MULHER, DIARIAMENTE
Não está vendo ali?
É uma mulher.
Tem cheiro de mulher
Tem jinga de mulher
Tem sorriso visguento de mulher
Tem redondos e doces de mulher
Não está vendo ali?
É uma mulher.
Chora aos baldes como mulher
Ensina aos ventos e tempos como mulher
Arremata discursos com exclamações sem vírgulas como mulher
Cuida de seres animais, vegetais e humanos como mulher.
Não está vendo ali?
É uma mulher.
Enfeita o cenário
Compõe a moldura
Derrama tintas
E socorre feridas.
Não está vendo ali?
É uma mulher.
Depois de um encontro presencial com a escritora Marina Colasanti, em 2018 quando, em uma performance inteligente, fazia perguntas e ela mesma as respondia, e tendo assistido a um vídeo, no Youtube, com a última entrevista de Clarice Lispector, imaginei conceder uma entrevista a mim mesma. Afinal, todos temos o que dizer, sejamos escritores publicados e famosos ou não, não é mesmo?
Pergunta: Qual a trilha sonora da sua vida?
Resposta: Nessa ordem cronológica: Beatles, Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano,Villa Lobos e muitos eruditos medievais, renascentistas, barrocos …
P: Como foi seu processo de escrita, de criação, desde quando isso aconteceu?
R: Ah, desde os 10 anos fazia as redações da escola pra mim e pra mais uns 5 ou 6. E fui mudando o estilo na escrita, afinal as professoras não poderiam reconhecer meu jeito de escrever. Com isso, lucrei muito porque para um mesmo tema, eu criava diversos desenvolvimentos, era um exercício e tanto. E naquele momento, não tinha claro essa coisa de ”cola”, fraude escolar, nada disso. Gostava de ser lida, ser elogiada. A nota era o de menos. Às vezes as redações deles tinham notas superiores às escritas por mim, com meu ortônimo – digamos assim. Eu achava até divertido aquilo.
P: Qual a temática dos seus escritos? Prefere, acha mais simples, a poesia ou a prosa?
R: Não sei escrever mentindo. Escrever poesias não é simples, pelo menos pra mim. É preciso estar envolta em uma grande carga emotiva. A emoção estética é essencial para meus versos. Ela nasce, brota de um sentimento verdadeiro de amor, ódio, repulsa, compaixão, dor. Já a prosa flui mais naturalmente – creio que é porque eu seja muito faladeira, goste de prosear, coisa quase desaprendida atualmente. Percebo que ninguém quer falar mais, nem ao telefone. Só escrevendo, só resumindo, reduzindo tudo. Parece um tempo de esconderijos de todas as emoções, sensações. Meus temas dizem respeito àquilo que vivo e ao que vivem os que conheço ou conheci. Fabulo um pouco, por exemplo, quanto às características das personagens – muitas vezes colocando em uma as cores de muitas – mas escrevo de forma muito mais realista do que gostaria até.
P: Como assim, não gostaria de ser realista? Isso é um problema?
R: Ah, sim. ”Qualquer semelhança terá sido mera coincidência”, sabe? Pois é, às vezes os envolvidos se reconhecem no que escrevo e se surpreendem, ou não gostam ou ficam lisonjeados demais etc. Mas creio que faça parte. Todos aqueles que conviveram com cronistas, romancistas, poetas, acabarão se reconhecendo um pouco, ou muito, em seus escritos. Poderão até sentir-se musas inspiradoras de suas letras.
P: Sua inspiração está mais nos humanos ou na natureza, nos animais, nas pedras, nas nuvens … o que rende poesia e por quê?
R: Ah, gosto de gente. Mas de gente verdadeira no caráter, na explicitação de sua espécie. Seja um bom ou um mau caráter, mas transparente, sem cabotinismos, porque na verdade, a meu ver, não se expor revela medo, ou já haver sofrido experiências muito ruins ao ser explícito, ter sido ridicularizado, menosprezado etc. ou por não ter personalidade e viver se adaptando em forma e conteúdo aos ambientes aos habitats, por sobrevivência. Aí é muito ruim porque nunca se sabe com quem se está lidando, são muitas as máscaras. Faz lembrar aquele filme de Woody Allen, Zelig. Minha poesia nasce dos aspectos que vivencio, sejam eles com gente ou com a natureza.
P: Desses aspectos da natureza que são matéria-prima para sua poesia, quais os mais inspiradores?
R: Gosto de rios, lagos, cachoeiras e de mato. Também gosto de mar, mas como nasci, cresci e vivi em algumas cidades de mar, não me encanta mais. Do alto, gosto de olhar a imensidão do mar, mas não mais as praias repletas de turistas, ambulantes, gritarias. Já gostei disso, das turmas de amigos, das risadas, das cervejas e das caipirinhas à beira-mar. Hoje prefiro a tranquilidade dos bem-te-vis e das maritacas. Pra escrever quero solidão. Aliás dizem que todo poeta, escritor é solitário. Pode ser. Outra coisa, por temperamento, nunca pergunto a outros o que acharam do que escrevi, do que eu fiz. Não tenho esse interesse. Se alguém se manifesta, ouço, aceito, contesto, complemento, mas nunca tive essa necessidade de saber o que o outro está pensando de mim, do que escrevo. Porque escrevo e ponto. Creio que seja por isso.
P: Como vê os jovens escrevendo muito pelo twitter, pelas redes sociais em geral? Acredita que leiam também, na mesma proporção em que escrevem?
