O homem adquirira a mudinha da ameixeira na feira de mudas na grande metrópole. Sem muito terreno para plantá-la, acondicionou-a numa caixa de concreto com terra boa. Molhava sua mudinha com atenção, mas ela crescia sem características, sem se desenvolver, sem seguir em frente.
Anos se passaram assim. O homem até esqueceu que muda era aquela. Mudou-se para outra região, levou a caixa de concreto. Com novos ares, novo clima, novo sol, nova sombra, a muda começou a florescer. Flores branquinhas, lindas. Mas ainda era a caixa de concreto o seu berço. Assim pelos 3 anos seguintes.
Certo dia, formigas comeram-lhe todas as folhas e restaram-lhe apenas galhos na cor marrom. O homem resolveu cortar quase tudo da ameixeira e replantá-la fora da caixa de concreto.
Demoraram meses para que a árvore demonstrasse sinal de vida . O homem pensou até em retirá-la da terra, guardá-la como suporte de enfeites para a época do Natal.
Naquele dia, olhando que outras árvores frutíferas e flores lhe agradavam a manhã, reparou naquele tronco marrom de mais de 10 anos. Havia nele pequenas florezinhas brancas, botões que brotavam do caule quase sem folhas.
Há uma nostalgia de bolo de fim de tarde na memória.
Fazer formas de bolo de laranja, com casca, no sabor meio-amargo, sem firulas, nem requintes, nem coberturas e caldas. Bolo enfeitado ainda quente apenas com a manteiga que escorre pelos dedos de fim de tarde, apenas isso. Só isso. Chove, faz frio.
Depois das cinco, ouvem-se as vozes estridentes dos 2 gêmeos de 4 anos que descem do elevador, voltando da escola.
-Hum, que cheiro de bolo – grita um dos gêmeos, frente à porta. E como quem está com ele nada diz, repete: -Hum, que cheiro de bolo!
Filipe era um ilhéu. Fora nascido e criado em Ilha Bela e desde cedo se pegava admirando o mar, fugia para cantos solitários a se encantar com o mar. Colecionava tudo que tivesse cheiro de mar. Areias eram tingidas com o que lhe chegasse às mãos e colocadas em garrafinhas, como se quisesse ter o mar no quarto sempre. Aprendera muitas graças e segredos do mar com os pescadores quando retornavam das pescas diárias. Ouvia o mar em si.
Adolescente ainda, decidiu que estudaria Oceanografia. Queria ir fundo. Como se um canto de sereia o imantasse aos oceanos.
Na universidade fez muitos estudos de campo, teve aulas de mergulho, aprendeu a fotografar o fundo do mar, a recolher corais, algas, a medir a quantidade de peixes por quilômetros de mar. A biologia marinha o sorveu em goles longos, saborizou suas taças de luzes e perfumes de mar. Estudava e permanecia muito tempo na água. No continente sentia vontade de voltar ao mar. Era como se Janaína, sedutoramente, o fizesse realizado, nas águas do mar.
Foi viver no Rio de Janeiro e passou a se debruçar em estudos sobre as Ilhas Cagarras. Gostava de namorar suas ilhas, era um ilhéu. Nos dias de chuva, com areia molhada, ficava ali olhando a vida de longe.
Conheceu e se alinhou à gestão ambiental e foi estudar o arquipélago. Começou pela Ilha Comprida. No barco que os conduzia ás pesquisas, foi fisgado pela isca do olhar de Nara, bióloga e responsável por aquela expedição. Encantou-se por seu conhecimento, seu tom de voz de sereia do mar, quase um canto.
Mergulharam juntos, filmaram as profundezas daquela ilha. Subiram e, em terra firme, se viram muito próximos. Mais por olhares, silêncios e barulhos de mar. Durante semanas na mesma rotina se amaram naquelas ilhas. A rede de pesca da sereia havia trazido um amor de Netuno a eles.
Nara havia nascido na Ilha do Governador e sempre se encantara com o mar. Colecionava tudo que tivesse cheiro de mar. Recolhia conchinhas pelas manhãs, namorava o pôr do sol nas águas…
Eram dois seres marinhos.
“Mar, metade da minha alma é feita de maresia Pois é pela mesma inquietação e nostalgia, Que há no vasto clamor da maré cheia, Que nunca nenhum bem me satisfez. E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia Mais fortes se levantam outra vez, Que após cada queda caminho para a vida, Por uma nova ilusão entontecida.
