Desenhando essa história

Um álbum com fotos repletas de lembranças de nossos pais, avós, tios e tias, sobrinhos, filhos e até de netos. São os Ferreira Oliveira e os Galdino, de Barbacena, Minas Gerais.

Poemas: Odonir Oliveira

Fotos com familiares extraídas do álbum de retratos que meu pai colecionava com esmero e datações, mineiramente delineadas.

Fotos antigas da cidade de Barbacena garimpadas de Acervo Público, Facebook BarbarasCenas e muitas sem datação e origem. Agradeço por terem polvilhado a nuvem da Internet com essas pedras preciosas mineiras.

Vídeo: Canal Odonir Oliveira

Edição delicada de Sandro Ernesto

Mulheres, desde quando nem se imaginava o conceito de sororidade

EPÍGRAFE: Sou lida por uma turma de gente jovem, de 20, 30, 40, 50 anos, com menos anos de vida, consequentemente com menos experiência de vida, e, principalmente desconhecendo ou conhecendo pouco até, outros contextos sociais anteriores. Às vezes, percebo os adolescentes (ou quem não tenha superado essa fase ainda) repletos de arrogância, de onipotências etc. Já em outras fases, reparo que sentem que estão inventando a roda, inaugurando o novo … Pode ser o ”novo” em suas vidas, mas não o novo social, histórico … é preciso ler, informar-se, conhecer e, sobretudo, viver mais, bem mais para se formar ou se conformar. A vida não se resume a pesquisas de banners no Google, citações de autoajuda – genéricas – de cópias e cópias e mais cópias. É bem mais do que isso. Muito já se conquistou dos anos dourados de 1960 até hoje, creiam. (E esse tom um tanto professoral – que pode desagradar – é inerente a quem esteve por mais de 40 anos em salas de aulas.)

ANOS 60
-Fez a lição de inglês, posso copiar? Detesto ter que fazer isso.
-Pode, Carmem, eu também detesto inglês.
-Não, gostar de inglês eu gosto. Não gosto é da lição.
-Menina, você não muda mesmo, né.
-Ah, sabia que o Lilica tá te paquerando, né. Só olha pra você.
-Percebi, mas é muito insistente, parece chiclete e gosta de falar sacanagens demais, de graça, pra dar uma de machão.
-Quem não gosta nada de ver ele gamadão em você é a Mirian. Ela te odeia, fala cada coisa …
-Nossa, isso é verdade? Ela fica é com raiva de mim, ao invés de ficar com raiva do Lilica? Eu, hem, maluquice.
-Parece que ela gosta dele pra valer, faz planos com ele… isso é que é perigoso, passou a ter muita raiva de você, Zilda.
-Olha, se estiver com ela, diga que não tenho nenhum sentimento por ele, pode ficar tranquila. Diga que é ela que deve fazer ele gostar dela. Não disputo homem. Se ela gosta dele, até ajudo nisso, não fico com raiva de garotas por causa de garotos, não. Acho isso péssimo. Deixa a Mirian tranquila, tá. Ela ou outra que também goste dele. Eu não entro nesse tipo de competição. Nem naquelas de vôlei. Faço parte da torcida sempre, você já sabe.
-Claro que sei. Vou tentar falar isso pra ela, quando tiver uma chance, tá.
Semanas depois, Carmem começa a namorar o Lilica.

ANOS 70
-O cara tem namorada firme, vai casar com ela, só se encontrava com a Sussu escondido. Você precisava conhecer os 2. Ou melhor, os 3. Mas vou te levar no casamento dele. Eu e o Giba somos padrinhos. Vai ser um festão.
-Nossa, mas por que ele faz isso? Já era noivo antes e manteve a relação com a Sussu, mesmo sabendo que ia casar e tal?
-Ele sempre namorou a Sussu lá na Álvares Penteado, éramos todos da mesma turma. Ninguém sabia que ele tinha ficado noivo de outra nem nada. Só quando entregou os convites.
-Mas e essa colega de classe de vocês, ela também não sabia?
-Desconfiava de algo nos últimos meses, mas reagiu porque tem muito caráter, muita dignidade.
-Ele contou, ela descobriu, como foi?
-Ela foi ligando os pontos e confirmou tudo quando viu os convites em nossas mãos. Parece que faz pouco tempo. Chamou o Luiz, terminou tudo com ele, disse que se ele havia resolvido se casar, era sério e gostava da noiva. Concluiu dizendo:
-Você não foi o único na minha cama, nem o melhor. Faça seu casamento ser sério, Luiz.
E nunca mais o viu.

