos
Calam-nos, sem perdão.
São muitos.

TELHADOS, EIRAS E BEIRAS
No cume do sonho a liberdade
No alto do monte a reflexão
Saltando por bandas, perseguindo uma flama, a vez
Juntando pedras e marcas a torre de um ideário libertador
Telhados, eiras, beiras escondem presságios devastadores
O que nos esperará ao final dessa outra derrama?

PAZ
Mundo, mundo, mundo
você é muito maior que meu leito
minha mesa
minha casa
meu homem .
Não posso esquecer
a rua,
a cidade,
o país.
Meu mundo é muito maior do que uma rima.

RIBANCEIRA
o pó da covardia empalidece a história
no limiar da ação o medo ancestral
na esteira da glória a fraqueza do caráter
os compadrios coloniais
a hipocrisia social contumaz
o acordo dos cavalheiros semelhantes
tudo repete o teatro dos costumes
chicote nas mãos do capataz
vilões mascarados de mocinhos
sinhozinhos em gritos estridentes
sangue correndo pernas abaixo
dores em chagas sociais
jogos de poder desenhando hipocrisias eternas
falta coragem de formar fileiras
falta coragem de traçar rumos
falta coragem de tomar as rédeas
a ribanceira espia os declínios
a ribanceira não expia as culpas

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: Ouro Preto e Mariana (agosto de 2017)

Vídeos:

1- Canal Orquestra Ouro Preto

2- Canal Hawk Filmes

“Todo homem precisa de uma mãe”, Zeca Veloso

TODO HOMEM
O sol, manhã de flor e sal
E areia no batom
Farol, saudades no varal
Vermelho, azul, marrom
Eu sou cordão umbilical
Pra mim nunca tá bom
E o sol queimando o meu jornal
Minha voz, minha luz, meu som
Todo homem precisa de uma mãe
Todo homem precisa de uma mãe

O céu, espuma de maçã
Barriga, dois irmãos
O meu cabelo negra lã
Nariz, e rosto, e mãos
O mel, a prata, o ouro e a rã
Cabeça e coração
E o céu se abre de manhã
Me abrigo em colo, em chão
Todo homem precisa de uma mãe
Todo homem precisa de uma mãe
Todo homem precisa de uma mãe
Todo homem precisa de uma mãe

”Terezinha de Jesus, de uma queda foi ao chão. Acudiram 3 cavalheiros, todos 3 chapéu na mão: o 1º foi seu pai, o 2º seu irmão, o 3º foi aquele que a Tereza deu a mão” – cantiga de roda

”O PRIMEIRO”

Namorador com caderneta de nomes de mulheres. Nunca tivera uma virgem em sua cama. Afetivo, leitor de poesia, cortejador da MPB, revolucionário 68, cabelos longos, fartos, barba e bigode espessos. De mulheres, entendia ou dizia entender.

A mãe heroína, mãe de filho único, desbravadora, à frente de seu tempo, desquitada, divorciada. Forte. Os valores éticos, religiosos, dissolvidos no arroz, no feijão, no milho. Adorava milho. Acompanhava os amores e atalhos amorosos do filho.

Ele chegou, sem dizer exatamente o que queria, seguiu o processo natural – não normal – da sedução/sedação masculina. Até chegar onde desejara. Sempre.

Nunca se fixou em mulher alguma. Havia sempre uma competição intrínseca, latente, internalizada entre as mulheres todas e aquela que lhe dera a luz. E se alguém abordasse isso com ele, era capaz de embrutecer-se, perder a doçura até.

”O SEGUNDO”

Era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Ele e o irmão mais novo, filhos de mãe desquitada, divorciada, esteio moral, educacional, econômico do trio. Forte.

Filhos com curso superior. Escolha das namoradas para eles, sutilmente, manobrando afetos, com conselhos de algibeira. Filho mais velho doce, dócil, afável com as mulheres, pouco intencional, sugestivo, amigo, compreensivo, paciente. Mãe que o chamava de ”meu lindinho” e o beijava na boca na frente de namoradas. Ele, cordato.

Chegou, sem dizer exatamente o que queria, seguiu o processo natural – não normal – da sedução/sedação masculina. Até chegar onde desejara. Sempre.

