Já findava a tarde, quando Virgínia chegou em casa. Ao longo do dia, por algum motivo que não lhe parecia claro, lembrou-se do pintor das areias de Itapuã.
Conheceu-o quando vivera no Farol, encontravam-se caminhando pelas areias, logo cedinho. Contara-lhe ele que havia vindo meses antes passar uma temporada ali, em casa de amigos paulistanos, agora completamente baianos. O mar assim bravio como era o do Farol, lhe dava “régua e compasso”, como cantava Gil. Eram conversas bastante amistosas sobre filosofia, artes plásticas, poesia. Virgínia também estava ali passando uma chuva- metaforicamente- Segundo os versos de Gil “meu caminho pelo mundo, eu mesmo traço”. Riam das enfileiradas conversas sentados nas pedras do Farol. Virgínia sempre voltava para casa antes. Ele permanecia, namorando o mar, em seus ritmos, tonalidades, dizia que tudo virava textura, cor e imagem sobre telas. Contou a ela que pintava sobre outros suportes, além da tela e usava diversas tintas, além da à óleo.
Semanas depois, não apareceu mais. Virgínia nunca chegara a ver nada do que pintara o artista. Sabia apenas que se chamava Theo. Alguém no Farol comentou que ele havia viajado para uma exposição na capital do país.
Mais alguns dias e foi a vez de Virgínia retornar para seu estado, para sua cidade. Levou com ela o cheiro de mar, do mar de Itapuã.
Já findava a tarde, quando Virgínia chegou em casa. Abriu cortinas e deparou-se com um cenário esplêndido e o mais inconcebível por estar a uma altitude de 1.160 m, sentiu fortemente cheiro de mar. Permaneceu ali, pois havia cenário e cheiro de mar.
Celinha, a dona Celinha, era um exemplo de solidariedade, empatia e compaixão, bastava saber de alguém doente, corria, largando todos os seus afazeres e compromissos, e ia cuidar do necessitado. Dava banhos, ministrava medicação, cozinhava e se nutria com aquilo, fazer o bem, dedicar-se, sem medir esforços, gratuitamente, altruisticamente. Admirada por todos, dava de ombros, era com prazer que prestava aqueles serviços.
Havia em Celinha um gozo incomum em doar-se daquela forma, por muitos incompreensível, impossível até.
Cuidara do filho mais velho com tuberculose, com tamanho desvelo, sem remédios de alopatia, minuto a minuto, suores a suores, drágeas homeopáticas a drágeas homeopáticas, lentamente, em seu colo, em seus braços. O rapaz de vinte e poucos anos acreditava, de fato, estar entregue a seu anjo da guarda.
Agora era a vez do irmão mais velho de Celinha, com câncer que, não querendo mais ficar hospitalizado, teve conforto em casa de Celinha. Ela o mimava, fazia-lhe chás, trocava-lhe o pijama, vitaminava-o com levedura de cerveja, aveia, grãos vários – eram vitaminas que deveriam ser absorvidas com garfo e faca– comentava ele- tamanha a densidade. Foram meses e meses nesse cuidado extremado, à vista de todos, elogiada por todos.
Naquela manhã de domingo, ouve-se um grito de Celinha pelo filho mais velho que passava ali o fim de semana. O tio lhes dera o último suspiro. Celinha argumenta que havia visto um líquido espesso escorrendo de uma de suas narinas, avisara que iria chamar uma ambulância, mas ele não aceitou.
Calmamente, sem derramar uma lágrima sequer, vestiu o irmão, declinando da ajuda do filho, penteou seus cabelos, passou gaze umedecida em seu rosto.
-Ajude aqui, Celso, tire esse relógio de ouro dele e esse anel de advogado. Gastei muito com ele, me devia muito dinheiro, daqui a pouco chegarão filhos, a esposa atual e pegarão tudo. Ajude aqui, Celso.
RAÍZES DA FELICIDADE Respiro fundo porque esse ar é o da felicidade. Olho meus verdes porque essa cor é a da felicidade. Toco em frutos porque eles me trazem a felicidade. Piso na terra, descalça, em silêncio, porque há nela as minhas raízes da felicidade.
RE-CONEXÕES O diálogo em passarês legítimo, vozes humanas ao longe. O vento reconstruindo a tarde, vozes humanas ao longe. O perfume de mato nos olhos, vozes humanas ao longe. O sabor de flores na pele, vozes humanas ao longe. Re-conexões.
CORAL Sem maestro, sem batuta, sem andamento ensaiado, sem contornos de apresentação cênica. Há vozes, há harmonia, há orquestração espontânea, coordenada por um Regente Maior. Espetacular!
