MOVIMENTOS Houve manhãs houve noites houve manhãs houve noites sóis luas sóis luas houve verdes houve secas houve chuvas houve risos houve gritos houve lágrimas houve chegadas houve partidas Um giro breve. Um giro longo. Um giro eterno. Movimentos, movimentos, movimentos
SONHOS REALIZADOS A moça era estudiosa. Dedicava-se aos estudos como ninguém. Elogiada por todos, por seus esforços, sua caminhada, suas metas. O curso de inglês conseguido a duras penas – os pais não teriam como pagar – seguia por anos, sempre devagar, mas sempre, sempre. E era uma batalha trabalhar de noite, de madrugada mesmo, fazer a faculdade federal pela manhã, voltar para casa, estudar, cumprir suas tarefas. Havia tardes em que não fossem sua perseverança e resistência física, sucumbiria. Vozes demolidoras sempre houve a seu redor. Seguia. E namorar? Nada, queria terminar sua faculdade de jornalismo, concorrer a uma vaga para o Ciência sem Fronteiras, ir em frente. Mirava os EUA. Fazer mestrado, doutorado lá. Queria estar lá. Queria isso desde menininha, quando assistia aos filmes dublados na TV, repetidos várias e várias vezes. Os de Natal então, esses eram os seus favoritos. Queria fazer estágio por lá, queria trabalhar lá, como correspondente de algum jornal brasileiro, o que quer que fosse, mas iria viver nos EUA. Isso era fato. Sem desistência alguma. Naqueles dias, após a formatura, da qual não participou, fora demitida do emprego das noites e madrugadas. Recebera seu Fundo de Garantia, abonos acumulados, férias, tudo corretamente. Eram dólares com açúcar em suas mãos. Semanas depois, aguardando com ansiedade o resultado, fora selecionada para o Programa Ciência sem Fronteiras. Iria para New York. Um caso muito particular e poderia estagiar no The New York Times, ora vejam só. Fora bastante recomendada por seus professores da Universidade Federal, apresentara bom desempenho na seleção e assim estaria lá, onde sempre quis estar. Maria de Fátima era filha de pais com o ensino fundamental apenas, tinha mais 2 irmãos menores. Nunca, em sua família inteira, alguém cursara uma faculdade. Era negra. Era dezembro de 2013. Visitou tudo que seus filmes lhe haviam mostrado na TV e no cinema. Ainda pode acompanhar a virada do ano, no Rockefeller Plaza, de frente para a belíssima árvore de Natal. A vida seguiu.
A PÁTRIA acordo em novo endereço acordo numa casa antiga com pequeno jardim filha amando em par filho na universidade na mesma acordo em novo endereço mando pintar as portas e janelas tudo em azul mineiro decoro os cenários coloro tudo do jeito mineiro cultivo flores cultivo o amor canino por ruas e praças namoro meu amor canino meu país se orgulha de si dou trato às minhas criações corto, colo, reciclo reciclo meu país encontro-me em meu país planto flores planto cores colho graças meu país se orgulha de si eu me orgulho do meu país acordo em novo endereço
A MÁTRIA a língua é a minha a mátria é a minha aliso meus mentores líricos acaricio minhas letras clássicas acompanham-me sempre em pares vinho e livros livros e luzes vinho e saberes vinho e sentires uma lírica particular uma lírica incomum distribuo letras e frases a meninos e meninas às portas da vida às portas das universidades semeio saberes e sentires semeio engenho e arte pelas palavras pelos caminhos pelas vidas a língua é a minha a mátria é a minha amo a minha língua dela não abdico dela não me abstenho ela sou eu eu sou ela
A FRÁTRIA estou em novo endereço estou em novo terreno pântano de hipocrisias gerais e particulares estou em novo endereço minha pátria amada subjugada, aviltada, entregue partida a facadas cotidianas um lirismo torpe de bocas torpes gente que se vai abduções abstenções fugas rainha em xeque rei em xeque-mate estou em novo endereço areia movediça de cabotinismos retratos nas nuvens mesquinhas fotografias de gente egoísta prazer só o deles riqueza só a deles paz só a deles saúde só a deles estou em novo endereço lama sobre os rios lama sobre as casas lama sobre as almas adoecem os braços adoecem as pernas adoecem os troncos adoecem as cabeças adoecem os corações estou em novo endereço a frátria, uma utopia
TERRA DE MINAS Que bondade tem o garoto mineiro que ajuda a carregar embrulhos, mesmo sem precisão… Que prosaico é aquele “cê bobo” ao final das frases coloquiais … Que vontade é essa de ficar sentado na praça a tocar causos e prosas até o entardecer… Que permissivo é esse tom de confidência de quem jamais nos viu antes … Que adocicado é esse olhar de matutagem espalhado pelas calçadas … Que coisa caseira é essa que me enternece de água os olhos … Talvez seja encontro de sangue mineiro com sangue mineiro. Talvez seja um ponto de vista repleto de montanhas . Talvez seja essa vontade de encontrar o que uma vez se perdeu em mim.