Nunca se fixou em mulher alguma. Havia sempre uma competição intrínseca, latente, internalizada entre as mulheres todas e aquela que lhe dera a luz. Jamais admitiria que se fizesse qualquer observação real a respeito da postura de sua mãe – fosse quem fosse.

O TERCEIRO

Idolatria internalizada. Rebeldias externas. Negação do bom-mocismo explícito. Comparação da mãe com as outras mulheres. Pavor de amar outras mulheres parecidas com a mãe. Forte. Mãe de muitos filhos. Esteio do lar. Opção, então, pelo feminino carne e osso, sexo e vadiagem, posto que aquilo não poderia ser considerado como o modelo da mãe. Buscava o radicalmente oposto, sem se fixar em nenhuma. Sempre na busca da mais oposta das opostas, daquela que fosse a mais diametralmente oposta à mãe, internalizada e adorada em si mesmo.

Assim, jamais se fixou em mulher alguma. Havia sempre uma competição negada, mas intrínseca, latente, internalizada, entre as mulheres todas e aquela que lhe dera a luz. Nunca admitiria que se fizesse qualquer observação real a respeito da postura de sua mãe – fosse quem fosse.

TARDE

A vidente avisara,
há décadas,
chegaria tarde.

Viria sem avisar
Absorveria dias, tardes e noites
Nada simples
Nada fácil
Nada certo.

A vidente advertira
Viria sem botas nem botes
Viria sem rosto, mãos, nem pés.
Viria sem planos nem rastros
Viria sem aroma nem cor
Viria sem quentes nem frios
Viria inconcebível, insuspeitável, impossível.

A vidente vaticinara
Era tarde.

”Devo aos poetas a claridade que me fez compreender complexos problemas humanos. Tenho agora diante de mim fragmentos poéticos escritos por um jovem de dezoito anos. Somos amigos há muito pouco tempo. Por seu comportamento e jeito, sabia-o poeta, mas não lhe conhecia os versos.[…] O poeta se chama David Calderoni.[…] Talvez fique mais evidente o que digo transcrevendo os versos de David. […] Roberto Freire


Hoje encontrei meu pai
E dói pensar
o quanto ainda sou filho.
É preciso matar meu pai
Teu, nossos pais.
Mas sobretudo, é preciso
Sabê-los morrer
Para não cometer suicídio.

Leia mais no capítulo: ‘‘É Preciso Saber Morrer o Pai Para não Cometer Suicídio’‘, do livro VIVA EU, VIVA TU, VIVA O RABO DO TATU, (do psiquiatra) Roberto Freire, S.P. Ed. Símbolo, 2ª ed. 1978, p. 25 e 26

Texto e poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Caetano Veloso

2- Maria Bethânia – Tema

Oníricas: mundos outros

QUIXOTE E SANCHA

Olha o céu, há nuvens carneirinhos branquinhos; crê nas nuvens, tem doces nos olhares. É noite de lua cheia. Vai ler. Não bebe seu vinho preferido, quer lucidez e esperteza na leitura. Bebe letras, frases, interpretações, viagens, sonhos.

A lua faz árvore de Natal no quintal. Retorna à poltrona. Lê o cavaleiro da triste figura e sonha sonhos impossíveis. A lua dança no quintal. Celestial-invernal é magnetismo de poetas e paixão de sensações.

A luz vem mais forte. Não sabe se vai até lá ou se permanece imantada ao brilho, à luz.

Ao dar fé do acontecido, ouviu ”Vai escutando”. Era um proseio familiar, ”veiaco mês, uai”. Que vereda era aquela que de tão alta se via tudo pequeninin-pequeninin? Era campo, grande, de girassóis, em seguida eram canteiros e canteiros de lavandas roxinhas que perfumavam as nuvens; em seguida vinham os roseirais de multicores, tudo inebriante, de beleza rara.

Corria Sancha de nuvem em nuvem, tendo como timoneiro Quixote, delirante, faiscante, incandescente. Abaixo crianças corriam em grama verdinha, depois sentavam na beiradinha do corguinho de água geladinha. E riam muito, pareciam cantar também. De um pulinho, foram subir nas pitangueiras, nas mangueiras, no caquizeiros, em tudo. E com as bocas pintadas de multicores, se deliciavam nos doces todos.