Amar alguém parece que está ligado a admirá-lo, considerá-lo como digno de intimidade, de troca de ideias, pensares e desejares especiais. Há de haver um significado de companheirismo particular, incomum e íntimo. Parece-me que isso leva à vontade, e até à necessidade de se saber o que o outro estaria pensando sobre um acontecimento, uma tragédia, um fato – ainda que não esteja mais presente, nem esteja sequer vivo mais. Creio que amar alguém faz isso com quem ama. Será?
JANELAS ABERTAS
Viver tudo
ao mesmo tempo
Ele querendo corpo, pulso, pescoço, orelhas, carne e ossos
Ela querendo corpo, pulso, pescoço, orelhas, carne, ossos e suspiros e palavras.
Estar na vida sem doar-se e dar-se ao amor é medíocre e vão.
Enamorem-se até os últimos momentos de suas existências.
É o enamorar-se que nos torna mais humanos e doces com nossos semelhantes
Abençoado é aquele que ama e se deixa amar.
Moços e moças, enamorem-se.
O DEBUT
Qual é a medida de tempo para que algo tenha se tornado antigo, possa ser dito que antigamente, se fazia assim?
Vejo nas redes sociais pequenos vídeos de produtos, hábitos, modas, músicas dos anos de 1980 e considerados antigos. Seria essa a medida do tempo? Jovens com menos de 50 anos considerando-se velhos, recordando o passado- recentíssimo- como algo que se passou há muito tempo.
O ritmo vertiginoso das cenas, das imagens e de tudo em torno disso faz com que 5 anos já sejam uma eternidade. Ah, que pena!
Nos anos de 1960 e 1970, os bailes de debutantes, as festas de 15 anos eram costumeiros nas famílias de classe média. Eram a entrada das mocinhas no mundo dos adultos. Era a primeira vez que se calçava sapatos de salto, usava-se anágua ou saiote, sob os vestidos para que não ficassem transparentes (às vezes até os sutiãs eram vestidos apenas a partir desse momento). Os cabelos penteados na cabeleireira, as unhas feitas na manicure, tudo representando um rito de iniciação, de entrada em um novo caminho. As valsas de 15 anos eram dançadas com o pai, com os irmãos e depois com os amigos, que por sua vez formavam pares com as amigas da debutante. Eram nesses bailes que os primeiros amores vicejavam, no corpo a corpo masculino e feminino iniciáticos. Puro deleite, puro prazer na pele, nas risadas, nas identidades. Era belo se ver e se sentir no enlevo daqueles momentos.
A missa na Igreja, quando se citava a aniversariante. Mais tarde o bolo de aniversário, os docinhos, os presentes… tudo registrado em emoção e gozo inesquecíveis.
O tempo vertiginoso dessas últimas décadas vem afastando contatos telefônicos, voz, encontros, toques, concentração, reflexão e dedicação entre as pessoas. De repente, mas de repente, tudo o que se conheceu passou a ser considerado de antigamente. Que pena!
O etarismo cada dia mais cruel empurra os mais velhos para a natação, a caminhada, a academia, a musculação, ainda que sob tortura, “tem que fazer, tem que ser assim”. Mas por quê? Antes não era assim. Passear naturalmente, caminhar naturalmente, contemplar o belo naturalmente era o que havia de melhor. Tem-se, em cidades pequenas, a ideia de que alguém com 60 anos não poderá fazer compras sozinho, dirigir, ir a médicos, enfim cuidar de sua casa, de suas contas. Tem que ter filhos por perto, netos por perto. Que pena!
Tenho desejado muitas coisas e desejo é algo inexplicável, mas, no entanto, é motor que oferece trabalho.
ANTIGAMENTE, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficava longos meses debaixo do balaio. E levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era de tirar o pai da forca, e não caíam de cavalo magro.
Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam alguém que lhes passava manta e azulava, dando às de Vila-diogo. Os idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n’água.
Havia os que tomavam chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu , exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”; ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava – sinal de defluxo -, eram impelidos a exortar: “Dominus Tecum.” Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não : verdadeiros cromos, umas tetéias.
Antigamente, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um “cabrito”, não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.
Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asthmas os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O.London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam. Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.
II-
Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés sem tugir nem mugir. Nada de bater na corcunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer todo liró ao copo d’água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de um treteiro de topete; depois de fintar e de engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da Candinha: que somava a candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando, encafifada, muita gente na embira, que não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.
