Este amor de cidade é a cidade do meu amor
Onde palpitam nas ruas corações sentimentais
Fulanos, beltranos, sicranos e tantos iguais
Fulanos, beltranos, sicranos e tantos iguais
SANTOS NEGROS
Cassia Maria
Salve os santos negros
Nossa Senhora do Rosário
Salve, São Benedito, Santa Efigénia, salve. (bis)
Eu bato no surdo imito coração
Passeio no reco chamando atenção
Na caixa não paro, alterno mão com mão
E o pé não sossega quer é dançar, eu vou.
Vou cortejar em procissão
Pra São Benedito é a minha oração. (bis)
Palavra te pego brinco na canção
Ganzá dá o molho, chocalho de mão.
E o corpo se acende não pára um segundo,
É percussão pura, eu quero é dançar, eu vou
Vou cortejar em procissão.
Pra São Benedito é a minha oração
Gungás vão no pé, patagome nas mãos
Pra São Benedito é a minha oração.
Bola de Meia, Bola de Gude
[Milton Nascimento]
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem pra me dar a mão
Há um passado no meu presente
Um sol bem quente lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa me assombra
O menino me dá a mão
E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade alegria e amor
Pois não posso
Não devo
Não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso aceitar sossegado
Qualquer sacanagem ser coisa normal
Bola de meia, bola de gude
O solidário não quer solidão
Toda vez que a tristeza me alcança
O menino me dá a mão
Há um menino
Há um moleque
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto fraqueja
Ele vem pra me dar a mão
Observação: ”Neste episódio o grupo mineiro “A Quatro Vozes” apresenta a música Fitas e Folias (Consuelo de Paula) . As irmãs Dora, Jussara e Jurema também contam um pouco sobre as trilhas que as levaram às descobertas musicais que permeiam hoje sua carreira e influenciam o repertório do grupo.
O Grupo é uma das grandes referências entre os atuais grupos vocais dedicados à MPB. O trabalho se destaca pelos arranjos vocais elaborados e escolha do repertório, baseado em pesquisas sobre as raízes da música popular brasileira.”
Pode o homem distinguir-se por ser íntegro e incomum?
CAPÍTULO IX
Da virtude e do vício; do belo e do disforme, moralmente; do que constitui o elogio e a censura
I
3. […] A virtude é necessariamente bela.
” 4. A virtude, segundo parece, é a faculdade que permite adquirir e guardar bens, ou ainda a faculdade que nos põe em condições de prestar muitos e relevantes serviços de toda sorte em todos os domínios. 5. As partes da virtude são: a justiça, a coragem, a temperança, a magnificência, a magnanimidade, a liberalidade, a mansidão, a prudência, a sabedoria 6. As maiores virtudes são necessariamente aquelas de que os demais homens retiram maior utilidade, visto a virtude ser uma faculdade que permite ser benfazejo. Por tal motivo são particularmente tidos em consideração os justos e os corajosos …”
Aristóteles, Arte poética e Arte retórica, DIFEL, SP, 1964 p. 58
DAS VIRTUDES HUMANAS
É PRECISO TER OLHOS DE VER …
Há pessoas que só conseguem se importar consigo mesmas. Por extensão, com seus familiares, assim, quando algo inesperado acontece, pensam somente em como serão atingidos por aquela mudança, o quanto afetará suas vidas. Caso contrário, estando resguardados, protegidos em alguma bolha, em alguma redoma, em algum abrigo anti-aéreo, não são capazes de enxergar o mecanismo de comutação que fatalmente ocorrerá. ”Na falta de farinha, meu pirão primeiro”. ”Vou puxar a brasa pra minha sardinha” . E isso acontece, de forma tão profundamente arraigada, que parece ser até inconsciente. No máximo, ouve-se um discurso de solidariedade, mas é só. E bom será se a fome estiver acontecendo bem distante, se a guerra eclodir bem longe … nada que obrigue a refletir, a tocar com as mãos o problema.