Sancha quis ficar para sempre por lá, bem no alto, sem retornar jamais porque entrava no paraíso dos cães e dos gatinhos, mais à frente as ovelhinhas, os bezerros e suas mães, tudo calmo, doce e cheio de perfume de paz. Quixote, timoneiro, se gabava daqueles moinhos de belezas tropicais e dizia ser o grande regente daquela orquestra colorida.

O voo seguia, o voo seguia, Sancha vivera momentos naquela nave-viagem que restauraram o seu viver. Foi sentindo, sentindo … estava de volta.

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Arnaldo Antunes

2- Canal Biscoito Fino

Brasil: “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, Lima Barreto

LIMA
fruto da terra
negro
segregado
bêbado-louco
etnólogo
antropólogo
naturalista
linguista
sociólogo
escritor
perseguido
bêbado-louco
anti-racista
gênio criador
amante do Rio
brasileiro eterno
sabedor do Brasil
guerreiro nas trincheiras
soldado na resistência
da cultura
da agricultura
da política
bêbado-louco
gênio criador

Manuscrito de Lima Barreto

O mais ferrenho crítico da Primeira República brasileira, Lima Barreto expunha ao ridículo o ufanismo nacionalista e a falsa renovação da fundação da república que, no entanto, mantinha os privilégios da aristocracia brasileira, a segregação social e o racismo no país.

Testemunha ocular desse período de transformações radicais no Brasil – que inclui a abolição da escravatura e a proclamação da República – Lima foi o crítico perfeito das contradições profundas que então se revelavam e que até hoje nos significam enquanto nação. – ‘‘A dura vida e a obra genial de Lima Barreto, próximo homenageado da Flip’‘, Revista Hypeness

ABOLIÇÃO: “Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia. Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: ‘Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?’ Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!

LITERATURA: Eu não sou literato, detesto com toda paixão essa espécie de animal

REPÚBLICA: “Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de parvenu, tendo como repoussoir a miséria geral?

BRASIL: “Os preponderantes e influentes têm todo o interesse em não fazer subir os inteligentes, os ilustrados, os que entendem de qualquer cousa; e tratam logo de colocar em destaque um medíocre razoável que tenham mais ambição de subsídios do que mesmo a vaidade do poder”

Clara dos Anjos” é meu romance preferido de Lima Barreto, por sua temática: abordagem social e crítica ao casamento arranjado, papel das mulheres na sociedade, racismo, preconceitos de classes, hipocrisias sociais, homens cafajestes, relações de interesse e muito mais. Foi concluído em 1922, ano de sua morte, e publicado postumamente.

” Temos que ler Lima Barreto porque não somos um país livre, não somos integralmente livres, temos que ler Lima Barreto porque somos um país socialmente injusto, somos um país onde os pobres continuam pobres e as elites continuam no lugar delas . Não é pra aprender português que se lê Lima Barreto. Lê-se Lima Barreto para aprender a ser brasileiro” – Antonio Arnoni Prado – ensaísta e professor da Unicamp

Poesia: Odonir Oliveira

Fontes: Obras de Lima Barreto: romances e crônicas, Revista Hypeness

Vídeos:

1- Canal Blog A Daga Sem Fio

2- Canal Juliano Marinho

Felicidades

Felicidade é uma questão de enfoque ou de desenfoque, é questão de querer e fazer. E é fugaz também. Mas isso não invalida nada. Ao contrário, a meu ver, faz com que se aproveite mais dela ainda.

A vida dói e isso é bom. De dores também se vive, fazem crescer, fazem melhorar, fazem querer se viver outras dores e de outras maneiras depois. Tornam os seres mais reflexivos, aprendendo a elaborar suas dores.

Nossas tragédias de vida devem ser por nós elaboradas para podermos superá-las. Se possível, devemos evitar os campos minados e as flechas que venham abrir feridas antigas e produzir outras ao redor. Viver é perigoso, escreveu o velho Guima. E é mesmo. Quando não elaboramos – mastigamos mesmo – nossas revoltas, nossas dores, ficamos vagando nelas ou no disfarce delas, sem engoli-las e as ”defecarmos”.

