“Na corda bamba de sombrinha”, eles e eu

A EQUILIBRISTA

No fim da década de 1970, em São Bernardo do Campo, ia eu com minha filhota bebê em meu regaço, no bairro Assunção, acompanhando o nascimento do movimento dos metalúrgicos, suas campanhas arrecadando alimentos para os trabalhadores grevistas, os comícios no estádio da Vila Euclides e os helicópteros sobrevoando os bairros. Eu via a História sendo escrita. Eu fazia parte da História.

O espetáculo a que assisti ontem “Na corda bamba de sombrinha”, com o Grupo Ponto de Partida, transforma em dramaturgia letras e trechos de crônicas de Aldir Blanc (falecido em 2020, por complicações da Covid). O cenário é uma redação de jornal, nos anos setenta, o figurino dos seus parceiros letristas, idem. E são esses parceiros que escorrem com garbo, elegância e em primoroso texto (de Aldir) pelo palco: João Bosco, Moacyr Luz, Cristóvão Bastos e Carlinhos Lyra, cada um dentro do “gênero” que lhe coube escrever. Isso tudo questionando o momento histórico de que falavam (e por que não dizer, sobre esse também: o que é histórico e universal perpassa o tempo cronológico original).

Certa vez me disseram que ninguém estava interessado em saber de narrativas e sentimentos dos outros. Achei raso. Os cronistas sempre expuseram em seus escritos o que lhes acontecera e a seu redor. Os poetas, mais ainda. Só narra o trivial, o corriqueiro, o cotidiano quem tiver talento para fazê-lo. E isso sempre será registro de um tempo, de uma trajetória, de um percurso individual e coletivo. Isso é sim História.

Cantei, sob máscara, mas cantei todas as letras de Aldir, como se fossem minhas também, posto que conhecia todas e tenho sido contemporânea a tudo o que escreveu.

Salve Aldir Blanc! Salve o Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, MG!

Texto: Odonir Oliveira

Fotos: Facebook e Instagram do Ponto de Partida

Vídeos:

1- Canal Celso Química

2-Canal Elis Regina

“Breve discurso amoroso, em resistência à bestialidade do país”, por Julián Fuks

29/05/2022

(Na noite de ontem me casei, com a mulher com quem estou há vinte anos. Numa semana em que o país revelou de novo a dimensão de sua selvageria, achei que estes fragmentos de uma história e de um discurso amoroso eram o melhor que eu poderia oferecer aqui. São as palavras que disse ontem a ela, à Fernanda.)

O coração é um músculo feio, todo assimétrico, pulsante, sanguíneo. Sempre me intrigou que escolhessem o coração como símbolo de um sentimento tão importante, do afeto maior que move a humanidade desde o início dos tempos. Sempre estranhei também a conversão desse músculo numa imagem harmônica, impoluta, sem defeitos, um coraçãozinho brilhante e vermelho. Essa imagem nunca me convenceu, nunca me pareceu que o amor morasse no coração, nem na versão muscular nem na icônica, e por isso, talvez, por muito tempo amei só com as ideias. Até chegava a fazer minhas pequenas declarações de amor: dizia que alguém morava no meu coração, e apontava no mesmo instante para o meu cérebro.

E foi então que me aconteceu essa coisa estranha de me ver tomado por um sentimento, por uma abstração que escapava do cérebro, comprimia o coração e a partir dele se espalhava pelo corpo inteiro, puro movimento convertido em ânsia e desejo. Em outras palavras, foi então que você me apareceu, ou que eu finalmente senti você. Diante de você, todas as ideias prévias se subverteram, tudo o que eu julgava conhecido, todos os pensamentos se fizeram instáveis por um momento. Diante de você, eu me tornava um menino cheio de incertezas, menino abismado encarando o mundo com pernas trêmulas. E ainda assim, paradoxalmente, eu me sentia mais forte e mais firme, não me desfazia do homem em mim, continuava a existir no mundo com o que tenho, minhas ideias, minha ânsia, meu desejo. E naquele momento, e dali em diante, meu desejo era estar em você, dormir em você, morar em você.