ANOS 80
-Mas cara, isso não tá certo. Você é casado. Sua mulher é uma excelente pessoa, bióloga de primeira, funcionária federal e te adora. Há quantos anos vocês namoraram no interior. Claro, ela queria ter um filho. Não tem nem 6 meses.
-Nunca quis ter filho. Ela me compara aos irmãos dela lá no interior que têm de tudo e tal. Eu sou apenas um professor de Física. Ela reclama que eu tinha que atuar como engenheiro, na minha profissão.
-Isso te incomoda em quê? Não é legal conversarem sobre os assuntos e tal. Ela sabe que você aplica na Bolsa salários extras de aulas, por exemplo.
-Não, tudo ao portador. Se eu contar o que tenho ganho, no dia seguinte ela enche o nosso apartamento BNH com armários embutidos etc. Não, nem sabe.
-Não quero relacionamento com você. Ligue-se a ela, ao seu filho, invista na relação de vocês, cara. Ela é tão amiga, vamos todos a churrascos juntos, gosta do partido como nós, bebe todas as cervejas com você, é super simpática. Resolva-se com ela. Para com esse vício de querer trair um amor. Isso se torna insaciável. Para com isso.
[…]
-Mas você veio ao meu apartamento? Eu te falei que isso é loucura, você quer saber que gosto eu tenho, como beijo, como transo … isso é muito instinto animal. Fala com a Gina, Toninho. Eu vou conversar com ela, não quero que ela pense que sou traíra, mulher sempre fica contra a outra e não contra o homem, evidentemente porque ama aquele homem e não a outra, né. Cuide disso ou cuido eu. […]
Na semana seguinte, chamou Gina ao seu apartamento. Pelo modo como ele citava a dona da casa, Gina já suspeitava de algo. Ouviu tudo. Agradeceu. Ouviu a sugestão de que dialogasse mais com o marido e poderia até lhe contar que haviam se encontrado etc.
O professor de Física entendeu-se com a mulher.

ANOS 90
-Tomei a iniciativa de te chamar aqui no jardim do meu prédio pra conversarmos. Estaciona o seu carro e entra no meu, por favor.
-Sim, volto já.
-Eu quero conversar sobre o Fábio, você deve saber, né.
-Imaginei, ele me contou que viajou pro Rio e passou os 2 dias de carnaval por lá com você e amigos.
-Foi. Estamos juntos há alguns meses. Hoje tem esse baile do Grêmio, ele está muito resfriado, disse que talvez não vá. Eu vou com amigas. Quero conversar sobre ele, ok.
-Pode falar. Agora à noite ele melhorou, acho que vamos também.
-Amo o Fábio, ele é um grande amor, com muitas identidades comigo. Não queria nenhum relacionamento físico com ele, demorei a aceitar isso porque somos muito muito amigos, entende. Aí, depois de um tempo, ele começou a namorar você a quem a mãe dele dá toda força etc. Então…
-Pode falar. Sei que às sextas-feiras ele nunca sai comigo… imaginava com quem estaria indo dançar etc. Então é com você.
-Sim, nos divertimos muito, e não sabia que ele estava começando um namoro com você. Soube, questionei-o, explicou-me que vocês não tinham nada físico e mais não quis dizer e ser inadequado. Por isso o admiro tanto também.
-É verdade o que ele falou.
-Então, fixe seu amor no corpo e no espírito do Fábio, ok. Faça-o feliz. Não sairemos mais juntos.
-Você faria isso mesmo?
-Sim, mas faça-o feliz. Não costumo entrar em relações já ocupadas. Valorizo a sinceridade, a verdade. É sempre melhor pra todos, não se usa alguém, se mente, se omitem outros relacionamentos, enfim o correto é ser correto. Prefiro assim.
-Mas vamos deixar de ser companheiras de trabalho? Não tenho nenhum ressentimento com você.
-Continuaremos como já somos. Mas insisto, faça-o realizado, realize-se com ele, caso isso não venha a acontecer, eu volto ao meu relacionamento com Fábio, tá bom?
-Entendi. Vou confiar mais nele e lhe entregar meu amor.
Todos foram ao baile e dançaram bastante.