Há aqueles que, de certa forma, não viveram tragédias pessoais no sentido estrito do termo: mortes, dores irrecuperáveis etc. sempre receberam tudo pronto – da mesa às viagens, das boas escolas aos automóveis aos bens móveis. É provável que esses sejam ainda mais infelizes, posto que não aprenderam a valorizar, de verdade, preceitos inalienáveis, solidariedade, empatia, mas sim o patrimônio ancestral herdado ou adquirido pós-herança. É mais provável que sim. Embora escondam isso em seu discurso diário.

Conheci pessoas, nas relações de trabalho, que se camuflavam nas piadas diárias, nos chistes e gozações de ocasião, contudo, no fundo eram seres complexados, infelizes, torpes, malévolos até – não haviam mastigado bem seus traumas e ”defecavam” aquilo nas pessoas a seu redor.

Vi homens, que se consideravam tão experientes, maduros, calejados, caírem em esparrelas femininas tantas, porque parece que gostavam e atraíam mulheres com tal shape. Vi outros que quando alertados sobre os logros rebatiam dizendo que as mulheres com as quais se envolviam não eram desse tipo etc. sabiam o que estavam fazendo. Portanto, não há como alertar a quem não deseja ser alertado. Momentos de felicidade que cegavam corações e mentes.

ESTAR FELIZ
Feliz assim
Feliz assado
Feliz instante
Feliz momento
Feliz comendo
Feliz bebendo
Feliz cantando
Feliz chorando
Feliz dando
Feliz recebendo
Feliz sendo
Feliz estando
Feliz com
Feliz sem
Feliz dentro
Feliz fora
Feliz de pé
Feliz deitado
Feliz junto
Feliz separado
Feliz instante
Feliz momento.

AMOR MAIÚSCULO

a terra tem cheiro
a chuva lavou a terra
eu amo a terra
minhas mãos sentem
minhas mãos tocam a terra
paro, aterrisso na contemplação
sou braço da terra
sou perna da terra
sou coração da terra

a terra tem cor
o vento arejou a terra
eu amo a terra
meus joelhos se dobram a ela
meus pés a acariciam
meu ventre guarda suas sementes
sou cio da terra

a terra tem sentimentos
o verde inaugura suas entranhas
eu amo a terra
meu colo nina suas flores
meus seios amamentam seus frutos
germino suas sementes
sou gente

Adultos
Os adultos fazem negócios.
Têm rublos nos bolsos.
Quer amor? Pois não!
Ei-lo por cem rublos!
E eu, sem casa e sem teto, com as mãos metidas nos bolsos rasgados, vagava assombrado.
À noite vestis os melhores trajes e ides descansar sobre viúvas ou casadas.
A mim Moscou me sufocava de abraços com seus infinitos anéis de praças.
Nos corações, no bate o pêndulo dos amantes.
Como se exaltam as duplas no leito do amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão, surpreendo o pulsar selvagem do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora, abria-me ao sol e aos jatos díágua.
Entrai com vossas paixões! Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono de meu coração!
Nos demais – eu sei, qualquer um o sabe!
O coração tem domicílio no peito.
Comigo a anatomia ficou louca.
Sou todo coração – em todas as partes palpita.
Oh! Quantas são as primaveras em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga acumulada torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável não para os versos de veras.

Vladimir Maiakóvski
(Tradução de Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)

Texto e poemas: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: Hotel Senac Grogotó, MG, 2019

Vídeos:

1- Canal Marcus Oliveira

2- Canal Luiz Melodia – Tema


Rotas sinuosas e teias

O ECO
veio feito música
veio feito aquarela
veio feito eco
à mensagem “eu amo você”
que assoprei ao vento
que atirei no rio
que espalhei pela mata.
Veio como eco de mim,
em ondas outras,
a resposta de ti.

(Imagem retirada do Facebook)


SOLUÇO VERSOS PELOS DEDOS
cubro os buracos com flores
entretanto
meu peito, meu coração
encontra-se perfurado
atingido
baleado
estilhaçado
infeccionado
vazando sangue espesso
sangue que verte e não coagula
feridas abertas
por injustiças
muitas

(Imagem retirada da Internet)

CONVERSA COM ELE

A máquina escreve o que gostaria de lhe dizer nos ouvidos,
em um de cada vez,
um mote
um tema
um verso
uma estrofe
um poema.