MISSA DO GALO NA PRAÇA
Deu que não havia quem fizesse Dom Carijó desistir da ideia de uma festa de Natal. Cansados de serem caçados, cortados e assados, resolveu se juntar com a companheirada e fazerem, eles mesmos, o seu Natal. Afinal, o Menino Jesus nascera bem pertinho deles todos, nada mais justo que uma bela festa na pracinha do sítio do Sô Raimundo.
Foi assim que saiu cantando desde cedo as galinhas todas dos arredores. E ensaiavam o hino do Natal num grande slam, sabe né – batalha de poesia, pode-se dizer assim. Um cantava daqui, outro dali, mais outro de lá. Isso desde bem cedinho, no monte da roça do Seu Jão Raizeiro, homem bão. E foram descendo, chamando todos os outros, cada um com seu plantel. Não havia um galinheiro sequer que não se juntasse à caravana do Seu Carijó.
E foi ficando bonita toda aquela caminhada. A festa, a confraternização já estava acontecendo, enquanto seguiam, ciscavam e cantavam em clima de Natal. Vez ou outra brotava uma treta entre o plantel, mas Seu Carijó, empinava a crista e botava ordem no galinheiro. Tinham que seguir juntos, arrebanhando os outros pelo caminho. E iam cantando.
Já era quase meio-dia e ainda se ouvia galo mandando seu canto em frente. Árvores de Natal, cada uma mais enfeitada e colorida que a outra, só vendo mesmo.
Ao meio-dia, em ponto – todo mundo sabe que galo é ave pontualíssima, né – chegaram à capelinha da pracinha do sítio do Sô Raimundo. E apresentaram seu coral de Natal, com as galinhas unidas e os galos como solistas. Dizem que foi o mais belo canto de galo que já se ouviu. Explicam que é por isso que ainda se ouve ao meio-dia galos encantando as manhãs nas terras da gente.
Esse ano não teremos Natal -Tadinho, vamos lá ajudar? Está todo magrinho, precisa de veterinário, vacinas, remédios, ração. Se eu comprar, você vai lá aplicar no sábado. Depois, aqui em casa: o labrador John John eu seguro. Ah, tem a Terry, a cocker, e os 2 poodles. E tem os gatinhos também. Compro as vacinas, você aplica, eu te ajudo, você vem? Como responder negativamente a esse convite a ser bondoso, altruísta, sensível? Era um homem de mais de 70 anos, um pai dos bichos, em geral. Era duro com os humanos, não via muita sinceridade neles, amizade desinteressada, carinhos … amava os animais e era capaz de deixar de fazer qualquer coisa fora de casa por ter que cuidar de seus bichos. Ração animal era mais importante que a comida desnecessária aos humanos. Os familiares o criticavam, não entendiam aquele amor incondicional por cães, gatos, inclusive pelos de rua, pelos que viviam próximo ao seu trabalho. As campanhas de doação eram seu assunto principal, primeiro no Orkut, depois no Facebook. Além dos pedidos de doações de pacotes de ração para abrigos de cães etc. Era um ativista animal. Suas cadelas eram como namoradas ciumentas, ai de quem se aproximasse demais. Até reconhecerem que quem chegava era amigo ou amiga dele. Quer proteção maior? Seguranças por afetividade. Verdadeiros, sinceros, reais. Não podia ver uma foto de animal maltratado, magrinho, sem pelos, que seu coração batia dolorido e descompassado. Nos últimos tempos, sozinho com seus cãezinhos, foi vendo seu coração bater descompassado demais, dolorido demais. Depois foi a vez do fígado, dos rins … e se foi. Os cães sentiram muito a sua ida. Não sei se sabem onde ela está. Mas eu sei.