ANOS 2 MIL
A mulher apaixonou-se pelo poeta porque em todos os seus atos demonstrava ter interesse por ela. Não era uma garotinha sentimentalóide que se atira nos braços de qualquer assédio. Sabia entender quando e onde havia significado. Não era fácil se envolverem com ela. A demonstração era explícita e até vegetais e minerais percebiam e acreditavam naquilo.
-Não caio nessa não. Cara dessa idade tem ex-mulher, filhos, mulher atual, é evidente que sim. Nenhum homem dessa idade envelhece sozinho, Marta.
-Será? Mas ele não disse que é solteiro, que vive sozinho, não mostra a casa dele lá naquela cidade etc. seria um embusteiro?
-Não é um homem livre, descompromissado nada. Viaja com a mulher, ela o chama de ‘‘meu marido, meu eterno namorado”. Eles estão muito ligados. Vi. De longe, mas vi.
-O que justifica o comportamento dele explicitamente a todos, em relação a você?
-Tenho conjecturas sobre isso. Mas pouco importa. Há homens para os quais há uma forma (^) de mulher a ser preenchida – e vice-versa – e nem com reza, oferenda ou despacho aquilo se desmancha. Freud explica.
-Parece roteiro de filme isso tudo.
-Nada, você deve saber, embora não nos conheçamos há muitos anos, que respeito as mulheres. Não entro em competições, não brigo por causa de homens. Estou sempre do lado feminino.
-Ah, mas tem vezes que elas são muito arrivistas. Você desiste fácil demais.
-Não. Vou procurar saber, vou conhecer melhor o cara, e só depois tomo as decisões.
-Foi assim com ele?
-Sim, exatamente igual a outras vezes. E a mulher parece gente boa. Fiquei solidária a ela. Estão bem. E como diz Saramago “É a vida. É a vida”.

Textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Lenine Oficial

2- Canal Jumpcut Portugal

Recontando contos VIII

AME e dê VEXAME, de Roberto Freire, Ed. Guanabara, 1990, RJ

REMÉDIO NA ESTAÇÃO

Não me recordo bem se era morena, loira ou ruiva. Sei que tinha um dor de amor nas costas que a fazia se sentar na beiradinha do banquinho e falar meio pra dentro, como se quisesse desistir a qualquer momento.

E o fez por umas três vezes. Vinha, começava, se arrependia e saía rapidamente, descendo as escadas que davam para a rua de baixo. Alguma vez a acompanhei com o olhar, nas outras desisti.

Na quarta vez, iniciou contando que havia amado um único homem em uma cidadezinha. Era forte, jeito de moleque, piadista, que o conhecera no bar em frente à estação. Ela gostava de ir ali comer qualquer coisa porque sempre apanhava uma história ou outra, descida do trem com os passageiros. Assim teria o que contar mais tarde, no pensionato, às colegas de quarto, após o jantar.

Lembrou que vez ou outra faltava energia, e, ficarem ali à luz de velas era excitante … enchiam-lhe de prazer as histórias das colegas, muito mais experientes que ela, nascida e criada na zona rural da cidade mais distante daquele estado. Nem trem parava por lá. Trem para ela… novidade e tanto. Rita era calada, tinha cabelos ondulados qual essas moças de filmes antigos. Não sei por que não consigo lembrar de que cor eram.

Contou que conhecera lá o homem, que para ela dissera ser Júlio, representante comercial de laboratórios farmacêuticos. Vinha com uma bonita pasta marrom de couro que se abria como flor para um lado e para o outro.

Estava por ali a cada quinze dias e foi o bastante para Rita entrar na sua rota de conquista.

Havia um hotelzinho barato em que passaram a se encontrar. Apaixonou-se, ela, num tanto que já nem respirava bem, acometera-lhe uma certa asma brônquica que lhe tirava o ar. Mas quando Júlio chegava, não havia remédio melhor a sair de sua maleta que a camisa-de-vênus que usava sob os lençóis do hotelzinho barato. Era rápido sempre, beijos no fim, sem muito lirismo, quase sem nenhum lirismo, na verdade. Dava-se a ele e ele a ela assim em doses quinzenais, qual remédio em visita de médico.

E então, sumiu.

Anos e anos Rita comparecera à estação. Até que esta foi desativada. Não receberia mais passageiros, só cargas.

Rita perdeu as esperanças de reencontrar Júlio por um trem de amor daqueles. Só cargas e encargos apareciam por ali. Dor nas costas.

Fechou-se como um vagão em um túnel.

Não mais se entregou a viagens. Nunca mais.

Sofria dessa maneira, até enquanto sentou-se aqui para contar essa sua dor.

(Publicado originalmente em janeiro de 2016)

Leia aqui também: Recontando contos – VII- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/16/recontando-contos-vii/ Recontanto contos VI – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/15/recontando-contos-vi/ Recontando contos V – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/14/recontando-contos-v/Recontando contos IV – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/14/recontando-contos-iv/ Recontando contos III -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/13/recontando-contos-iii/ Recontando contos II – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/11/recontando-contos-ii/ Recontando contos I – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/10/recontando-contos-i/

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Foto P/B: Facebook BarbarasCenas

Vídeo: Canal Biscoito Fino

Recontando contos VII

AME e dê VEXAME, de Roberto Freire, Ed. Guanabara, 1990, RJ

MAS SEM TOMAR BANHO?! ESSA NÃO!