O amor em que acredito mais é aquele que deriva da admiração, e não tenho dúvida de que foi por esse amor que eu comecei. Era profunda a admiração que você suscitava em mim, como ainda é: sentia e sinto uma atração irresistível pela sua convicção, sua clareza de propósitos, de princípios. Você tem uma firmeza impressionante, que quase se confunde com teimosia, com uma solidez inamovível — e nem sempre é fácil viver com alguém assim, isso preciso admitir. E, no entanto, você não é só rigidez, você é feita de uma carne mais maleável, toda ternura e carinho e generosidade. E você vai se transformando lentamente ao longo dos anos, num pequeno espetáculo em que só reparam os mais íntimos, os mais atentos. Você escuta muito, lê muito, a tudo está alerta, e vai processando suas mudanças em silêncio, até que um dia tudo vem à tona num discurso nítido, evidente, feito da mesma matéria que construía suas certezas anteriores. E é nesses momentos que eu me contagio da certeza, que eu percebo mais forte como minha admiração se fez encantamento, se fez paixão.

Não consigo fazer o discurso típico de um casamento, contar como nos conhecemos, pinçar algumas cenas bonitas e cômicas, compor uma história em que tudo culmina neste específico ato. Estamos juntos há vinte anos, e é inevitável que os sete milhares de dias que passamos lado a lado, numa constância que nunca antes imaginávamos, conversando infinitamente, existindo infinitamente no mesmo espaço, é inevitável que esses dias se amalgamem numa coisa única, indistinguível de si mesma. Nossos vinte anos são uma só experiência, bonita e cômica e vibrante e às vezes difícil e às vezes dolorida mas sempre intensa, uma só experiência inacessível às palavras, resistente a qualquer síntese. Esta nossa relação, como toda relação imensa, existe apenas nela mesma, não se traduz em metáforas ou metonímias ou em discursos substitutos que tentemos tornar belos.

E, ainda assim, existem os tempos imperecíveis, aqueles que sobrevivem com bravura aos nossos anos de confusão e esquecimento. Existem, ao longe, aquelas noites primeiras que a gente estendia até o limite, as madrugadas que você passava na minha casa negociando com o relógio, mais dez minutos, mais dez minutos, e indo embora só quando amanhecia. Existe aquela primeira noite que passamos no nosso apartamento mínimo, comendo uma pizza no chão da sala, sem sofá, sem fogão, só nós, e existiram as noites seguintes em que fomos povoando o nosso nada com tantas coisas cativas, montando sobre o nada a nossa história comum, nossa vida. E, nessa vida, uma infinidade de noites festivas, como esta noite, noites em que a casa se encheu de amigos e de riso, num vigoroso presente que foi ganhando a forma deste passado que agora foge às palavras.

E houve o dia em que você anunciou que queria morar em Barcelona, que queria estruturar por fim as leituras que vinha fazendo do feminismo, e eu me vi desafiado a contrariar a permanência que sempre achei que me definia, me vi dizendo sem titubeios: eu vou com você, conta comigo. E mais tarde chegou a minha vez de partir, de passar uma temporada de escrita em Paris, e aí foi você quem aceitou sem titubeios: eu vou com você, conta comigo. E assim cuidamos de nos equiparar na entrega e no vício de nós mesmos, nesse equilíbrio fundamental em qualquer relacionamento, tão delicado, tão sensível.

Foi na volta dessas temporadas exuberantes e felizes que você contrariou uma velha certeza, sua decisão histórica e ferrenha de não ter filhos, e se juntou a mim nesse desejo desorbitado que mudou a nossa vida, mudou absolutamente tudo. Em poucos anos nos tornamos, além de amantes e companheiros, duas partes eficientes de uma equipe parental a desempenhar a missão maior que já enfrentamos, partilhando cada função com precisão máxima, contando as horas e os minutos de dedicação a essa tarefa hercúlea. E assim tem acontecido de nos encantarmos juntos, dia a dia, com a Tulipa e a Penélope, essas figuras únicas que nos abismam ante o desconhecido, figuras de uma intensidade fulgurante, e de uma complexidade que nunca decifraremos por completo.