Natal. “Um menino nasceu, o mundo tornou a começar”! (Guimarães Rosa)
Último Natal
Final de ano em familiaridades, primos de primeiras desesperidades, em meio à meia noite, esperesperávamos…
Dezembro desenganado.
Papai Noel chegou todo ho-ho-rouco: -Feliz Natal! – dizia esquivoso para o nosso lado com um dlin-dlin-dlin.
Fiquei fixado!
Lembrei do sininho que vivia na gaveta da cômoda da titia. Luzia! Corri pegar. Precisava lhe mostrar o igual. Não estava lá.
Procurei, procurei, procurei… -‘tava aqui hoje! -Deixa quieto, filho! Vai lá receber seu presente! Eu só pensava no sino.
Verti choro veredito.
Papai Noel nem ligou. Deixou os deixados e foi embora sem se importar da pena. Custava esperar? Eu esperava o ano todo!
Mais tarde, acharam o desachado. Mas não tinha festa. Sequei forte o rosto resignado, humilhado, esbofeteado.
E Papai Noel nunca mais existiu
sem título
Não mudamos Nem o Natal Só o mundo é mudança Feito a esperança Como num sonho um sino.
O menino Face a face Do oculto renasce Desfaz errada realidade. Natal tão mais remoto que o passado Íntimo mais que o presente Que o pensar e o sentir da gente Só igual ao futuro Amor recomeçado.
PRESEPE
Todos foram à vila, para missa-do-galo e Natal, deixando na fazenda Tio Bola, por achaques de velhice, com o terreireiro Anjão, imbecil, e a cardíaca cozinheira Nhota. Tio Bola aceitara ficar, de boa graça, dando visíveis sinais de paciência. Tão magro, tão fraco: nem piolhos tinha mais. Tudo cabendo no possível, teve uma ideia.
Não de primeira e súbita invenção.
Apreciara antes a ausência de meninos e adultos, que o atormentavam, tratando-o de menos; dos outros convém é a gente se livrar. Logo, porém, casa vazia, os parentes figuravam ainda mais hostis e próximos. A gente precisa também da importunação dos outros. Tio Bola, desestimado, cumpria mazelas diversas, seus oitenta anos; mas afobado e azafamoso. Quis ver visões.
Seu espírito pulou tão quanto à vila, a Natal e missa, aquela merafusa. Topava era tristeza – isto é, falta de continuação. Por que é que a gente necessita, de todo jeito, dos outros? Velho sacode facilmente a cabeça. A ideia lhe chegou então, fantasia, passo de extravagância.
– “Mecê não mije na cama!” – intimara a Nhota, quando, comido o leite com farinha, ele fingia recolher-se. Não cabia no quarto. Natal era noite nova de antiguidade. Tomou o aviso e voltou-se: estafermado, no corredor, o Anjão fazia-lhe pelas costas gesto obsceno. Ordenou-lhe então – trouxesse ao curral um boi, qualquer!
Saiu o Anjão a obedecer, gostava do que parecesse feitiço ou maldade. E no pequeno cercado estava já o burro chumbo, de que os outros não tinham carecido. Sem excogitamento, o burrinho dera a Tio Bola o remate da ideia.
Lá fora o escuro fechava. O Anjão no pátio acendera fogo, acocorava-se ante chama e brasa. Esse se ria do sossego. Também botara milho e sal no cocho, mandado.
Natal era animação para surpresas, tintins tilintos, laldas e loas! O burro e o boi – à manjedoura – como quando os bichos falavam e os homens se calavam.