Sempre me incomodou muito qualquer injustiça, as diferenças sociais sempre me tocaram muito. Na minha área de atuação profissional e pessoal acolhi dores e misérias. Aprendi com outros que me ensinaram a ser assim. E fui eu a beneficiária desse bem, muito mais do que aqueles a quem acudi.
Mas a vida precisa ser vivida. De verdade. Não apenas no discurso.
Ou como disse-me o pai de uma amiga, na década de 1970, em SP “Odonir, por que você defende tanto os pobres; pobre sempre existiu e vai continuar existindo “.
Coitado, era um homem de pouca instrução e POBRE também, principalmente de espírito, de solidariedade. Havia conseguido uma casa, um carro, apartamento na praia e NÃO QUERIA QUE SE LEMBRASSE A ELE QUE JÁ FORA MAIS POBRE. Queria distância da pobreza.
COMUNHÃO
bebe verso
come letra
sorve número
mastiga a história
namora a ciência
acorda com a geografia
aprecia a letra e a música
desenha a geometria dos sons e dos signos
encanta-te com as descobertas todas os dias
porque todo dia tem um futuro novo pra você.
IGUALDADES SEMEADAS
Em todos os anos em que lecionei em São Paulo, estive entre os meninos das escolas estaduais de Carapicuíba e das particulares da Granja Viana e depois na Vila Romana. Estive nas escolas municipais entre os jovens do Jardim Santo Elias, em Pirituba, e os do Morumbi. Sempre rompendo muros de um lado e de outro com a mesma força. Integrando alunos dos bairros ricos aos dos bairros pobres, com campanhas de doações de livros, de socialização das conquistas de uns a outros, com visitas aos mesmos equipamentos culturais ao lado de uns e de outros. E comigo outros tantos colegas de ofício.
Sentia que não eram uns e outros, mas apenas eles e eu, eles e o mundo, eles e a vida em São Paulo e no mundo.
Aprendia com eles, enquanto lhes ensinava as coisas mais elaboradas do conhecimento formal e ao mesmo tempo também aprendia, quando me ensinavam como eram, aquilo que queriam, como se sentiam.
Em 40 anos de ensino, pude, como poucos têm chance, medir e sentir as diferenças entre o tratamento dado a pobres e ricos, os valores ensinados em suas famílias, as dificuldades de relacionamento entre “os mais iguais e entre os mais diferentes”. Antes dos rolezinhos concretos, constatei rolezinhos emocionais, religiosos, funcionais e suas diversas formas de repressão.
Certa vez, jovens adultos alunos de escolas da periferia de SP foram convidados pela zeladoria a se sentar no chão do Theatro Municipal para não sujarem as cadeiras do salão nobre. Ao que me opus. Aconteceu quando eu estava na Secretaria de Cultura, desenvolvendo um projeto que criei “Educação é cultura”, em que eu elaborava projetos pedagógicos a serem desenvolvidos por professores em suas escolas, envolvendo todas as disciplinas – preparando os alunos , recheando-os – para o saboreio de um espetáculo teatral, de uma apresentação de coral lírico ou de música de câmara. Para que tivessem acesso a tudo o que é de todos. Um teatro municipal, literalmente, pertence aos munícipes, portanto há que se frequentá-los.
A CARTEIRA DA VIRTUDE
Arlete havia trabalhado 2 dias inteiros, em uma cidade do interior, formando professores. Ao final do sábado tomara o ônibus intermunicipal, e pegara no sono durante as 3 horas até a capital.
Desceu na estrada, já à noitinha, pegou um táxi pra casa, que o cansaço a impelia a chegar o quanto antes e relaxar. Pagou, em frente a casa, e desceu. Quando foi abrir a porta não encontrou seu porta-chaves e a bolsa onde deveria estar. Telefonou para a filha que, de onde estava, veio para deixá-la entrar. Mas e a bolsa? Procuraram por todo lado e nada. O pior é que o cheque, ao portador, que recebera pelo trabalho, estava na tal bolsa também. Era de um valor alto.