A máquina escreve como se falasse de minhas tormentas e dúvidas
o que não poderia gritar pelas noites vazias de ti
em meu teclado
em meu leito
em mim.

BUSCAS

Sigo na direção
é sim é não.
Transformação.

Janelas abertas
vento pelos ouvidos
esperas na pele
torneios entre razão e emoção.

Uma canção
Duelos constantes
é sim e não.

Rotas sinuosas
casas de menina
cores de menina.
Encontro de mulher.

AMOR MEU
Quis o Fado
Que pisasses em minhas terras inconfidentes
e arrancasses todos os meus segredos
escondidos por séculos
todos os meus desejos
cristalizados na alma
todos as minhas resistências
dos exílios de mim.
Foi o Fado que quis assim.

CORPO

Disse que vinha
Avisou que vinha
Mostrou o mapa.
Riscou o céu estrela cadente
Semeou palavras e sinfonias

Tereza acreditou.
Tereza bebeu grandes goles
Tereza comeu fatias adocicadas.

Tereza foi a caminho
Tereza perseguiu o apito do trem
Tereza acatou o sinal do trem.
Tereza entregou-se aos trilhos.

TARDE

A vidente avisara,
há décadas,
chegaria tarde.

Viria sem avisar
Absorveria dias, tardes e noites
Nada simples
Nada fácil
Nada certo.

A vidente advertira
Viria sem botas nem botes
Viria sem rosto, mãos, nem pés.
Viria sem planos nem rastros
Viria sem aroma nem cor
Viria sem quentes nem frios
Viria inconcebível, insuspeitável, impossível.

A vidente vaticinara
Era tarde.

”É bom republicarmos poemas antigos, não é, Alberto?” ”Muito bom, dá para ter a percepção da nossa evolução enquanto poeta e ser humano…” – A partir de postagens antigas do poeta e blogueiro português Alberto Cuddel republicadas, esses versos meus – escritos em 2016 – foram revisitados por análises e reflexões e, por isso mesmo, republicados também.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Nara Leão – Tema

Mar, ondas, encantos

AMAR
Ah, o mar
andar a amar
no mar
na boca de sal
no tato de céu-sal
Ah, o mar
pisar sal-mar
beber sal-mar
dançar o mar
Ah, o mar
dar e receber
o amar
no mar
riscar estrelas-do-mar
piscar estrelas no mar
Ah, o mar
indo e vindo
indo e vindo
Ah, o mar
o amar
no mar

NA FRANJA DO MAR
Com as dores todas,
beijo a franja do mar
miro ao longe
quase na curva do horizonte
a entrega
do que a maré me trouxe
toco nela
bebo dela
sal da minha vida
Expurgo os restos refugos
aproveito as ondas
enxáguo as feridas,
sangrando ainda,
regozijo interno,
com o que me entrega o mar
porque não sou eu,
mas ‘quem me navega
é o mar.’

MARES E MARÉS
Nunca tive intenções de mar.
Mulher de águas salgadas,
nasci e convivi com elas
por sempre.
Nos anos em que ainda me empinava
a cauda e o mastro era grande e rijo,
naveguei por marés e areias
de Rio, Santos, Salvador, Itaparica…
Vivi de mar.
Tive riscas de sal na pele ao fim das tardes
cabelos longos que ventavam meu rosto ressecado
por desejos realizados, paixões de sol.
Nunca tive intenções de mar
Nem tampouco de alto-mar.
No Pacífico, gelado e salgadíssimo,
quase sucumbi em um bote pesqueiro, de domingo sagrado.
Albatrozes chegavam-nos aos braços como peixinhos de aquário
a sugar seus alimentos e nosso sossego.
Nunca tive intenções de mar.
Nunca quis sugar nada de seu.
Nunca sorvi mais do que seu quebrar de ondas nos ouvidos
seu movimento de entrega e recolho
pelas manhãs, às tardes,
sentada nas pedras do Farol de Itapuã,
caminhando pela praia de areias pesadas,
namorando distâncias de horizontes imaginados.
Nunca tive intenções de mar.
Em menina, não quis nadar nunca.
Sequer aprender.
Meu encantamento com o mar
é o de quem sabe o que é o mar
e com ele não tem
sequer uma intenção.