Bom era ter costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão; melhor ainda, ter uma caixinha de pós de pirlimpimpim, pois isso evitava de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes que Deus fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca Barbante, isso não: a mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia um doutor pomada, todo cheio de noive horas; ia-se ver, debaixo de tanta farafo era um doutor mula ruça, um pé rapado, que espiga! E a moçoila, que começava a nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía das nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as estribeiras por uma tutaméi, um alcaide que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um cascão de goiabada.
Em compensação, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que vida supimpa a do Degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos que havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no prato em que comera), o testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está-falando, o sangue-de-barata, o dr. Fiado que morreu ontem, o Zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o passador de nota falsa, o mequetrefe, o safardana, o maria-vai-com-as-outras….Depois de mil peripécias, assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo na cerca, ou simplesmente a bota, sem saber como descalçá-la. Mas até aí morreu o Neves, e não foi no dia de São Nunca de tarde: foi vítima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os recursos da ciência, e acreditam que a família nem sequer botou fumo no chapéu.
Carlos Drummond de Andrade
Por décadas, li com meus alunos esse texto de Drummond. Parecia a eles uma outra língua, um antiguês, dialeto do português atual. Isso era um gatilho para trabalharmos diferenças e variantes linguísticas em tempo, regiões etc. Contudo, o mais saboroso era irem levantando hipóteses para o significado das palavras e expressões, dentro do contexto. Ouvíamos cançonetas do início do século XX, em especial os chorinhos. Depois pedia que desenhassem o que descobriram, algumas vezes faziam colagens também. Uma delícia de trabalho com os jovens, que certamente encantaria meu pai lírico Drummond em demasia.
Texto: Carlos Drummond de Andrade
Fotos de arquivo pessoal: capa e páginas da mesma obra
Não sei o nome desse poeta, acho que boliviano; apenas lhe conheço um poema, ensinado por um amigo. E só guardei os primeiros versos: Trabajar era bueno en el Sur. Cortar los árboles, hacer canoas de los troncos(*). E tendo guardado esses dois versos tão simples, aqui me debruço ainda uma vez sobre o mistério da poesia. O poema era grande, mas foram essas palavras que me emocionaram. Lembro-me delas às vezes, numa viagem; quando estou aborrecido, tenho notado que as murmuro para mim mesmo, de vez em quando, nesses momentos de tédio urbano. E elas produzem em mim uma espécie de consolo e de saudade não sei de quê. Lembrei-me agora mesmo, no instante em que abria a máquina para trabalhar nessa coisa vã e cansativa que é fazer crônica. De onde vem o efeito poético? É fácil dizer que vem do sentido dos versos; mas não é apenas do sentido. Se ele dissesse: Era bueno trabajar en el Sur, não creio que o poema pudesse me impressionar. Se no lugar de usar o infinito do verbo cortar e do verbo hacer usasse o passado, creio que isso enfraqueceria tudo. Penso no ritmo; ele sozinho não dá para explicar nada. Além disso, as palavras usadas são, rigorosamente, das mais banais da língua. Reparem que tudo está dito com os elementos mais simples: trabajar, era bueno, Sur, cortar, árboles, hacer canoas, troncos. Isso me lembra um dos maiores versos de Camões, todo ele também com as palavras mais corriqueiras de nossa língua: “A grande dor das coisas que passaram.” Talvez o que impressione seja mesmo isso: essa faculdade de dar um sentido solene e alto às palavras de todo dia. Nesse poema sul-americano a ideia da canoa é também um motivo de emoção. Não há coisa mais simples e primitiva que uma canoa feita de um tronco de árvore; e acontece que muitas vezes a canoa é de uma grande beleza plástica. E de repente me ocorre que talvez esses versos me emocionem particularmente por causa de uma infância de beira-rio e de beira-mar. Mas não pode ser: o principal sentido dos versos é o do trabalho; um trabalho que era bom, não essa “necessidade aborrecida” de hoje. Desejo de fazer alguma coisa simples, honrada e bela, e imaginar que já se fez. Fala-se muito em mistério poético; e não faltam poetas modernos que procurem esse mistério enunciando coisas obscuras, o que dá margem a muito equívoco e muita bobagem. Se na verdade existe muita poesia e muita carga de emoção em certos versos sem um sentido claro, isso não quer dizer que, turvando um pouco as águas, elas fiquem mais profundas…” . — Rubem Braga, no livro “A traição das elegantes”. Rio de Janeiro: Record, 2010.
Sempre fui uma apaixonada por ensinar, por escolas… desde menina mesmo. Hoje se fala em missão, pode ser. Mas reputo essa paixão ao PRAZER. Sou muito agraciada com o PRAZER de poder ensinar aquilo que aprendi, aquilo que vivi. Trata-se de um grande PRAZER. Libido no sentido primeiro do termo mesmo.