As duas jovenzinhas da cidade do interior queriam ir pra um tal de festival de música sertaneja, mas não teriam onde ficar hospedadas. Aquela era uma cidade menor ainda do que a delas. Mentiram desavergonhadamente às mães que seriam hospedadas na casa da amiga fulana etc. e tal.

O pai de uma delas, meu tio, já falecido hoje, levou-as, crente que estavam falando a verdade.

Chegando lá, quase na hora dos shows, ainda não tinham tomado banho, trocado de roupa e tudo o mais. Resolveram procurar a tal conhecida que lhe prometera assim, meio sem compromisso, pousada.

Nada feito. Nem tomar banho seria possível, quanto mais dormir ali.

Sem ter como fazer, foram a um barzinho restaurante e se produziram, meio a meio, para o festival. Mas onde deixar as mochilas? Acertaram com o dono do bar.

Paqueraram bastante antes de encontrarem os ditos cujos com quem tinham planejado encontrar. Dançaram, cantaram, beijaram.

Saíram do show, foram namorar, bebendo cerveja, falando abobrinhas típicas das que se diz nesses momentos embriagados de Dioniso e Afrodite.

Ao chegarem a um lugar mais apropriado, encostaram-se em um muro um casal, e no portão o outro.

Ouviu minha prima a seguinte frase:

 – Seu cabelo tá com um cheiro esquisito!

–  Ah, acho que é esse muro aqui – disfarçou ela.

Mas foi aí que o portão se abriu. O outro casal saiu correndo porque o cachorrão que estava vindo lá de dentro não queria saber que cheiro era aquele, nem quem eram eles.

Foi uma corrida só.

Quando estavam já bem longe, riram muito, e de se engasgarem.

E aí foi que ficou bom!

(Publicado originalmente no GGN, em junho de 2015)

CAETANO NUNCA DEU VEXAME?

Pra ela deu.

Prédio cheio, véspera de feriado

Cidade praiana e o caiçara, que com ela travava um trelelê meio juvenil, resolveu fazer-lhe uma serenata.

Ele, apaixonado por Caetano, dedilhava bem um violãozinho até. E conquistá-la era pra aquela noite.

Mas ela, tímida, quis morrer com aquele mico em praça pública. Mais ou menos uma missa de corpo presente. Gostava de ritmos de discoteca e …

Não deu uma, nem deu outra.

E ainda trouxera Gil e Ivete?!

Era a treva!

(Publicado originalmente no GGN, em junho de 2015)

COISAS DE CAETANO. Era o carnaval de 1980, na Praça Castro Alves. Eu estava com meus amigos que ainda moravam no Farol de Itapuã, quando fui apresentada numa rodinha ao Caetano, num shortinho bem curto de lamê dourado e de camiseta regata. Meu amigo Ri, puxou um pouco o short dele e perguntou o que era aquilo. Aí ouvi da boca do Caetano a explicação “Meu rei, fiz um show no Imperator e tinha um casalzinho bem jovem, logo nas primeiras filas. Ele vestia esse short. Ao final, vieram falar comigo, eles eram liiiindos, elogiei o short de lamê. Na mesma hora ele tirou, me deu, e foi embora com sua garota, só com a sunga de praia. Adorei aquilo, cara. Por isso que vim com ele hoje aqui.” Zé Celso, diretor de teatro, acabava de voltar do exílio e tascou-lhe um beijo na boca. Meus amigos conheciam toda essa gente, e passamos um carnaval massa – como dizem os baianos.

Foto: Revista Veja, 1972

Leia aqui também: Recontanto contos VI – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/15/recontando-contos-vi/ Recontando contos V – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/14/recontando-contos-v/Recontando contos IV – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/14/recontando-contos-iv/ Recontando contos III -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/13/recontando-contos-iii/ Recontando contos II – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/11/recontando-contos-ii/ Recontando contos I – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/10/recontando-contos-i/

Textos: Odonir Oliveira

Vídeo: Canal IveteGileCaetanoVEVO

Recontando contos VI

AME e dê VEXAME, de Roberto Freire, Ed. Guanabara, 1990, RJ

DA ESTRELA
Noite escura,
opacidade imensidão esperas
diáfanos ventos brisas sopram sonatas
O sono impele ao sonho contumaz.
Impacto,
brilho luz cor movimento
suaves alimentos sopram lirismo
O sonho seduz ao lume da estrela.
De tantas ali ora expostas
Só ela incita àquela descoberta fuga

VERTIGEM

Acordara bem cedo. A noite havia sido curta. Encontrara-se pela madrugada de uma, duas ou três maneiras com ele. Em uma delas perdera a respiração, como que engasgada, e numa apneia orgástica, sufocara.