ERA SÓ O MAR
Necessidade extrema de água e areia
de sal, água, areia e vento.
Necessidade absurda de vento, sol, ondas, céu, azul, verde.
Necessidade incontrolável de ondas, marés, correntes e luas
Necessidade insuportável de ir.
Mas era só o mar…

POENTE
Todos correm
Apressados
A dança se inicia
Onde estaria meu par?
Passos apressados
Ritmo acelerado
Que desse lado já dançam !
São muitos os pares.
Ajeito a boca
Com batom vermelho da cor do poente
Arrumo os cabelos curtos
Mas embaralhados
Por aquelas emoções.
Procuro
Procuro
Onde estaria meu par?
Apresso a coreografia
Antes que ele se perca de mim.
Apresso
Apresso
Vislumbro-o ao longe, que longe!
Do outro lado do lago.
De lá, comigo não poderá dançar.
Aceno
Aceno
Ele me entende e atravessa,
também ele,
coreografando passos,
o lago.
Agora sim ,
aqui perto,
corpo a corpo,
pele a pele,
nos engatamos no ritmo
também.

Imagem retirada da Internet

UNS BARCOS
Nessas ilhas de águas doces
barcos à deriva
ainda que juntos
esperam
anseiam
dançam
o vento é forte
dançam
o vento é doce
aguardam
o vento é visgo
acolhem
o vento não para de ventar
o vento ajuda a navegar
o vento, ainda que fraco,
segura-os nessas águas
doces
líricas
a não naufragar
doces ventos
ventos doces
águas doces
palavras doces.

CÉU
Azul
Complexo
De matizes muitos.
A descobrir-se
Inquietações
Sombras molduras, ranhuras de profundidade.
Idade prêmio troféu
Céu
Dores sabores refletores de sinos
Audíveis por ouvidos únicos
Sensíveis aos afrescos de capelas de sangue e cicatrizes
De festas fétidas de pudores singulares.
Vulgaridades expostas
Particularidades repostas.
Estradas de ir e de continuar indo
Sem chegadas
Sem estações
Sem portos
Sem píer sequer.
Rios de águas muitas
Rios de águas poucas
Rios de céus enluarados.
Nuvens emoldurando rumos.
Rumos emoldurando caminhadas.
Céus.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Piano Brasileiro

2- Canal Odonir Oliveira

Tristes tempos

CANCELAMENTOS, SUBSTITUIÇÕES, DESCARTES

Filosofando e observando. Constatando. A moça de mais ou menos 50 anos escreve Ai, sempre achei Gil um chato. Não sei por que fazem todo esse escândalo com live dele.

”Moça”, você já estudou filosofia, já conversou com o matuto e ouviu sua filosofia de vida, já experimentou refletir sobre as questões humanas, sobre mazelas, angústias ou apenas vive o dia de hoje, depois o de amanhã e vai de roldão sendo levada sem elaborações, revisões de vida? Sabe o que é reciclar, re-viver, aprender com os outros, seja com os mais velhos ou com os mais novos? A vida não é feita apenas de risos, de gargalhadas, de ruas, de bares e de turmas de boteco. Escute sua espiritualidade, nem tudo é corpo e prazer momentâneo. Entre em contato consigo mesma, ouça os seus silêncios. Dê valor também a estar só. O homem e as suas circunstâncias? Quem é você? Sabe? O tempo passa e não é admissível chegar a idades maduras sem maturidade. Reflita, ”moça”. Ouça a filosofia das letras de Gil. Além de tudo, é excelente músico. Transforma VIDA em verso, prosa e ritmo. Pare e reflita. Não dói.

”Tenho saudades de minha cachorra Luna”. A mulher escreve Já pensou em adotar outra? Nesses tempos, tantos estão abandonados?