Desde que comecei a dar aulas, com registro de Professora, em 1972, na cidade de São Paulo, inícios de anos letivos sempre foram adoráveis, pois visitava editoras, via quais livros novos de literatura infantil e infanto-juvenil haviam sido lançados e os levava para casa, saboreando-os no metrô. Eram anos em que cada professor(a) recebia por cortesia 2 livros mensalmente, em cada editora. Era uma festa então, bem antes de começarem as aulas. Já na semana de planejamento, ideias afloravam, articulavam-se, planejavam-se. Quanto aprendi com esse período de planos letivos nos mais de 30 anos em que estive em salas de aula; nos primeiros 17, em escolas privadas, depois, em escolas estaduais e municipais também, visto que sempre desenvolvi o mesmo nível de trabalho tanto em umas quanto nas outras.
Mesmo depois de me aposentar das salas de aulas, continuei professora de redação em domicílios, preparando alunos para ingressarem em faculdades, lecionando para adultos em empresas, grandes empresas, em cursos de atualização gramatical etc. Sempre ensinei e continuei ensinando. Meus filhos costumavam puxar meus freios da ensinança, quando saíamos, e percebiam que eu já estava ensinando algo, prosaicamente, a alguém pelas ruas. “Para de dar aula, mãe”. Eu ria, pois era tão natural e corriqueiro aquilo em mim, que nem o percebia.
Comecei a lecionar em tempos de ditadura militar, quando o medo e a repressão faziam de professores, principalmente os mais jovens e por falta de informação, seres alienados politicamente, nem sequer reivindicávamos melhores salários e condições de trabalho adequadas. “Os dias eram assim”, foi apenas nos anos de 1980, que começamos a nos organizar e coletivamente buscar planos de carreira etc. Eu, então, bebia alegrias e a redenção por ensinar, por compartilhar o que aprendia. Era como se fosse encanamento ligado a fontes que precisavam desaguar e não permanecer vedado, entupido. Mais ou menos isso, desaguar, espalhar, semear.
Quando vou ao cinema e vejo o comércio, useiro e vezeiro, transformando o desejo de possuir, de adquirir nas crianças e em seus pais, em inícios de anos letivos, estimulando a competição nas escolas entre quem tem a mochila mais cara, o material escolar mais caro etc. , fico estupefata com o que se tornou ir à escola, para muitos.
Oportunidade. Ir à escola deve ser oportunidade, deve ser abertura de picada, de caminhos, oferecimento de possibilidades, iluminação. Certa vez um amigo me pediu que fosse conhecer a moça de quem havia sido noivo e pretendia voltar a ser, queria que conversasse com ela etc. Os 3 juntos, conversamos sobre coisas corriqueiras, cotidianas etc. Ela era meio ruiva e muito bonita, tinha olhos verdes e todos nós 3, a mesma idade, 24 anos. Ao final, quis saber o que achei dela, fui sincera e pouco adjetivadora. Ao que ele me disse, “Ah, mas você não queria que ela fosse como você, tivesse estudado o que estudou, onde estudou…”. É, pode ser. Tive mesmo muitas oportunidades na vida. Reconheço.
Na volta para casa, ia devagar pela rua do canal. Sentia agora menos sangue pulsando em suas veias. O exame há pouco lhe tirara vermelho e o conduzira em um tubo à exposição de olhos desconhecidos a humilhar-lhe vísceras. Perdera um pouco de si ali. Olhou a rua. Dirigia com calma, absorta pelo caminho atravessado por um canal. Havia flores.
No instante seguinte, ouviu latidos fortes, ásperos, guerreiros, pareciam ser ameaçadores, assediavam sonoramente a travessia da rua. Guiou até mais um pouco e parou no semáforo. Do seu lado esquerdo pode constatar 5 cães, que esticavam pescoços, uivavam para o alto, se impunham, queriam algo, rodeavam, o sinal longo fornecia mais tempo de observação. Um dos cães era mais agressivo, quis avançar no outro. Todos latiram em roda, não se saberia dizer o porquê. Era uma luta, uma competição, uma mostra de força, de uivos, latidos, poder.
Quando aconteceu o pouco previsto, um deles cobriu a cadela branca, observado pelos outros. Sem resistência, recebeu aquela ação instinto-animal-força em si. Logo seria a vez de cada um dos outros, quase em fila indiana. O olhar feminino teve ímpetos de abrir a porta do carro e vomitar.
O semáforo ficara verde. Olhou à direita, dobrou à direita e viu flores. Seguiu.