Água fria, não gelada para não espantar de todo o companheiro de viagem que a cama ainda estava quente.

Computador, músicas, leituras, versos, notícias. Vontade de dormir a continuação daquele sonho anterior. Não daria, que Virgínia era exigente pra cacete. Em sua boca só palavras de alto calão. Em sonhos… em sonhos…outras palavras.

Voltou pra cama em olhos fechados e imagens distorcidas.

Tudo lhe vinha misturado agora; muitas figuras, muitas vozes, de Dioniso um aviso, acorda, acorda. De Morfeu outra, dorme, dorme . Afrodite ainda, fica, fica, espera, espera, chove, chove, chove, fica.

Confusão etílica de vinho tinto bom. Queijos, pouco aprovados que desejava apenas a companhia de seus deuses hoje, ontem, amanhã.

De pé de novo, escreve. Escreve não, pois que psicografa dez poemas, uma crônica, uma ode, dois recados e uma apelo. Era uma romântica.

Exílios, ainda sem forma e estilo. Psicografa.

Exílios voluntários; exílio de coxas quentes; exílio de costas largas; exílio de pés enormes; exílio de mãos atrevidas; exílio de ventre berço; exílio de braços laços; exílio de membro aderente; exílio de pescoço salgado; exílio de orelhas atraentes; exílio de olhos mudos; exílio de cabelos outros; exílio de língua sonora; exílio de lábios profanos; exílio de boca sagrada; exílio de corpos nus; exílio de corpos nós; exílio de medos; exílio de gozo; exílio de tantos.

Não consegue mais dormir. Precisa dormir. Não sabe mais a quem ouvir se a Safo, a Baco, a Dioniso, a Afrodite ou até mesmo a Zeus, ó pai.

Tem visões alucinadas de estradas, automóveis, flores, barcos, trens, vozes surdas, convites vagos, interpretações múltiplas. Estaria Virgínia enlouquecendo com aquele jogo de dá e toma dos deuses, com aquelas gestalts interrompidas todas. Muito mais do que falar, a ensandecida  adormecida queria ouvir. Impossível. Estava dentro de um sonho, repleto de imagens fugazes, inefáveis, pouco táteis. Era uma romântica.

Decidida a se levantar, fossem que horas fossem. Pegou o carro, entrou num bar, havia ali três ou quatro caras acompanhados, e mais um, de rosto moreno, braços fortes no balcão.

Sentou lá ao lado dele. Ele perguntou seu nome. Ela disse. Bebeu pinga. Ele pagou.

Saíram dali para casa dele.

Surpresa.

O cara sabia dos desejos de uma mulher. Falou nada.

Talvez um oferecimento de um isso ou de um aquilo. E só.

Vertigem. Em poucas palavras.

Estranhou ela tudo aquilo e que tivesse alcançado tanto prazer naquele encontro casual.

Sentiu falta de um Vinícius, de um Drummond, de um Caetano, de um Pessoa, de um Baleiro, talvez. Mas nem tudo pode ser perfeito,  não é.

Era uma romântica.

(Originalmente publicado em janeiro de 2016)

Leia aqui também: Recontando contos V – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/14/recontando-contos-v/Recontando contos IVhttps://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/14/recontando-contos-iv/ Recontando contos III -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/13/recontando-contos-iii/ Recontando contos II – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/11/recontando-contos-ii/ Recontando contos I – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/10/recontando-contos-i/

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal bettyblue

Recontando contos V

AME e dê VEXAME, de Roberto Freire, Ed. Guanabara, 1990, RJ

EU E MEU VELHO
Quase sempre
acordamos juntos,
tomamos café, cada um do jeito que mais gosta,
vamos aos canteiros de flores,
vamos à horta,
tratamos das galinhas e dos patos
Quase sempre
rimos de nossas imperfeições,
gargalhamos de nossos prejuízos etários,
sentamos e descansamos ouvindo nossos bolerões embaixo [da mangueira.
Quando há mangas, chupamos umas tantas, mas sem facas, mordendo a fruta.
Aí, sem mais nem menos, acho meu velho tão sensual mordendo mangas !
Chego mais perto, rimos, nos tocamos, nos beijamos.
Quase sempre
lemos poesias, ficção, ouvimo-nos um ao outro como [música
nem sempre suave,
nem sempre terna,
nem sempre pacífica.
Nós dois somos a música.