Mas, se hoje estamos aqui, é por um específico dia atípico, um desses que não se confundem no torvelinho dos anos. O dia mais triste das nossas vidas, e não só das nossas, o dia em que o horror ganhou as eleições no país. Nós ainda secávamos as nossas lágrimas comuns quando você decidiu que devíamos nos casar, quando você me pediu em casamento, porque nunca se sabe, porque tudo é tão incerto e terrível e assim estaríamos mais protegidos. Aquilo me soou absurdo, de uma inverossimilhança absoluta, e eu recusei o pedido que partia do desespero, para só mais tarde entender que o que você propunha era outra coisa, outra forma de resistência. Que, quando o descalabro nos cerca e nos assombra, é preciso combatê-lo com toda fibra, mas é preciso também se resguardar dele em afetos mais sensíveis, na alegria, no amor, na perpetuação do desejo.

E então finalmente eu entendi que devia dizer sim, e aqui estamos, porque eu nunca termino de me admirar com você, e nunca me canso de aprender com você, de me deixar transformar por essa pessoa impetuosa e inapreensível que você é. É por você que eu me vejo, há vinte anos, obstinado em dizer sim, disposto a viver tudo o que for possível a dois, e também tudo o que for possível a cem, a mil, com estas pessoas tão queridas que fomos juntando ao nosso redor, e que são o que temos de mais valioso. E é por você que eu aprendi a sentir e a estimar o sentimento como eu nunca teria previsto, a aceitar o coração vivo e suas reverberações infinitas, a me apegar como nunca a esse músculo e a esse amor, assimétrico, pulsante, sanguíneo.

Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2022/05/29/breve-discurso-amoroso-em-resistencia-a-bestialidade-do-pais.htm

Acabo de presenciar 4 exatos minutos de beijos ardentes de um lindo beija-flor em minhas lavandas. Puro lirismo de domingo.

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal ChicoBuarqueVEVO

Blogs antigos

Canal Odonir Oliveira

INTERAÇÃO E APRENDIZAGEM
Na década passada participava de um Blog que depois tornou-se um portal e passou a “acolher” muitos blogs dos participantes antigos. Ali reuniram-se pessoas de boa formação cultural, política… alguns criaram seus próprios blogs autorais por lá. Outros apenas comentavam, contribuíam. Assim acontecia com textos informativos, pesquisas, ensaios, coletânea de textos literários e verdadeiras discotecas, com gravações tantas vezes desconhecidas pela maioria dos leitores. Naquele ambiente tão fértil e cooperativo, aprendi muito. No setor musical então… além das gravações de diversos artistas de uma mesma canção, às vezes eram compartilhadas outras tantas de temas afins; outras, raras… Nossa, quanto aprendi por ali, com gente que conhecia muito mais do que eu. (Mais ou menos como acontecera anteriormente com a EDUCAÇÃO, quando aprendi muito com quem sabia mais que eu.) Hoje senti saudades do trabalho cooperativo, divertido, inusitado que acontecia lá no GGN. As redes sociais dos últimos anos não priorizam conteúdo, quase ninguém quer ler nada, ouvir nada, só imagem, tudo rapidinho esfregando sensualmente dedos em celulares. Não uso. Uso a tela grande, a música alta em tela cheia, o prazer grande, completo, orgástico e demorado. Prefiro assim. Sempre.