Respondo: Não quero substituir uma cachorra por outra. Tenho saudades da minha Luna. É permitido ter saudades? Todas as minhas cadelas, cães e gatos foram adotados. Não desejo um cão para preencher solidão, por carência de afetos, para ter de quem cuidar; não tenho vazios existenciais a serem preenchidos por um ser animal. Não concebo o ser humano superior a um animal e este tendo como função ser tapa-buraco de afetividades – embora veja diariamente isso acontecendo. Além disso, a cultura do descarte tão rasteira e medíocre na atualidade, a da substituição frugal, fugaz, relâmpago nunca fez parte da minha setlist, do meu rol de tarefas a serem executadas. De modo que não espero A atualização foi executada com sucesso. Entendeu?

A senhora de mais de 70 anos replica Passar roupa, o que é isso? Nem perco tempo consertando mais nada, substituo por um novo.

Gosto de reciclar objetos, gosto de consertos e reutilizações. Prefiro revisar o ido, o feito, o transcorrido. Por isso refaço pratos na cozinha, em próximas vezes vou adicionar tal ingrediente porque o sabor combina melhor. Gosto de garimpar objetos descartados por outros e ressignificar seu uso, fazer desvios de finalidade. Gosto de passar roupas sim, sentir seu cheirinho depois de passadas, tocar nelas, exercitar os 5 sentidos. Faço café no coador de pano, coo café; não filtro. Sei o sabor. Reconheço o valor. Dou valor às singularidades. Desprezo o comum, o vulgar, o corriqueiro, o rotineiro sem significado, apenas repetido, repetido, repetido à exaustão.

HOMENS, MULHERES E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS

O terapeuta gostava de contar essa historinha de um casal, no pequeno grupo feminino de terapia. Era assim:

Na sessão de terapia de casal:

”A gente não tá dando certo junto. Ela não gosta daquilo que eu gosto, não faz como eu quero.”

”Eu aprendi assim, ele precisa entender.”

Ok. Explica melhor:

”Por exemplo, gosto de peixe assado, com rabo, recheado, de forno, com bastante tempero, com molho depois. Ela não faz desse jeito. Ela corta.”

”Não faço mesmo. Aprendi do jeito que a minha mãe ensinou. Faço como ela sempre fez.”

Mas vocês sabem por que ela corta o rabo do peixe assim? Vou dar essa tarefa pro casal descobrir com ela. Perguntem e tragam a resposta na próxima sessão.

Na sessão seguinte:

”Ela explicou que o forno dela era pequeno, não cabia um peixe assim pra assar, por isso usava uma assadeira menor e cortava o rabo do peixe.”

Então, foi essa a resposta dela. Entenderam?

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Biscoito Fino

“A Morte dos Girassóis”, Caio Fernando Abreu

Nos últimos tempos, quando não conseguia mais escrever, ele ia para o jardim cuidar das rosas. Ia cuidar da vida: tirar da terra a vida – e o Caio morrendo. Fazer desabrochar a flor – e o Caio morrendo. Num planeta enfermo como o nosso, num país, numa sociedade onde impera a boçalidade, a volúpia materialista, foi magnífico contar com o Caio.
Lygia Fagundes Telles, em homenagem ao amigo Caio F. Abreu (quando ele partiu).

A MORTE DOS GIRASSÓIS

Anoitecia, eu estava no jardim. Passou um vizinho e ficou me olhando, pálido demais até para o anoitecer. Tanto que cheguei a me virar para trás, quem sabe alguma coisa além de mim no jardim. Mas havia apenas os brincos-de-princesa, a enredadeira subindo tenta pelos cordões, rosas cor-de-rosa, gladíolos desgrenhados. Eu disse oi, ele ficou mais pálido. Perguntei que-que foi, e ele enfim suspirou: “Me disseram no Bonfim que você morreu na Quinta-feira.” Eu disse ou pensei em dizer ou de tal forma deveria ter dito que foi como se dissesse: “É verdade, morri sim. Isso que você está vendo é uma aparição, voltei porque não consigo me libertar do jardim, vou ficar aqui vagando feito Egum até desabrochar aquela rosa amarela plantada no dia de Oxum. Quando passar por lá no Bonfim diz que sim, que morri mesmo, e já faz tempo, lá por agosto do ano passado. Aproveita e avisa o pessoal que é ótimo aqui do outro lado: enfim um lugar sem baixo-astral.”