Contou-me essa narrativa 3 dias após, mas principalmente o que aconteceu depois. Durante 2 dias seguidos um senhor, procurou por Arlete, sem encontrá-la; apenas no terceiro dia isso aconteceu. Ele encontrara a bolsa com as chaves e os pertences. Lá havia o endereço de Arlete e o telefone. Durante o dia – contou ele – ligou várias vezes para confirmar se era dali mesmo a dona da bolsa etc. Sem sucesso, continuou tentando. Até que no último dia, passou na casa dela mais tarde um pouco e insistiu. Achava que estaria precisando da bolsa.
Arlete não acreditava naquela insistência exemplar de virtude ao dar telefonemas, em ir depois do trabalho as 3 vezes até lá. Era um homem humilde. Arlete quis agradecer, dar-lhe uma recompensa simbólica pelo tempo empenhado naquelas ações e, principalmente, como forma de elogio por sua virtude. O homem não aceitou nada. Disse a ela que esperava que um dia alguém fizesse algo parecido para ele também. ‘‘Eu fiz apenas a minha obrigação, dona”.
Ouvi essa narrativa faz mais de 25 anos e jamais me esqueci dela. Virtude a gente também aprende.
III. [Habilidade em louvar o que não merece louvor]
”É prova de virtude superior mostrar-se benfazejo com todos. 30. Importa igualmente ter em conta as pessoas diante das quais se faz o elogio, pois, como diz Sócrates, não custa louvar atenienses na presença de atenienses. Convirá ainda tratar do que é tido em honra por cada auditório, por exemplo, pelos citas, pelos lancedemônios ou pelos filósofos. E, de um modo geral, o que é honroso deverá ser reduzido ao que é belo, visto que, segundo parece, o belo e o honroso são vizinhos. 31. Consideraremos outrossim tudo o que foi cumprido como convinha; por exemplo, se as ações de um homem são dignas de seus antepassados e de seu comportamento anterior, pois há nisso um indício de felicidade e é belo acrescentar novas honras as que já se possuem.”
Aristóteles, Arte poética e Arte retórica, DIFEL, SP, 1964 p. 62
Hoje cedo, ao entrar no quintal, essa linda borboleta agonizava, in extremis, já repleta de formigas, mas mexia ainda as anteninhas. Tentei socorrê-la, limpei-a e, durante um tempo, ainda se moveu. Entretanto, a parte inferior da asa esquerda havia sido atingida e não abria mais. Eu a abri para impulsionar talvez seu voo, sem sucesso. Dei-lhe o nome de Azul.
Esse post nasceu da leitura tão positiva do texto Carta para mim, no blog Agridoce, da Gerlusalr . Obrigada, moça, me deu vontade de ter de novo trinta e poucos.
O texto começava assim:
” Não acredite em alguém que te diga que amar é se espatifar num solo árido, moça, porque amar não é isso não. Não sabemos muito bem o que é amar, de fato, porque estamos aqui, na Terra, para aprender e desenvolver a nossa amorosidade nos pequenos encontros da vida e não existe ninguém, neste Planeta Azul, que possa decretar uma previsão de impossibilidade completa do amor. O amor é um exercício… ”
Viver à beira-mar tem seus prazeres obscuros. Aprende-se a amar não só os dias, como as noites, não só os dias e as noites, como nos dias e nas noites.
São João na Bahia era Natal. A publicidade apresentava ofertas para compras da mesma maneira que o fazia para o Natal. A força do mês de junho na Bahia é enorme. Talvez no nordeste inteiro. Coisa de sincretismo religioso mesmo. Enfeitavam-se as casas, e os apartamentos também, pelo lado de dentro, com bandeirinhas, balõezinhos, guirlandas, lanterninhas japonesas, de tudo um pouco – como as árvores de Natal em dezembro. Funcionários pediam férias, respeitavam-se as datas como feriados sagrados.