E se vou dizendo aos astros o meu mal É porque também tu revoltado e teatral Fazes soar a tua dor pelas alturas. E se antes de tudo odeio e fujo O que é impuro, profano e sujo, É só porque as tuas ondas são puras.“
“O mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.”
“Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou — amigo — é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.”
Fragmentos de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa
Tenho amigos homens que carrego comigo no meu ramalhete. Gosto de presenteá-los com livros. Em 2015, voltei a São Paulo e ao participar de um evento cultural com a presença do jornalista amigo, consegui dele um livro, esgotado nas livrarias, e uma dedicatória para o meu amigo médico de família, aqui na cidade, que era fascinado pelo tal jornalista. A dedicatória de São Paulo enobrecia o ofício de ser um médico de família. Pude entregar a ele, que vibrou como criança com o presente. Sua filha, certa vez me disse, enquanto tratava de meus dentes “Meu pai adora você.” Amigos sabem valorizar o que recebem de presente.
UMA MARIA Mudara-se para aquele vilarejo onde todos viviam desde a infância. Mudara-se sozinha. Tinha planos de estar só, admirar o nascer do sol, o crepúsculo, o desenho das nuvens e semear flores, muitas flores a colorirem seus dias, que sozinha com elas estaria. Qual A Filha de Ryan. -Quem é essa mulher? Estranha, fala pouco, não fica na janela, só cuida de flores. -Como pode viver assim? Sem homem, não faz falta? Alguma coisa tem aí. Homens como eu estranham isso. Muito estranho mesmo. Flores pelos cantos, podas, carinhos e afetos. Música, todos os tipos de músicas. -Já viu o que pôs lá agora? Quando puder, olha lá. Cada dia mais flor, nunca vi igual. Acho que não faz nada na vida mais, né. -Não tem filhos, netos, nada, coitada. Ninguém vai na casa dela. -Também, né. Maria, a das flores, cai da escadinha de abrir, quebra 5 costelas, sofre dores de gritar na ambulância. Pede que o jardineiro cuide de suas flores. Melhorando das costelas, perde as chaves de casa. Trancam sua vida, aspergem energias turvas sobre seu recanto florido. -Vem cá, pode cobrar bem dela, viu, tem muito dinheiro. Não cobra pouquinho igual pra gente aqui não, pode cobrar bem, pra abrir aí. Maria cuida das flores, semeia cores e alegrias. Maria asperge luz no vilarejo. Cai na calçada, em frente, parte ombro, impedida de fazer o que mais gosta. Imobilizada. Sente nuvens negras sobre si. Doem-lhe aqueles sentimentos, inimagináveis antes. Recuperando-se aos poucos, anos a fio, enxerga comentários sem serem vistos. Sente aviltamentos a cada dia. -Não quer que pare aí por quê, incomoda em quê, seu policial? -Rapaz, você parou na frente da garagem dela, de noite! Maria não tem mais a agilidade de braços, ombro e tronco como antes. Pede ao jardineiro que cuide de suas flores. Derrubam-lhe demarcações de garagens, destroem o que é de seu. -Vou consertar, dona Maria, mas nunca vi isso. É a terceira vez. Faço isso uma vez só em outras casas e lojas e não derrubam assim. Maria vê-se quase muda, violentada em uma paciência amordaçada. -É velha, reclama de tudo assim, porque é velha, olha a cara dela. Velha! – grita o homem torpe da rua para Maria ouvir. O tempo vai passando, Maria cai em casa e quebra joelho e punho. Imóvel, entorpecida por energias do mal, repletas das invejas todas de homens e de mulheres. Vê-se compulsivamente obrigada a ir-se. Toda agressividade e violência, em todos os tipos de enquadramentos, a impelem a ir-se. Nos dias que se seguiram fez doações de todas as suas flores, de todos os seus livros, de móveis, roupas, sapatos e bolsas aos moradores do vilarejo, que sem qualquer pejo ou releitura de suas vidas, encheram sacolas e caminhonetes com as doações. Maria foi embora.
Texto de uma série, em respeito ao mês de conscientização pelo fim da violência contra a mulher, reflexões sobre o feminicídio. Escritos por quem tem de verdade LUGAR DE FALA. Leia aqui no blog também: Como Frida K- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2023/08/10/como-frida-k/Memórias póstumas -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2023/08/06/cronica-de-domingo-memorias-postumas/
Postagem de número 1950, desde dezembro de 2015: 98% autoral
NÃO BASTA Ama os animais, como eu, mas não basta. Ama as árvores como eu, mas não basta. Ama os lagos e os rios, como eu, mas não basta. Ama os seres humanos, como eu, mas não basta. Ama a terra primitiva, como eu, mas não basta. Ama o simples, o rústico, o histórico, como eu, mas não basta. Ama os mais humildes, como eu, mas não basta. Ama os que lutam contra as injustiças, como eu, mas não basta. Ama ler versos, como eu, mas não basta. Ama escrever versos, como eu, mas não basta. Ama a mim, mas isso não basta?!