Nhota, em seus cantos, rezava para tomar ar, não baixando minuto, e tudo condenava. Tio Bola esperava que o Anjão se fosse, que Nhota não tossisse mas adormecesse.
Estava de alpercatas, de camisolão e sem carapuça, esticando à janela pescoço e nariz, muito compridos. Os currais todos ermos, menos aquele… Tremia de verdade.
Veio, enfim, à sorrelfa; a horas. Pelas dez horas. Queria ver. Devagar descera, com Deus, a escada. Burro e boi diferençavam-se, puxados da sombra, quase claros. Paz. Sem brusquidão nem bulir: de longe o reconheciam.
Os olhos oferecidos lustravam. Guarani, boi de carro, severo brando. Jacatirão, prezado burrinho de sela. Tio Bola tateou o cocho: limpo, úmido de línguas.
Empinou olhar: a umas estrelas miudinhas. Espiou o redor – caruca – que nem o esquecido, em vivido. Tio Bola devia distrair saudades, a velhice entristecia-o só um pouco. Riu do que não sentiu; riu e não cuspiu. Estava ali a não imaginar o mundo.
Por um tempo, acostumava a vista.
Nhota dormia, agora, decerto; até o Anjão. Os outros, no Natal, na vila, semelhavam sempre fugidos… Quem vinha rebater-lhe o ato, fazer-lhe irrisão? De anos, só isto, hoje somente, tinha ele resolvido e em seu poder: a Noite, o curralete, cheiro de estercos, céu aberto, os dois dredemente – gado e cavalgadura. Boi grosso, baixo, tostado, quase rapé. Burro cor de rato. Tão com ele, no meio espaço, de-junto. Caduco de maluco não estava. Não embargando que em espírito da gente ninguém intruje. Apoiou-se no topo do cocho. Bicho não é limpo nem sujo. Ia demorar lá um tanto. Só o viço da noite – o som confuso?
O Anjão, rondava. Nhota, também, com luz em castiçal, corria a casa; não chamava alto, porque lá a doença não lhe dava fôlego. Turro, o boi ainda não se deitara, como eles fazem – havia de sentir falta do Guaraná, par seu de junta. Burro não deita: come sempre, ou pára em pé, as horas todas. A gente podia esperar, assim como eles, ocultado num ponto do curral. Tudo era prazo.
Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza… O voo de serafins, a sumidez daquilo. Mas, pecador, numa solidão sem sala. E um tiquinho de claro-escuro.
Teve para si que podia – não era indi – até o vir da aurora. Que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo do juízo!
Tão gordo fora; e, assim, como era, tinha só de deixar de fora seus rústicos cotovelos. Agora, o comichar, uma coceira seca. Viu o boi deitar-se também – riscando primeiro com a pata uma cruz no chão, e ajoelhando-se – como eles procedem. O mundo perdeu seu tique-taque. Tombou no quiquiri de um cochilo. Relentava. Ouviu. O Anjão estava ali, no segundo curral, havia coisa de um instante. Que se aquietasse, pelo prazo de três credos.
Manteve-se. A hora dobrou de escura. Meia-noite já bateu? Abriu olhos de caçador. Dessurdo, escutou, já atilando. Um abecê, o reportório. Essas estrelas prosseguiam o caminhar, levantadas de um peso. Fazia futuro. O contrário do aqui não é ali… – achou. O boi – testo lento, olhos redondos. O burrinho, orelhas, fofas ventas. Da noite era um brotar, de plantação, do fundo. A noite era o dia ainda não gastado. Vez de espertar-se, viver, esta vida aos átimo… Soporava. Dormiu reto. Dormindo de pés postos.
Acordou, no tremeclarear. Orvalhava. A Nhota dormia também, ali sentada no chão, sem um rezungo. O Anjão, agachado, acendera um foguinho. Conchegados, com o boi amarelão e o burro rato, permaneciam; tão tanto ouvindo se passarinhos em incerta entonação.
A estrela-d’alva se tirou. Já mais clareava. As pretas árvores nos azulados… O Anjão se riu para o sol. Nhota entoava o Bendito, não tinha morrido. Cantando o galo, em arrebato]: a última estrelinha se pingou para dentro.