Os preparativos nas casas comparavam-se aos das ceias de Natal, só que com o milho, como rei dos quitutes. Nomes diferentes para iguarias conhecidas no sudeste. Bebidas à base de caju, pinga, amendoim. Quiabo em carurus e pimenta da boa. Vatapás , abarás, acarajés, os pasteizinhos de arraia (que eu jamais comera) e de camarão, a paçoca salgada para acompanhar a moqueca, a farofa de caju do quintal, tudo feito durante o dia pra nos servirmos à noite. A canjica – a que chamamos de curau no sudeste – o mungunzá – a que chamamos de canjica – a pamonha e o maravilhoso bolo de rolo. A mandioca quentinha derretendo com manteiga de garrafa por sobre seu dorso … pra quem adora comer era festa divina, eram manjares dos deuses.
Nossa casa, nossa comunidade, vivia repleta de amigos baianos que gostavam de artes em geral, música, pintura, literatura, cantorias e muita dança. Enquanto fazíamos, íamos ouvindo os nossos baianos na vitrola, separando os vinis para a noite, depois era cortar bandeirinhas, colar e estender nas árvores do nosso grande quintal: do cajueiro à mangueira, do coqueiro ao outro coqueiro, do mamoeiro ao cajueiro. Tudo magia. Não soltávamos fogos, nem balões.
Nós éramos os fogos e os balões dançando, rindo, comendo, bebendo, amando.
Viver à beira-mar tem seus prazeres obscuros.
Poesia e texto: Odonir Oliveira
ARTE NAIF
1ª imagem: Pinterest – Festa de Sao Joao-Militao Dos Santos
doces manos
o mais velho
o mais novo pouco mais novo
alegres boleiros
no céu de pipas
nos quintais iguais
no chão de terra
no chão de asfalto
no alto
luzes vezes vozes
sete, oito
música samba ritmo
alegria ritmo dança
escola alegria canto
beleza alegria estudo
passado presente futuros
desejos luta trabalho
luzes sucesso educação
luzes sucesso música
JESUS
No mato denso nasceu Jesus
interessou-se desde logo pelos sons
do vento
da chuva
do gorjeio dos passarinhos
até dos grilos companheiros e dos sapos vizinhos.
Quem poderia ensinar viola pra esse menino, nesse fundão de mata, meu Deus?
Jesus fazia som com tudo que encontrava.
Jesus tirava o som de dentro de si.
Calado, quieto, sonhador
O homem passou no cavalo
Jesus correu até ele.
Não alcançou.
Na volta o alcançaria.
O homem tinha uma viola.
Estaria ali sua senha, sua fuga, sua história
O homem no cavalo um dia voltou.
Jesus o alcançou com o som que tirava de si.
O homem parou, ouviu, encantou-se.
Jesus saíra de si.
O homem trouxera a chave perdida no horizonte do menino.
Jesus melodia
Jesus sonho
Jesus futuro.
” […]As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas… De fato, muitas plantas precisam ser arrancadas, antes que cresçam. Nos jardins há pragas: tiriricas, picões…
Uma dessas sementes é a “solidariedade”. A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora, poderia ser ensinada e produzida. A solidariedade é uma entidade do mundo interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente …”. Rubem Alves
Carmem. Meu nome é Maria Del Carmo, mas todo mundo me chama de Carmem, eu prefiro.
Quero contar uma história que carrego há algumas décadas comigo. Poucos sabem. Eu quero contar. Posso?
Pode. Fale como desejar, o que desejar, estou te ouvindo.
Naquela época lá, eu morava sozinha e me apaixonei por um rapaz lindo, carinhoso, meio frágil, mas ele era tudo que eu sonhei. Começamos a nos encontrar, a relação foi crescendo, fomos nos entendendo. Eu era pouco experiente nesse assunto de sexo. Ele, por ser homem, poderia ser mais. Mas era pouco também. Namorávamos muito, dançávamos, passeávamos, era uma vida muito boa, sabe.