Poesia: Odonir Oliveira
Foto de arquivo pessoal: minha violeta ao amanhecer
CASOS, ACASOS E OCASOS No asilo de idosos, dona Mina, a Guilhermina, houve lá fora crianças jogando bola, correndo, falando alto. É pra gente lembrar que tem vida lá fora. Da janela de vidros largos, alcança com suas mãos o alvorecer, o entardecer, o anoitecer. Fotografa, sem equipamento tecnológico algum, apenas com dois olhos que acumulam cataratas, a vida à sua frente. Parecem filmes em technicolor, como os primeiros que viu. Amanhece e dona Mina abre os olhos para mais um dia nos seus oitenta e tantos – já parou de contar. Às vezes quer se lembrar de todos os netos, mas só lendo os nomes deles no papelzinho da mesinha de cabeceira. As dores nos ombros, nos joelhos, na coluna a castigam muito. Nunca fora rezadeira, frequentadora de missas e novenas, até por isso observa a fé das manhãs e das tardes das companheiras de asilo. Encanta-se com as novelas da TV, acha os horários das refeições muito diferentes daqueles dos dela antes, não se acostuma. E não gosta nem um pouco de ser tratada por -inha. Parecem achá-la uma boboquinha, uma criancinha, uma lindinha. Tem nome próprio e prefere beijinhos de chegada e de partida sinceros, nada de meu bem. Ouve os passarinhos e os meninos correndo na rua. Na hora do almoço voltam da escola, depois do almoço jogam bola na rua, brincam de correr. Ela não vê, ouve apenas. Salpicam-lhe imagens dos filhos correndo na vila operária e sua vigília atenta na cadeira na frente de casa. Cuidado, menina, vai se esborrachar no chão. Vem pra dentro, hora de dormir, amanhã tem escola, vem logo. Tudo em cores, ao vivo em sua memória. Acha aquilo bom, ter crianças correndo perto do asilo. Acha bom. O crepúsculo se vai, anoitece, liga a TV, vê as novelas. Todas elas. O dia vai clarear outra vez amanhã.
“Não separo isso a que chamamos de realidade dessa outra realidade fictícia que é a da imaginação, que é a da invenção…”– José Saramago
“A vida é um descuido prosseguido”– Guimarães Rosa
NOTA DE PESAR: Encontro pelas veredas por onde me embrenho, mães com filhas de 6, 7 anos em manicures, incentivando nelas maquiagens, aumento de cílios, falas de adultas… O sonho, a imaginação, a criação se sufocam e se afogam em clichês, repetições, reels prontos… Essa geração que tem braços, antebraços, mãos e celulares como membros superiores, precisa aprender – e seus pais precisam ensinar – que criar é muito mais importante do que se ter um celular como parte do corpo, aderente aos bolsos das calças e das bermudas furadas. Socorram-se a si mesmos e a seus filhos.
LAVANDAS AOS VENTOS lavandas aos ventos vorazes lavam as Vandas lavam as lembranças levam e lavam as tramas as tranças lavandas aos ventos levam e lavam e perfumam também.
ABRINDO OS COFRES DE METÁFORAS– Uma jovem se dispôs a declamar poesias de sua autoria. Ocorre que antes de cada uma, explicava por que a escrevera, quando, o que queriam dizer seus versos etc. De forma veloz, antecipada e desavisada, parecia querer garantir que se faria entender e, mais do que isso, que entenderiam exatamente aquilo que escreveu. E declamou também. Os poetas não declamam seus versos- já dizia Drummond- dizem seus versos, leem seus versos. Quem os declama são profissionais da declamação: atores, locutores e outros. Cada declamação já vem carregada de interpretação, refletida nas entonações, nos destaques dados às palavras, nas pausas etc. Interpretar versos é tarefa a ser burilada, visto que requer experiência na leitura de versos, experiência com a linguagem e o ritmo dos versos e, principalmente, experiência de vida, leitura de mundo. Leituras de crianças e de adolescentes, contudo, não deixam de ser bonitas, talvez pelo charme pueril que concentram ou mesmo pela total falta de compromisso interpretativo que apresentam.