Canal Caetano Veloso
Canal Eugênia Melo e Castro – Tema

Canal pedropaulo pereira

Canal JazzBreakTV
Canal Tom Jobim Oficial
Canal Baracho
Canal: Milton Nascimento

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Cruzeiro

CRUZEIROS
Há mais cruzeiros entre os céus e as terras
do que se pode alcançar a olho nu
a olhos nus vê-se tudo e nada
a olhos nus há odor de sangue pisado nos ares
a olhos nus vertem pus as chagas expostas
a olhos nus tropeça-se em corpos estirados ao chão
vilas cruzeiros esposam martírios
vilas cruzeiros atraem fogos de artefatos vivos
vilas cruzeiros fisgam olhos arrebatados de lágrimas
as coberturas enxergam cruzeiros a olho nu nos céus
as choupanas tropeçam em cruzeiros cruzados por sangue
a olhos nus vê-se tudo e nada

Poesia: Odonir Oliveira

Vídeo: Canal Atração Divulga

Foto de arquivo pessoal: muro do século XVIII, Tiradentes, MG

Das supremacias

VALETE DE ESPADAS

Verônica saíra aquela manhã a fim de concretizar umas ações corriqueiras, passou na lojinha do bairro, era hora do almoço. Gostava de ir a lojas e mercados nessa hora quando as pessoas estariam almoçando e ela ficaria mais à vontade pra comprar, dialogar com vendedoras etc. Entrou. Só ela e a vendedora novata que não sabia onde estava a roupa íntima que procurava. Perguntou pela dona, a Daniela, que sempre a atendia e bem. A vendedora foi buscá-la e … nesse momento adentrou à loja um homem, indo direto ao fundo da loja, distante do balcão onde estava Verônica e a vendedora. O que a agradou, pois não gostava de dividir privacidade, intimidades com machos que palmilhavam curiosos sua vida reclusa por excelência.

Foi aí, que vendo a dona da loja trazer para Verônica, já quase na porta da loja, uma caixa que acabara de receber com os artigos que ela pedia, saiu de lá do fundo e veio ver do que se tratava, olhando dentro da caixa etc.

-O senhor também veio comprar esse mesmo artigo? Pode atendê-lo Daniela, volto depois então.

-Quero meias.

-Então o senhor poderia esperar lá, aqui não tem meias.

Dona Daniela já esperava pelo pior. Olhou para Verônica, com um gesto que lhe recomendava não responder. A freguesa entendeu e se calou.

-Você é muito sem educação. Fico onde eu quero.

Silêncio.

-Deve ser muito feia mesmo, enfia no seu C, sua FDP, sua mal-educada – saiu gritando da lojinha.

Dona Daniela só faltou ajoelhar-se aos pés de Verônica, por conhecer seu nível, sua educação, delicadeza e cultura. Orientou a vendedora novata a como proceder nas próximas vezes etc. Desculpou-se mais vezes etc.

Verônica saiu dali relembrando o quanto já fora ofendida por machos e fêmeas ali naquela cidadezinha, apenas por ser a estrangeira ali, com hábitos, valores e conhecimentos diferentes demais dos deles. Respeitava-os, cumprimentava-os, seguia. Mas o mesmo não se dava com eles, queriam se intrometer em sua vida, saber o que comia, como vivia, entrar em sua casa, e divulgar aos quatro cantos tudo o que conheciam dela. Verônica era muitíssimo discreta no bairro. Fazia compras em outros bairros, frequentava lugares outros, viajava… Isso tudo incomodava demais.

Pensou que aquele homem, de cabelos bem brancos, com mais de 70 anos, talvez – péssima em aferir idades alheias, marcas de automóveis alheios, vidas alheias – por descuido, falta de delicadeza, grosseirão mesmo, não tivesse se dado conta e ido acompanhando a dona da loja até onde Verônica estava. Mas no momento em que ela pediu que aguardasse, teria que ter tido discrição e atendido. “Ah, claro, eu espero lá então”. Entretanto o machismo estrutural, arraigado, jamais permitiria receber ordem de uma mulher e acatar. Precisava bater o pau na mesa e ditar, ele sim, a norma, precisava saber o que ela estava comprando, o preço etc. Por isso agrediu Verônica – como outros já o fizeram por ali – daquela forma.