Os meses foram passando. Eu dei a ele, numa caixinha de anel, a chave do meu apartamento numa data especial pra nós. Ele ficou todo vaidoso com aquilo. Parecíamos muito juntos mesmo. Pensei, é esse que eu quero pra ser pai de um filho meu. Não pensei em casamento, nada disso. Confesso, gostava de cozinhar pra ele, de dormirmos e acordarmos juntos, tomarmos nossos longos banhos juntos. Era uma vida boa demais. Aí falei pra ele a coisa de ser pai de um filho meu. Tínhamos a mesma idade, trabalhávamos, éramos adultos. Por que não? Ele gostou muito.
Contei nosso desejo pra uma amiga, que eu tinha feito há pouco mais de um ano e que era vizinha de prédio dele, da mãe, da família. Ela demonstrou alegria. Perguntou se ele também queria, como eu iria criar, sobre pensão e essas coisas mais práticas. Fiquei danada. Eu falando de amor, de procriação, fruto do amor, e ela veio com dinheiro e essas coisas mais. Ora, eu iria criar meu filho, não precisava de homem pra pagar contas não. Precisava era de amor, carinho, atenção. Mas ela tinha uns 15 anos a mais que eu, e já viu né, muito ligada em dinheiro etc.
Você não teve receio da fofoca, quer dizer, de ela ir contar isso pra mãe dele, pra família dele, antes mesmo de vocês dois contarem?
Não. Começamos a nos preparar pra concretizar a ideia. Era um momento muito bom em nossas vidas. Tínhamos amigos que dividiam os mesmos ideais que nós, tínhamos tudo pra ser muito felizes ali. Teve um dia até que cheguei em casa, encontrei um bilhetinho dele, tinha estado lá, tomado uma dose de sua bebida predileta, ouvido Chico, Gonzaguinha, assistido um capítulo da novela. Eu não chegava. Foi embora, e escreveu tudo isso com uma frase amorosa ao final. O encantamento foi enorme. Foi até melhor que encontrá-lo lá. O sabor do amor foi maior, eu acho.
Então, resolveu que iria morar comigo. Como assim? Cama de solteira, casa de solteira, vida de solteira. Arriscamos viver aquilo. Em mês de aniversário, já estávamos juntos. Tudo pronto pra gestar nosso rebento. Na entrada do apartamento, como uma oferenda, duas botinhas brancas de couro penduradas, tamanho bebê, anunciavam que aguardávamos a vinda do nosso.
Certa noite, ao entrar em casa, achei embaixo da porta um bilhete e um disco, um compacto simples. O bilhete era da mãe dele, ”muito terna”, me pedindo que não engravidasse e, se já estivesse grávida que interrompesse a gravidez, enquanto era tempo. Não seria ”uma boa pro filho dela”, pra vida dele, ainda em início de carreira etc. Deixou o disco do Roberto Carlos de presente, alegando que havia sido dado a ela pelo filho, em um momento de tristeza dela. E que agora seria meu.
Recebi e chorei muito, sabe. Como ela se achava no direito de se meter assim na minha vida? Ela parecia namorada dele, esposa, sei lá, e não mãe. Vivia chamando ele de lindinho, cumprimentava ele com bitoquinhas na boca. Passei a reparar naquilo, coisa que nunca tinha me chamado a atenção antes. Sei lá, mas aquilo era muito louco mesmo. Será que ela estava fazendo aquilo pro bem, que achava que era pro bem?
Eu não sabia ainda, mas já estava grávida. Logo soube. Ele, ao ver o disco, sem o bilhete, reconheceu e quis saber. Fiquei constrangida de contar do bilhete porque tinha aprendido que não se põe filhos contra seus pais. Ele insistiu. Sempre adorou a mãe. Contei. E chorei, claro. Tive medo, medo mesmo de termos de abandonar nossos sonhos etc. Mas não aconteceu isso.
Passadas algumas semanas, foi visitar a mãe. Voltou chocado. Ela havia doado sua cama, seu guarda-roupas, e colocado suas coisas numa caixa grande. Dali pra frente passou a ser minha opositora. Sempre. Até a duvidar que nosso filho fosse do filho dela. Procurou nos separar o quanto pode, buscando outras namoradas, favorecendo situações para que ele se envolvesse com outras mulheres como solteiro e não como meu companheiro e pai do nosso filho.