LENÇÓIS ESTICADÍSSIMOS

Tia Ana Amélia era uma mulher privilegiada. Sempre cuidara da casa, tinha um marido de setenta e três anos, viril em tempos de comprimidinhos azuis inexistentes. Ela, mais nova que ele uns dez anos, tinha um fogo domiciliar característico das mulheres de um homem só, daquelas que vinham envelhecendo junto a seus companheiros e por isso conheciam-lhe todos os pensamentos, os desejos, os seres e estares da vida.

Sua norinha, vinte anos, namoradinha do filho mais novo, sempre lhe intrigara. Dormiriam juntos os dois? Ali na casa dos pais sabia que não; não poderia admitir tamanha falta de respeito, ora, ora.

Naquele sábado pela manhã, o filho único saíra a buscar componentes para a feijoada do domingo, a se comemorar o aniversário do pai na segunda. Norinha e sogra esticando lençóis, conversam sobre um assunto, com diferença de mais de quarenta anos de tabus: sexo.

Enquanto ali, Ana Amélia pergunta à jovem se ela e o filho faziam sexo. A moça sem pejo ou recato responde-lhe que sim e há bastante tempo. Quis saber se o rapaz era carinhoso, se usavam se proteger e essas coisas que Chico diz que diz toda mulher.  A outra respondia sem titubear, com sonoros sins a quase todas as questões.

Depois, tomada da mesma coragem, foi ela que perguntou à Ana Amélia como era o sexo dela com o marido? Esta quase engasgou; terminou a arrumação doentia de se esticar lençóis e foram para a cozinha. Colocaram um feijão preto de molho ali, umas carnes secas também, e a conversa continuava. “Você já ouviu falar desses cursos de strip-tease, Ana Amélia?” ‘Como, pra quê? Pra dançar em boates, assim?” “Nada, pra dançar pro marido, namorado, companheiro. São um tesão. Não há quem não curta. Vou te dar o endereço de um, tá”.

“Despudorada a menina, veja só, curso de strip-tease… ai…ai”.

Tempos se passaram. Ana Amélia todas as tardes aprendia um passo novo, um jeito sensual de retirar sua saia, de suspender a blusa até a altura do sutiã, de deixá-la ali meio a acobertar um bojo e o outro não… No ritmo de muitas músicas diferentes, foi ensinada a enlouquecer o parceiro com seu corpo, aquele seu mesmo de sessenta e alguns anos. Estava pronta.

Numa segunda-feira, aniversário de casamento, pediu que o marido Jorge chegasse mais cedo. Estariam sozinhos. Filho viajando.

O pior de tudo era na hora H sentir-se ridícula, que já era entrada em anos e aquilo ficaria bem em uma mocinha como a norinha e tal. Teria coragem?! No curso aprendera a levantar sua autoestima – como diziam por lá – aprendera também a rir de si mesma, caso o marido brochasse, bem possível tamanha a mudança, aprendera a gostar-se mais e, sobretudo, a gostar de fazer amor com seu amor.

Assim o fizera: planejara tudo, casa cheia de velas aromáticas, jantar com frutos do mar e saladas, vinho branco gelado, da preferência dos dois, flores pela casa e um filminho na tela “Love in the afternoon”. Depois era só dançar para ele, não uma música sensual como aquelas do curso. Escolheria uma que para eles sempre representara magia. Seria mais ou menos assim. E se nada corresse como previra, iria fazer tudo de novo noutro dia.

Chegou mais cedo do trabalho, encontrou-a ainda por vestir-se. Tomou banho.

Ela de salto alto, lingerie preta – vermelha pareceria puta, pensava- perfume atrás das orelhas, nos pulsos, sem aliança. Tirou a dele também.

Jantaram, riram, embebedaram-se de um tesão incomensurável.

Colocou o filme. Assistiram de mãos dadas, alguns carinhos, e por fim, o strip- tease. Peça por peça, beijo a beijo, mãos a mãos …

Deu tudo certo. Riu na cama ao recordar  como seu irmão mais velho sempre pilheriava ”Galinha boa cria bom pinto”. Ao que Ana Amélia respondia “Galinha pra ser boa é que precisa de bons pintos”.

Ficaram muito tempo ali sob lençóis, sobre os lençóis, sob a ducha …

Daquele dia em diante lençóis esticadíssimos, nunca mais .

(Originalmente publicado em janeiro de 2016)

Leia aqui também: Recontando contos IV- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/14/recontando-contos-iv/ Recontando contos III -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/13/recontando-contos-iii/ Recontando contos II – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/11/recontando-contos-ii/ Recontando contos I – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/10/recontando-contos-i/

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Foto de minha orquídea

Vídeo: Canal Elis Regina

Recontando contos IV

AME e dê VEXAME, de Roberto Freire, Ed. Guanabara, 1990, RJ

SEXY

Dinorah era sexy.