Tio Bola levantou-se – o corpo todo tinha dor-de-cabeça. Deu ordens, de manhã, dia: o Anjão soltasse burro e boi aos campos, a Nhota indo coar café. Os outros vinham voltar, da vila, de Natal e missa-do-galo. Tio Bola subiu a escada, de camisolão e alpercatas, sarabambo, repetia:
– Amém, Jesus!
Em Tutaméia (Terceiras Histórias), 1967
OBSERVAÇÃO: O único livro de poemas escrito por Guimarães Rosa foi Magma, em 1936, livro de estreia, que ele não autorizou publicação, por autocrítica. Foi publicado em 1996, postumamente. Li o livro e não constam nele os 2 poemas acima. O que significa que escreveu ambos, de forma avulsa (talvez por encomenda de algum periódico para a data – por exemplo.)
Das vezes em que bebi natais, aquelas com você foram as mais doces Uma preparação a dois nossas comidinhas prediletas tudo simples tudo repleto de temperos nossos nossos presentes particulares nossa roupa branca nosso jeito de rir o bacalhau da sogra portuguesa nossos pilequinhos de dionisos tropicais.
Das vezes em que bebi natais, aquelas com você foram as mais doces o lombo com sabor de laranja nosso arroz de nozes nosso manjar branco nosso rei-alberto as rabanadas da mãe o pernil da sogra o sorvete de pote às colheradas, na cama a salada de frutas geladinha os vinhos de tantos prazeres de tantos encantos
Das vezes em que bebi natais, aquelas com vocês foram as mais doces.
Sugestão de leitura:
” Afinal, o que é Amor? É possível fazer o romance durar para sempre?“
Natal Penso em Natal. No teu Natal. Para a bondade A minh’alma se volta. Uma grande saudade Cresce em todo o meu ser magoado pela ausência. Tudo é saudade… A voz dos sinos… A cadência Do rio… E esta saudade é boa como um sonho! E esta saudade é um sonho… Evoco-te… Componho O ambiente cuja luz os teus cabelos douram. Figuro os olhos teus, tristes como eles foram No momento final de nossa despedida… O teu busto pendeu como um lírio sem vida, E tu sonhas, na paz divina do Natal…
Ó minha amiga, aceita a carícia filial De minhalma a teus pés humilhada de rastos. Seca o pranto feliz sobre os meus olhos castos… Ampara a minha fronte, e que a minha ternura Se torne insexual, mais do que humana, – pura Como aquela fervente e benfazeja luz Que Madalena viu nos olhos de Jesus…
– Manuel Bandeira, em “A cinza das horas”, 1917.
Versos de Natal Espelho, amigo verdadeiro, Tu refletes as minhas rugas, Os meus cabelos brancos, Os meus olhos míopes e cansados. Espelho, amigo verdadeiro, Mestre do realismo exato e minucioso, Obrigado, obrigado!
Mas se fosses mágico, Penetrarias até o fundo desse homem triste, Descobririas o menino que sustenta esse homem, O menino que não quer morrer, Que não morrerá senão comigo, O menino que todos os anos na véspera do Natal Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
Manuel Bandeira, em “Lira dos cinquent’anos” 1940.
Natal sem Sinos No pátio a noite é sem silêncio. E que é a noite sem o silêncio? A noite é sem silêncio e no entanto onde os sinos Do meu Natal sem sinos?
Ah meninos sinos De quando eu menino!
Sinos da Boa Vista e de Santo Antônio. Sinos do Poço, do Monteiro e da Igrejinha de Boa Viagem.
Outros sinos Sinos Quantos sinos
No noturno pátio Sem silêncio, ó sinos De quando eu menino, Bimbalhai meninos, Pelos sinos (sinos Que não ouço), os sinos de Santa Luzia.
Manuel Bandeira (Rio de Janeiro, 1952), “Antologia poética“. 12ª ed., Rio de Janeiro: Sabiá, 1986.
Presepe Chorava o menino.