Foi assim. Mãe tem direito de interferir assim na vida dos filhos? Eu ouvi uma vez na televisão um psicanalista dizer que “Mãe pode fazer mais mal do que a bomba atômica”. Concordo com ele, viu.
Como você lembra da situação, com detalhes, te marcou muito, pelo visto.
Marcou mais naquela época, quando eu ainda era muito nova e pouco sabia da vida. E de mães. Obrigada por me ouvir.
Estão todos ali naquela festa de confraternização. Quem são eles? Quem foram eles? Que sonhos desenharam, perseguiram, realizaram? Quem são eles?
Os homens, todos com mais de 60 anos, riem e fazem piadas sobre sexo, mulheres, futebol, riem muito. São parceiros de copo, de paixões e de gargalhadas. Um comenta que “o que vale é a amizade, que nada paga aquilo, amigos são para sempre”. Outro relembra as aventuras de bebedeiras deles na adolescência, as madrugadas, as mentiras contadas – e bem sucedidas – aos pais, às namoradas. Cada um aumenta um ponto às narrativas, cada um conta vantagem maior, ou se coloca como o mais desafortunado, na esperança de que algum o corrija, o negue e reafirme a sua sorte com mulheres, com as situações. É um jogo. Um jogo de passes, um chuta, o outro toca, o outro conclui. Às vezes é uma partida de vôlei em forma e conteúdo, um saca, o outro toca e mais um corta. Divertem-se com as graças todas. Muitas abobrinhas, conversa fiada. A cerveja gelada solta as línguas e as gargalhadas. Muitas lembranças ali. Um jardim de infâncias em corpos reformados pelas esquinas das vidas, pelos palcos espetaculares, pelas macas hospitalares, pelos encontros e desencontros fatais.
As mulheres, todas com mais de 60 anos, riem e fazem comentários sobre maridos, filhos, netos. Umas se casaram algumas vezes ou viveram com alguns parceiros, outras continuam casadas com os mesmos maridos, outras ainda continuam sem casamentos. Trocam experiências. Umas sempre elogiando viagens e trajetórias de outras “Ai, se eu pudesse, ai se eu pudesse”.
Lembram das ausentes, contam sobre as ausentes, riem das ausentes, são só alegrias. A cerveja gelada solta as línguas e as gargalhadas. Muitas lembranças ali. A culinária e as habilidades artísticas de uma se sobressaem sobre as de outras. Os elogios são exagerados, amigavelmente exagerados. Olham para a mesa dos homens e concluem sobre o que estão falando. Quase em uníssono. Relembram de todos aqueles na adolescência, de suas fragilidades, de suas manias e cacoetes, de sua forma de dançar, de namorar, de beijar…. quem beijou quem, riem e revelam-se em deliciosas confissões. Tudo liberado, tudo permitido agora. “Sou fraca pra bebida, daqui a pouco já vou começar a falar besteira, gente”. Nada, estão entre elas, tudo válido. Riem muito, bebem mais, riem muito.
Uma pergunta sobre um namorado antigo, a outra conta. A amiga acrescenta “Ah, comigo aconteceu isso também com aquele outro, vocês sabem”. “Já comigo foi justamente o oposto, vocês nem imaginam, foi assim …”. Riem e se revelam.
Rapazes e moças nesse instante se juntam e propõem dançarem. ”Música pra dançar junto, hem”. “Isso mesmo, dançar junto ”. ” Vai ter a dança da vassoura também, tem que trocar os pares, né”. “Vamos, gente, vamos, mulherada”.
Dançam os casais. Lentas. Boleros, sambas-canção … Trocam-se os casais. Rock, twist, ié, ié, ié, hully gully. Grupos coreografam dancinhas, riem muito de si mesmos tão meninos ali assim. Beijos apaixonados. Fotos engraçadas. Alegrias muitas.