Alguns homens são tão machos e conservam em si tamanha autoestima que NÃO se dão conta de que tudo aquilo é apenas uma exposição da sua auto inferioridade, por isso precisam sempre ofender, gritar, marcar com tatuagens os rostos das mulheres com quem tratam. (E o mesmo acontece com relações com gays, por exemplo.)

Verônica seguiu.

Texto: Odonir Oliveira

Vídeo: Canal Miton Nascimento

“Ser Minas Tão Gerais”

“Todo esse tempo foi igual a dormir num navio: sem fazer movimento, mas tecendo o fio da água e do vento.”

Depois de mais de dois anos de distanciamento, por causa da pandemia da covid-19, o Ponto de Partida estreia mais um espetáculo inédito, de dramaturgia própria. “Na Corda Bamba de Sombrinha” foi criado a partir da pesquisa de letras de música e crônicas de Aldir Blanc, feita pelo próprio elenco. Com direção de Regina Bertola, cenários e figurinos de Alexandre Rousset e Tereza Bruzzi, iluminação de Rony Rodrigues, sonoplastia de Pitágoras Silveira e direção musical de Pablo Bertola, os atores Ciro Belluci, Lido Loschi, Renato Neves e Ronaldo Pereira trazem ao palco a irreverência, o humor, a poesia e a dramaticidade de um dos maiores letristas da música brasileira. ♥️

1º vídeo: Canal Grupo Ponto de Partida

Fotos e vídeos: Facebook e Instagram do Grupo Ponto de Partida

Declarações poéticas

(Post originalmente publicado aqui em 29 de maio de 2017)

LÍRICA
conhece montes
visita ninhos de passarinhos
bebe água de rios com mãos em concha
suspira ao nascer do sol
entontece no vinho do anoitecer
saboreia pingos de chuva no rosto erguido aos céus
entrega corpo e alma às luas cheias
caminha sobre pedras de riachos muitos
vasculha matas fechadas com olhares fascinados
é sol
é estrela
é lua
é rua
é acorde
é vírgula
é reticências
é ritmo
é rima
é dor, flor, cor
amor
também

CUPRUM
no ambiente, sólido
aquecido, fusão-refinação
liga
antiquíssimo, símbolo da vida eterna
cobre
não cobre
limita pré-história e história
cobre
nem ouro, nem prata
cobre-alquimia
Afrodite
Vênus
cobre

EMOÇÕES
várias
faca amolada
fio de navalha
precipício em salto
riscos de vida
riscos de mortes
cordis alterado
cordis semi-morto
anginas de antanho
angina de agora
anginas eternas
anginas semoventes
cordis burgo
riscos de vida
riscos de mortes
a vida sopra
a vida não sopra
o rio corre
a folha cai
a rosa murcha
o sol se põe
cordis burgo
riscos de vida
riscos de mortes

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

1º Vídeo: Canal hyeryoung86

2 ºVídeo: Canal Puerto Libre  – Arte de Leonid Afremov

Caderno de redação escolar

O dia em que eu conheci Ressaquinha

A professora pediu pra eu fazer uma redação sobre um lugar que eu conheci.

Então vou escrever:

Foi em uma 5ª feira, bem cedinho que eu acordei bem bem antes na madrugada e aí não conseguia mais dormir e aí resolvi ir ler umas coisas no computador.

Quando eram passados bastantes minutos, eu tomei café e fui pra Ressaquinha, sem ter a mínima ideia de como ir. Fui perguntando e aí a avenida da rodoviária, que eu não sei o nome, estava parada, aí eu dei uma volta atrás de uns carros, porque se eles estavam indo por ali é porque ia dar em algum lugar como o que eu queria. Segui e deu certo. Aí foi que vi a BR- que é assim que o povo chama as estradas por aqui. Entrei na BR com garoa, como em São Paulo, e chuvisco como em Minas. Fui indo, fui indo, fui indo, como naquela piada de mineiros “é logo ali” e andei foi muito naquela estrada. Por fim cheguei, perguntei, acertei o local.