R: Vejo com certa tristeza a utilização de plataformas e ferramentas tão abrangentes estarem sendo sucateadas da forma que estão. Jovens leem pouco, gostam de mensagens curtas, de fácil digestão. E seguem o efeito manada, aí são compartilhadas as maiores torpezas, barbaridades, como verdades, como gracejos etc. Faz um tempo, uns 10 anos, entrei para o twitter, a fim de ler e observar seu conteúdo, temas, linguagens. Na época com apenas 140 caracteres. Dei um curso em SP sobre isso ”Do telegrama ao twitter, como estão escrevendo nossos alunos”. Depois não mais usei a tal rede social. Só leio alguns T e RT e estranho. Faz umas 2 semanas, uma jovem, filha de um primo, me alertou sobre um T. público e fui ler. A mocinha ridicularizava o amor de uma mulher por seu tio, debochando e mencionando uma carta que a tal mulher havia escrito, e ele nem sequer havia lido. E ria disso, escrevia abreviações de interjeições pouco delicadas etc. Priscila – que conhece a família e fora amiga de uma das moças quando aqui vivera – ficou chocada com o uso da vida alheia exposta daquela forma e, como sabe que me interesso por esses temas, me mostrou. É disso que tenho receio. Uma ferramenta, como o twitter, que pode ser usada para se ensinar a técnica do resumo, a mensagem mais sucinta, estar sendo usada para difamar e menosprezar pessoas. É muito sério. E a leitura tem ficado pra trás sim. Leem textos engraçados, memes, críticas e comentários sobre séries americanas e campanhas sociais de amplitude mundial, mas não leem o que precisariam, por exemplo.
P: O que precisariam ler hoje? Escreveriam melhor se lessem mais?
R: Ítalo Calvino tem um livro muito útil e claro ”Por que ler os clássicos?”, no qual expõe a necessidade de se ler quem escreveu sobre temas universais. É preciso, contudo, que haja sempre, ou pelo menos no início, um mediador de leitura. Isso propiciaria intervenção, discussão e progressos nas leituras. Clássicos fazem as pessoas crescerem, se humanizarem, tornam-nas mais verdadeiras, de carne e osso. Muitas vezes os exemplos a que os jovens estão sujeitos em família, na sociedade não são os mais úteis à sua formação. Quanto mais se lê, mais se compreende a vida, as relações entre as pessoas. Quem lê muito não necessariamente escreverá – há devoradores de livros que nunca quiseram escrever. Mas, seguramente, quem escreve bem leu muito. E há os intuitivos, os auto-didatas, que sem formação acadêmica – às vezes apenas semi-alfabetizados – produzem obras-primas de literatura, letras de canções, cordel. De tudo se vê.
P: Qual a sua rotina para escrever, em que períodos do dia, com que frequência? Vê-se obrigada a escrever?
R: Já houve épocas em que escrevia mais à noite. Hoje, prefiro as manhãs. Escrevo todos os dias. Guardo muita coisa. Escrevo só pra mim. Tempos depois se desejar, aí reescrevo, publico etc. Escrita é confessionário pra mim. Não costumo acumular mágoas, decepções a sete chaves. Abro o verbo na escrita ou na fala. As pessoas, em geral, não são assim. Engolem na frente e depois falam por trás e, na hipocrisia, vai-se vivendo socialmente. Confesso que sou meio difícil de ser engolida porque não compactuo com essa forma de conviver. Por aqui costumam me dizer ”Mas tem que ser assim, minha filha, todo mundo faz assim”. Discordo. Aí, escrevo. Por essa razão me vejo sim obrigada a escrever, caso contrário enlouqueceria rapidinho. Certa vez o mineiro Fernando Sabino me disse isso pessoalmente ”se não escrevesse, enlouqueceria, é a minha psicanálise”. Nunca pensei que viria a pensar exatamente igual. Mas penso.
P: O que traz mais motivação para escrever a felicidade ou a infelicidade? Dizem que ostras que sofrem, que têm areia, é que produzem pérolas, não é?
R: Não sei. Prefiro as felicidades. As alegrias são musas inspiradoras. Estar amando, ser amada, ser surpreendida por uma mensagem de amor, por uma atitude inesperada de amor, por um abraço apertado, por um poema, por um beijo na boca apaixonado são condimentos essenciais. Além do nascer e do poente do sol nas estradas, nos lagos e cachoeiras. As flores se abrindo, aos poucos, as árvores sem folhas e depois completamente escandalosas (como dizem por aqui), o galo que canta com o outro uma sinfonia completa todas as manhãs, a chuva que cai forte, o trem que apita 3 vezes ao dia, as maritacas e os bem-te-vis namorando auroras e crepúsculos, tudo isso é poético por excelência. Pelo menos pra mim.
P: Nunca pensou em publicar em livro o que escreve? Não seria melhor para ter tudo reunido em um só lugar, visto que seus escritos estão espalhados por muitos lugares?
R: Já pensei, nos anos de 1990. Trabalhava como leitora crítica de obras infantis e infanto-juvenis para uma editora, mas entendi o mecanismo de todas elas e desisti. Depois, quando escrevi coleção de didáticos de língua portuguesa para outra e percebi a forma de remuneração instaurada por elas, advinda de outras europeias, desisti. Fato é que gosto é de escrever. E, ocasionalmente, de ser lida. Ademais, enviei a um ”editor” todos os meus poemas em um pen-drive e os tive devolvidos via correio. De forma que não aspiro a ser publicada mais.
P: No momento, sente inspiração para escrever num país tão dilacerado como se encontra o nosso?
R: Pois é o que me salva. E o amor. A gente, depois dos 60, crê que não vai mais amar, né, mas ama. E é diferente. É pra sempre, é definitivo. Talvez porque o próprio destino escreva isso pra ser assim. Então, amar abastece a vida, os versos, a escrita. É MUITO BOM AMAR.
Poesia e texto: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal
Vídeo: Canal Música