Fim do encontro. Cafezinho para ajudar na volta pra casa. Despedidas. ”Você vem pro nosso São João, né?”. ”Não. Prefiro guardar os meus comigo”. “Nem eu. Com esse frio, vou pro nordeste. Todo ano vou, né. Uma semana, pousada reservada e tudo. Festa de São João tem que ser lá, já é vício aquilo pra mim”.
– É a senhora, né, que faz isso? (dirigindo-se à mulher que caminha com seu cão, na coleira, pela rua)
– Sou eu o quê?
– É sim, a senhora que deixa o cocô do seu cachorro aqui no canto da minha porta.
– Eu? Observe aqui. Eu recolho tudo e levo comigo, repare aqui nesse saquinho.
– Não, eu sei como a senhora é. É do seu sim.
– Vamos analisar o que estava lá e esse aqui comigo, vamos comparar?
– Não, eu sei que é a senhora que faz isso.
– Ora, meu senhor, me viu fazendo isso? Como afirma assim tão categórico? Eu poderia dizer muitas coisas a seu respeito, só pela forma ameaçadora de se dirigir a mim, inclusive como mulher, mas não teria provas …
– Eu sei como a senhora é (ameaçador) E é a única que recolhe cocô do cachorro aqui. Então, só pode ser a senhora mesmo.
A mulher sai andando com o cachorro na coleira e o saquinho de cocô.
Fecha o pano.
Cena 2
– Já pedi para não entrar na minha calçada, na garagem, pra manobrar seu carro. Vá até a esquina ( diz a mulher, enquanto caminha com o cão)
– Eu quebrei alguma coisa lá. Deixa de ser implicante. ( motorista ameaçador, manobrando o automóvel)
– Já pedi. Ali é minha casa (segue caminhando)
– Pior é esse seu cachorro cagando pela rua toda (aos berros pela janela do carro)
– Eu recolho tudo. Os de vocês é que são soltos na rua para fazer isso. Recolham vocês (seguindo em frente)
– Sai da frente, sua velha ! (acelerando o carro)
Fecha o pano.
Cena 3
Rapaz jovem lava seu carro branco na porta da garagem da mulher. A porta da garagem dele está livre.
A mulher sai com seu cachorro por mais de meia hora. Quando retorna, o carro branco está com portas abertas, sem o rapaz. Mais à frente, em direção oposta à casa dele, o rapaz cuida de um caminhão.
– Tire o carro da minha porta, por favor.
– A rua é pública. Fala direito. (desafiador)
– Aqui é minha porta, tire o carro.
– Chama a polícia, vai, chama a polícia (ameaçador)
– É melhor não, hem. Tire o carro (entrando em casa)
Fecha o pano
Tragicomédias
PERSONA, πρόσωπο
Comédia risível
De costumes corriqueiros comuns vilmente cotidianos.
Sem profundidade nos dias
Era vulgar no comum, visível a olho nu.
Fora moça pobre gorda morena
Sofrera por amor por muitas vezes
Sofrera pela pobreza
Sofrera pelo físico pouco aplaudido
Trocada, assim ela se sentia.
E dela isso não conseguira expurgar.
Lutara quanto à pobreza
Lutara quanto a ser orgulho da família pobre
Carecia elogios
Carecia destaque
Carecia reparações.
Carecia reconhecimentos.
Cristã, mascaradamente,
mas cristã.
Personas:
Fingia ser uma, era mil
Mil mulheres comuns sem distinção de outras
Tão carente quanto,
necessitando de carinhos do macho, aplausos, sorrisos,
amassos e menções.
“Jamais o retorno ao peso anterior, aos cabelos morenos ,
à substituição por uma outra melhor!”.
Era assim que se via: fora a pior.
Naqueles momentos novos a competição pelos machos era ponto de honra
“Nunca mais serei substituída”- arremedo de heroína de “O vento levou”
Trocava de máscara qual um Zelig de Woody Allen a agradar
machos, primeiro
depois a familiares: mãe, irmãos, sobrinhas, madrinha.