Entrei e esperei e dormi sentada porque foram muitos minutos de espera, uns 180. Resultado do exame: tudo bem, tudo certo, tudo ótimo.

Ruas muuuuuuito estreitas, cidadezinha lindinha, moraria ali até. Mas o ônibus me apertou, eu bati na guia e ouvi um barulhão. Desci pra ver e era um rasgo bem grandão na lateral do pneu traseiro. Onde tem um borracheiro, um mecânico? Logo ali. Andei, andei, devagarinho, que o pneu estava com um buraco e já bem vazio. Já pensou que podia ter batido na roda!

O mecânico, na oficina, não quis conversar nem consertar, que não era borracheiro; pedi me ajuda a trocar o pneu então, o macaco é zero, o estepe é zero. Tá bem eu ajudo, mas seu macaco não tem a manivela. Como assim, essa chave de roda não é o cabo, não funciona com a manivela? É. Então vou pegar o meu, tenho problema de coluna. Mas seus olhinhos azuis brilhavam, num tom de pedição, talvez de grana, sei lá. Garramos a conversar sobre tudo e eu o ajudando com os parafusos, a calota etc. Acabou, dei os 20 reais que tinha. E fui pra BR de novo.

Na garoa fininha, eu ia rindo de mim mesma. Aquela braveza de Sampa, dondé, hem?

Nem brigou com o motorista do ônibus? Nem peitou o mecânico? Sei não. “Essa moça tá diferente”. Seria por causa da promessa que se fizera, ao vir pras Geraes de que não seria mais a brava, a maior representante da Liga da Justiça contra fracos e oprimidos? Mas já brigou tanto em 2014 e 2015 por aqui: muros quebrados e não refeitos por outrem, correntes arrancadas, vasos quebrados… primas primatas, mas muito primatas mesmo! É acho que é rir o melhor remédio, viu professora.

Mas tudo estava por acontecer. Vocês têm desse pneu aqui? Não, só na Pirelli. Na Pirelli, tem que trocar por esse, tem que fazer calibragem, alinhamento. Quanto? Ah, tá. Trocamos o óleo. Troquem mas … por esse aqui. Mas o nosso é mais potente, contra borras etc. etc. Quero esse daqui, que por isso carrego sempre essa embalagem no carro. Mas a senhora. Não! E comecei a rir, professora, pela minha aventura em Barbacena. Já me envolvi em mais ocorrências automobilísticas – digamos assim – do que em anos e anos em Sampa.

Esperei mais muitos minutos 250, na verdade.

Mas a senhora é da USP, por causa do adesivo no carro. Conhece lá o Vladimir, acho que é, … Safatle? É isso. E aí muita conversa com as secretárias e rimos e rimos. Depois com o Roberto, o do Safatle e por fim com o Diego, um amor de rapazinho, fazendo cursinho pra tentar o Enem. Aula de ortografia… vou ligar isso aqui, faz barulho. Tá bom. Então, a senhora acha … Eu acho que sim, é por aí, continue assim.

E na política? Detesto A Globo. Eu: eu também. Ele: por isso, isso e isso.

Leve, leve, morrendo de fome que eram quase duas da tarde, mas de uma leveza adorável

Tudo de raiva diluiu-se porque …

Sabe, professora, acho que na  próxima redação de minhas férias, vou escrever uma bem grandona sobre Ressaquinha de novo. Só que vou voltar lá pra apreciar melhor.

Outro dia, sabe, eu li num filme que vi uma frase assim: “Felicidade é experimentar o momento presente, pois é nele que você percebe que está realmente vivo.”

Acho que é por isso que estou ficando menos bravona do que eu era antes, professora.

Assinado: Odô– 10 anos (mas sabe dirigir)

Junho de 2015

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Milton Nascimento