Acho que ele foi embora, ainda mais pálido. Ou eu fui, não importa.

Mudando de assunto sem mudar propriamente, tenho aprendido muito com o jardim. Os girassóis, por exemplo, que vistos assim de fora parecem flores simples, fáceis, até um pouco brutas.

Pois não são. Girassol leva tempo se preparando, cresce devagar enfrentando mil inimigos, formigas vorazes, caracóis do mal, ventos destruidores. Depois de meses, um dia pá! Lá está o botãozinho todo catita, parece que já vai abrir.

Mas leva tempo, ele também, se produzindo. Eu cuidava, cuidava, e nada. Viajei por quase um mês no verão, quando voltei, a casa tinha sido pintada, muro inclusive, e vários girassóis estavam quebrados. Fiquei uma fera. Gritei com o pintor: “Mas o senhor não sabe que as plantas sentem dor que nem a gente?” O homem ficou me olhando tão pálido quanto aquele vizinho. Não, ele não sabe, entendi. E fui cuidar do que restava, que é sempre o que se deve fazer.

Porque tem outra coisa: girassol quando abre flor, geralmente despenca. O talo é frágil demais para a própria flor, compreende? Então, como se não suportasse a beleza que ele mesmo engendrou, cai por terra, exausto da própria criação esplêndida. Pois conheço poucas coisas mais esplêndidas, o adjetivo é esse, do que um girassol aberto.

Caio F. Abreu – foto: Adriana Franciosi

Alguns amarrei com cordões em estacas, mas havia um tão quebrado que nem dei muita atenção, parecia não valer a pena. Só apoiei-o numa espada-de-são-jorge com jeito, e entreguei a Deus. Pois no dia seguinte, lá estava ele todo meio empinado de novo, tortíssimo, mas dispensando o apoio da espada. Foi crescendo assim precário, feinho, fragilíssimo. Quando parecia quase bom, cráu! Veio uma chuva medonha e deitou-se por terra. Pela manhã estava todo enlameado, mas firme. Aí me veio a ideia: cortei-o com cuidado e coloquei-o aos pés do Buda chinês de mãos quebradas que herdei de Vicente Pereira. Estava tão mal que o talo pendia cheio dos ângulos das fraturas, a flor ficava assim meio de cabeça baixa e de costas para o Buda. Não havia como endireitá-lo.

Na manhã seguinte, juro, ele havia feito um giro completo sobre o próprio eixo e estava com a corola toda aberta, iluminada, voltada exatamente para o sorriso do Buda. Os dois pareciam sorrir um para o outro.Um com o talo torto, outro com as mãos quebradas. Durou pouco, girassol dura pouco, uns três dias. Então peguei e joguei-o pétala por pétala, depois o talo e a corola entre as alamandas da sacada, para que caíssem no canteiro lá embaixo e voltassem a ser pó, húmus misturado à terra, depois não sei ao certo, voltasse à tona fazendo parte de uma rosa, palma-de-santa-rita, lírio ou azaleia, vai saber que tramas armam as raízes lá embaixo no escuro, em segredo.

Ah, pede-se não enviar flores. Pois como eu ia dizendo, depois que comecei a cuidar do jardim aprendi tanta coisa, uma delas é que não se deve decretar a morte de um girassol antes do tempo, compreendeu? Algumas pessoas acho que nunca. Mas não é para essas que escrevo.”

(Zero Hora, 18.3.1995)

Do livro “Pequenas epifanias”. Caio Fernando Abreu. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2014.

Caio F. Abreu viveu pouco e intensamente. Ao deixar este mundo aos 48 anos, o escritor gaúcho que se tornou conhecido com o livro “Morangos Mofados”, passara pelo existencialismo, pelo movimento beatnik, Woodstook, geração hippie, golpe militar, desilusão contemporânea e pelo fantasma da Aids, até encerrar sua existência no jardim, fazendo aquilo de que mais gostava: cuidar das plantas.

Fonte: Revista Prosa e Verso

Fotos de arquivo pessoal: girassóis da minha rua (janeiro de 2020)

Vídeo: Canal Vander Lee – Tema