Orgulho do clã.
Máscaras de sobrevivência.
Em fundo raso: mulher vulgar, cotidiana, confusa, casual, comum
De novidade talvez a capacidade de dissimular
Mas nem isso era glória: Capitu de uns Bentinhos desavisados
que para feromônios comuns, respostas biológicas.
Era o bastante.
Talvez aquele peito pequeno reformado com o silicone, de bicos escuros
aquela cavidade úmida desnuda de pelos, tornada quase uma púbere
os atraísse, os excitasse a idealizações de penetrações primeiras.
Ofertas de ocasião.
De pele morena e nada de novo.
Dentro de si o de si apenas .
Nada de doar-se, nada de entregar-se, nada de seu neles.
Nada.
Medo.
Imagens para consumo externo, de fora de si.
Medo da substituição contumaz, da troca iminente, recorrente.
Máscaras.
Apenas vaso preenchido de água de sal
Incapacidade de dar e sofrer.
Para tanto esforço de emagrecimento, exercícios físicos diários bronzeamentos de peles haveria de contar com aplausos.
Aguardava e se comprazia com apenas aquilos ou issos.
Bastava.
Mais de cinquenta anos… espessura tênue, cova rasa.
Prazeres.
Beberes
Comeres.
Apenas.
Não necessitando de mais.
Frouxidão de laços.
Mascarando sonhos sufocados
Enganando a si e a outros
A certos outros tão e tanto iguais a ela.
ou de máscaras de paetês de dourados triviais
que se dissolvem ao apagar das luzes,
e, por vezes, ao acender também.
Personas tragicômicas num palco de beira de estrada.
Teatro poeira de atores casuais. Retreta de descaso.
Sinto que um dia Chico irá embora, mas como ele mesmo disse, no filme Chico Buarque, cidadão brasileiro, ainda tem muitos planos, músicas, livros e roteiros de peças para escrever, só não sabe se terá tempo para tudo isso. E foi rindo, daquele seu jeito, se sacudindo e fazendo as contas de quanto tempo leva para concluir um livro , uma trilha sonora … achou assim que era muita coisa para o pouco tempo que ainda tem pela frente.
Chico, meu amor, eu tive sim bastante tempo para beber você aos golinhos, gota a gota, sofregamente, deliciosamente, gozando de seu lirismo em cada fase da minha vida, desde os 13, 14 anos. Portanto, há mais de meio século. Por isso agradeço por ser brasileiro como eu, por seu posicionamento social e político, sempre coerente e crítico e, principalmente, por trazer um homem com açúcar e com afeto aos meus braços, aos meus olhos, ao meu ventre. Você me percorreu inteiramente, em prosa e verso, durante esses 50 anos.
Saúde a você. E se não criasse mais nada a partir de hoje, não teria a mínima importância, porque seu mundo já preencheu prazerosamente o nosso.
Muito obrigada, nosso Chico.
LIVROS
CHICO, O BRASILEIRO
Texto: Odonir Oliveira
Tanto os livros quanto as canções expostas não obedeceram ordem cronológica porque Chico não obedece ordem cronológica. Seu texto parece ter sido escrito hoje.
Percorri a saudade do teu corpo, em laços de cetim rubros, tudo o que tinha, sem nunca sonhar apenas o amanhã… A vida extingue-se a cada olhar que desviamos, a cada amor que deixamos de sentir nos momentos de pausa…
Mora em mim um outro mar, um rio salgado que me escorre na face, um glaciar gelado plantado no peito, escadas que descem, que sobem, fontes, palmeiras altas e amores-perfeitos! Paredes que me oprimem, espremem, nas escadas que subo na noite, carrego na mão o doce calor do perfume da tua pele, memoria dos dias? No coração apenas saudade, vagueio em mim, por estradas apinhadas de gente! Eu plenamente cheio da ausência que deixaste e que me preenche as ausências… o Amor é fonte perfeita que me alimenta as faltas e carências, o corpo é vaga quente que me preenche a alma… num espírito que vagueia…