Para a mãe, coitada, Jesus pequenito, De qualquer maneira (Mães o sabem…), era Das entranhas dela O fruto bendito. José, seu marido, Ah esse aceitava, Carpinteiro simples, O que Deus mandava. Conhecia o filho A que vinha neste Mundo tão bonito, Tão mal habitado? Não que ele temesse O humano flagício: O fel e o vinagre, Escárnios, açoites, O lenho nos ombros, A lança na ilharga, A morte na cruz. Mais do que tudo isso O amedrontaria A dor de ser homem, O horror de ser homem, — Esse bicho estranho Que desarrazoa Muito presumido De sua razão; — Esse bicho estranho Que se agita em vão; Que tudo deseja, Sabendo que tudo É o mesmo que nada; — Esse bicho estranho Que tortura os que ama; Que até mata, estúpido, Ao seu semelhante No ilusivo intento De fazer o bem! Os anjos cantavam Que o menino viera Para redimir O homem — essa absurda Imagem de Deus! Mas o jumentinho, Tão manso e calado Naquele inefável, Divino momento, Esse bem sabia Que inútil seria Todo o sofrimento No Sinédrio, no horto, Nos cravos da cruz; Que inútil seria O fel e vinagre Do bestial flagício; Ele bem sabia Que seria inútil O maior milagre; Que inútil seria Todo sacrifício…
Manuel Bandeira, em “Belo belo“, 1948.
Canto de Natal O nosso menino Nasceu em Belém. Nasceu tão-somente Para querer bem.
Nasceu sobre as palhas O nosso menino. Mas a mãe sabia Que ele era divino.
Vem para sofrer A morte na cruz, O nosso menino. Seu nome é Jesus.
Por nós ele aceita O humano destino: Louvemos a glória De Jesus menino.
Manuel Bandeira, em “Belo belo“, 1948
Os sinos
Sino de Belém, Sino da paixão… Sino de Belém, Sino da paixão… Sino do Bonfim!… Sino do Bonfim!…
Sino de Belém, pelos que ainda vêm! Sino de Belém, bate bem-bem-bem. Sino da paixão, pelos que ainda vão! Sino da paixão, bate bão-bão-bão.
Sino do Bonfim, por que chora assim?… Sino de Belém, que graça ele tem! Sino de Belém bate bem-bem-bem. Sino da paixão. – pela minha irmã! Sino da paixão. – pela minha mãe!
Sino do Bonfim, que vai ser de mim?…
Sino de Belém, como soa bem! Sino de Belém bate bem-bem-bem. Sino da paixão… Por meu pai?…-Não! Não! Sino da paixão bate bão-bão-bão. Sino do Bonfim, baterás por mim?…
Sino de Belém, Sino da paixão… Sino da paixão, pelo meu irmão… Sino da paixão, Sino do Bonfim… Sino do Bonfim, ai de mim, por mim!
Sino de Belém, que graça ele tem!
Manuel Bandeira (Rio de Janeiro, 1952), “Antologia poética“. 12ª ed., Rio de Janeiro: Sabiá, 1986.
UM NATAL Quando menina nunca desejei ser bailarina. Preferia lousa, giz e apagador. De meias brancas, novas, de sapatinho branco, novo, íamos, família grande pai, mãe, cinco filhos cultivar nossas saudades de avôs, avós, tios, primos distantes noutra cidade noutro estado noutras vidas. Natal era enfeitar uma árvore com bolas de vidro “Cuidado, não toque, que quebram”. Natal era preparar uma comida diferente e aguardar presentes, simples, sempre entregues antecipadamente, que meu pai não cultuava ritos estrangeiros, nem neve em árvore, nem hipocrisias. Natal era um dia como outro qualquer porque por seus ensinamentos, todos os dias são dias novos de sapatos brancos e meias brancas como os de um doce Natal.