Não havia como definir, era sexy.

Tinha um jeito displicente de olhar, um andar rebolado tão natural, mas tão natural… que sexy.

Por ser assim talvez, despertava nos homens um desejo quase que incontrolável de tocar nela, beijar ela, comer ela.

Tudo isso lhe passava meio despercebido, porque Dinorah não tinha atração física por homens, em geral. Nem por mulheres. Gostava da sensualidade insinuada, da sedução persistente, do banho-maria em degraus. Gostava mesmo era de preparar a festa.

Dinorah era doceira, confeiteira. Começara adocicando em casa, depois da falência de uma vida a dois, com um companheiro banana, que a única coisa que fazia bem era sexo. E isso não sustentava o teto. Pelo menos para ela não. Adoçando uma festa lá outra cá, montou seu próprio negócio. Com ele ganhava a vida. E bem. Não dava para as encomendas.

Não dava para tanta encomenda de olhares, de piscadelas insinuantes. Parecia uma Gabriela de Jorge, sem o mar de Ilhéus, contudo. E, assim, na entrega dos doces, bolos e trejeitos, vez por outra quase sucumbia a olhares mais cobiçadores dos donos da festa, ao assinarem os cheques, ao passarem o cartão. Sabe como é, adocicou tem que rezar, pensavam. E eram sempre os maridos que tinham que pagar a conta. Eita mulherada dependente, concluía Dinorah.

Certa vez apaixonou-se não por um corpo, mas por uma voz. Enquanto cozinhava, quase sempre em carreira solo, ouvia na rádio FM de sua cidade um locutor. O tal tinha três horários na rádio. De manhã ocupava seu espaço com música sertaneja de raiz e declamava versos. Ao meio-dia, um programa de nostalgia, a saudade não tinha idade e lia crônicas, poemas, versos esparsos, pequenos comentários, nunca de sua lavra, mas a encantavam. Bem de noitinha, depois das sete, programava músicas americanas, sempre contextualizadas a poemas e intenções; Dinorah captava as mensagens e entendia que o locutor dedicava a ela aquelas melodiosas seduções. Enganando-se porque cada um empresta a sua própria vida os olhares que deseja ou precisa emprestar.

Apaixonou-se num tanto, que acreditou ser amada por ele. Assim, não mais olhou ao redor, aos homens interessantes, que sempre há pela cidade.

Certa noite, lambendo a colher de pau que acabara de mexer brigadeiros, ouviu no rádio uma música de mensagem claramente erótica; excitada desejou ligar para o programa – coisa que nunca fizera antes – e falar com ele. Era como se isso concretizasse o ato sexual que imaginava partilhar todas as noites. Estava perdidamente apaixonada. Apaixonada pela voz, pelas palavras lidas, pelas melodias que a tocavam. Não conseguiu falar com ele. O telefone só dava ocupado na rádio. Tinha ensaiado um discurso para quando ele chegasse ao telefone. Tinha até rascunhado umas frases para dizer a ele e, principalmente, lhe entregaria doces mãos, braços polvilhados de açúcares, seios em ponto de suspiro, ventre em ponto de bala.

Não conseguiu. Pensou que não era para ser. Tinha em si esse fatalismo feminino, quase cabalístico da negação amorosa.

Nos dias que se seguiram, entregas de doces. Andares, assinaturas de cheques, quereres.

Doces delírios repetidos, repetidos, repetidos …

(Originalmente publicado em janeiro de 2016)

Leia aqui também: Recontando contos III -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/13/recontando-contos-iii/ Recontando contos II – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/11/recontando-contos-ii/ Recontando contos I – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/10/recontando-contos-i/

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Elis Regina

Recontando contos III

DECLARAÇÃO DO AMANTE ANARQUISTA: “Porque eu te amo, tu não precisas de mim. Porque tu me amas, eu não preciso de ti. No amor, jamais nos deixamos completar. Somos, um para o outro, deliciosamente desnecessários” (última capa de AME e dê VEXAME, de Roberto Freire)

ANORMAIS
Norma
Para acordar
Norma para dormir
Norma para falar
Norma para lembrar
Norma para esquecer
Norma
Régua compasso transferidor
De cima pra baixo
De baixo pra cima
Da esquerda pra direita
Da direta pra esquerda
Norma para chegar
Norma para conhecer
Norma para falar
Norma para tocar
Norma para beijar
Norma para estar em
Norma para sair de
Norma para busca
Norma para entrega
Norma para ler
Norma para ouvir
Norma para comer
Norma para degustar
Norma para olhar a estrada
O lago
A mata
A lua
A vida anormal.