ÁRVORE DE NATAL monta arruma enfeita ilumina fascínio casa com criança confeitos de olhar confeitos de tocar confeitos de comer magia pisca-pisca colorido magia encanto e sedução casa com criança poesia
INFÂNCIAS alegria presentes presenças esperas, suspiros presépio, orações, cantigas hora esperada sininho que bate figura bonachona de vermelho e branco conversas, risos, surpresas admiração, agradecimentos sorrisos sagrados alegria incomparável
MEMÓRIA ceia ausente presentes ausentes moradia ausente rádio ausente pai ausente ternura ausente mãe presente irmãs presentes Presentes eternos a memória côa presentes a memória ensina o presente
MÃOS E CORAÇÃO Minhas mãos sentem mais que meus pés e meus braços Minhas mãos sentem mais que meus cotovelos, meus ombros Minhas mãos sentem mais que meu ventre e meu umbigo Minhas mãos sentem mais que meus lábios e meus olhos Minhas mãos sentem mais mais e mais cada vez mais enquanto me guiam por veredas emolduradas de rios, barcos, árvores, trens, céus, flores e pássaros Minhas mãos sentem vertem lirismo qual água cristalina Minhas mãos sentem incontrolavelmente infinitamente.
A vida é arte do encontro. Embora haja tanto desencontro pela vida”, Samba da bênção, Vinícius de Moraes
FRANCISCO
risco no disco medo abandono introspecção incompreensão susto temor insatisfação dor tristeza intrínseca reflexão risco no disco choque vulto morte choque juventude morte risco no disco sozinho na multidão escondido nas luzes da cidade escondido na música alta escondido nas páginas dos livros risco no disco fuga para si mesmo fuga de si mesmo risco no disco arranhão ferida cicatriz marca incompletude escafandrista de risos alegrias levezas risco no disco pela eternidade
NA TRANVERSAL DO TEMPO
Era a Selminha, era ela. Francisco a reconheceria de qualquer distância, ainda mais do outro lado da plataforma do metrô. Era ela. Para onde estaria indo naquele domingo de manhã? Moraria por ali? Teria feito alguma baldeação, iria para a Paulista ou para a Sé? Não viu Francisco do outro lado ou não o reconheceu? Estava distraída aguardando o trem, olhando na direção contrária? Ou na transversal do tempo?
Francisco correu, subiu as escadas rolantes, passou pela catraca interna, olhou na entrada, olhou do viaduto … mas não a viu mais. Seguiu em direção à Paulista, onde costumava ir aos domingos e só voltar no fim da tarde.
Entrou naquele shopping, as músicas natalinas eram um festival, a decoração das lojas, os corredores cheios, não ficou sozinho um instante. Almoçou, foi andar pela rua, ver a decoração. Caminhou pela Feira de Antiguidades. Cada objeto uma recordação ‘’minha avó tinha, ‘’meu avô tinha’’. Era domingo, antevéspera de Natal. Encomendara uma mini ceia para o dia seguinte. Queria ler, ouvir umas canções, beber aquele vinho caro guardado para um quando especial e ficar alegre ali em seu apartamento na Av. Sumaré.
Selminha visitou Francisco a cada minuto. Recordações dela, de suas identificações com ela, de seu rosto, de seus corpos.
Selminha desceu do metrô na Paulista e foi direto comprar uns enfeites para sua árvore de Natal peculiar e particular. Gostava de inventar com os galhos que tinha em casa, com as plantas que tinha, com os cabides de madeira que tinha. Tudo virava árvore. Comprou seus enfeites. Entrou em um dos shoppings da Paulista. Almoçou. Olhou umas flores expostas. Saiu.
Resolveu ir à Feira de Antiguidades no vão do MASP. Fazia tempo não retornava ali e sempre gostou tanto antes. Cada objeto uma lembrança de familiares já falecidos, de entes queridos. Era uma emoção única. Depois de chorar, caminhou pela rua, tomou o metrô de volta. Ainda tinha que terminar de enfeitar sua casa. A ceia era um prazer.
Desceu na Estação Sumaré e foi para sua rua, cheia de pacotes. Morava em uma vilinha, na transversal da Av. Sumaré.
QUE DE SUPOSTOS CONTRASTES opostos repostos dispostos também se amparam os sentidos também se amparam os toques também se amparam os risos também se amparam as rimas também se amparam os ombros a vida ainda é curta
Eta vida besta , meu Deus! diria meu poeta itabirano do céu, nas estrelas.