DOMINGO DE MANHÃ

Domingo era dia de lirismo. Era um lirismo de corpos. Acordavam tarde, porque rolavam da cama ao chão, do chão à chuva do chuveiro e depois ao secador de corpos natural- ao sol.

Nus gostavam de se deixar assim, naquela praia deserta de Salvador.

Doces anos aqueles em que praias eram desertas em Salvador.

Ele vinha, ela vinha. Encontravam-se ali, quase que sem palavras. Era rude o amor de seus interiores. Era rude. Arrependia-se de suas rudezas, mas era tarde. Palavras batiam nela como palmatórias e tapas em boca suja de criança.

Para ela, pouco importavam aqueles desprezos dele. Era mulher casada. Bem casada dizia sempre. Estava ali à vontade, por vontade, com vontade e assim seguia dando acolhida a seu corpo dentro do dele, homem rude, bem diferente do esposo, homem fino, de vocabulário comedido – um almofadinha gaulês. Era fino, que se diga logo. Incapaz de uma posição estranha, de um toque mais rude. Em todas as situações: em pé ou não.

Serafine queria mais. Gostava de conquistar, de arrebatar, de sentir que conseguira mais um troféu. Romantismo a serviço.

Não era má. Ao contrário, não fazia mal a ninguém, nem pelo signo, nem pelo discurso, sempre doce e gentil. Quase uma fadinha de contos da carochinha. Mas era assim, digamos, insaciável.

Ser insaciável é qualidade, não é defeito nem senão.

Seu prazer maior residia nesses domingos, quando podia encontrar com seu rude homem e, nus, viverem um mundo à parte.

Talvez, porque bem jovem tivesse sido apascentada com a Belle de Jour, com O Último Tango em Paris, e com outros roteiros de queijos e vinhos finos. Tudo isso fazia dela uma insaciável de corpos.

Serafine era branquinha, cabelos negros, magra e fada. Tinha uma varinha de condão específica. Ia e voltava , ia e voltava. Em várias situações.

O marido fino não suspeitava dessas idas e vindas. Mas talvez se soubesse, aceitasse, porque a varinha mágica o encantava também. E muitos são os mistérios que existem nos corpos encantados de cores e sabores.

Ali, nus, se secando ao sol, começaram a se lembrar de vezes outras. Dores surgiram. Mas o que são dores para quem bebe mel em gotas, várias e várias vezes?

Das dores de dentro, preferiam as de fora: o ralar dos joelhos, a boca mordida, o edema no pescoço… ouvindo aqueles boleros viris e aquelas cançonetas de antanho.

Serafine era mulher de tratos e truques, e, os homens … com ela se encantavam.

De femme fatale não poderia ser acusada jamais. Não era. Era fada, era Fedra, era festa, a Serafine!

(Originalmente publicado em janeiro de 2016)

Leia aqui também: Recontando contos IIhttps://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/11/recontando-contos-ii/ Recontando contos Ihttps://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/10/recontando-contos-i/

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal

Vídeo: Canal COSTAMARBELLA1

“Posso amarrar o seu sapatinho, posso?”

Minha mãe e sua irmã, tia Ziza, com 4 e 6 anos, respectivamente, e seus 3 irmãos menores.

MÃE, EU SOU VOCÊ ?
“Quem quer ser outra deixa de ser uma, mãe?”
“Quem quer ser outra é sempre outra e uma, filha.”
Aquela mulher era uma onça.
Parindo cinco filhotes de parto natural
Amamentando-lhes bocas por toda sua vida
Lavando, passando, cozinhando, costurando
Mãe mais que mulher?
Mulher bem maior que apenas mãe.
Dos ditos, sempre bem ditos, a sabedoria herdada do pai-avô por ventos mineiros.
Com olhar arqueólogo de almas, um chiste, uma picardia.
Ferro nos braços, nas pernas, no peito.
Coração de manteiga derretida e esconderijo de sentimentos.
Onça, minha onça mineira, eu também sou você, mãe?
Sou?

O feijão e o sonho

Meu pai era o sonho, a utopia de um país melhor, das ações coletivas. Minha mãe era o feijão, o concreto.Tinha estilo a minha velha, falava palavras em francês (por influência das décadas em que viveu no Rio e lá se cultuava o francês). Gostava de fazer pratinhos especiais que copiava das receitas das revistas. Meu pai apreciava era o trivial mineiro mesmo, o resto era frivolidade.

Minha mãe acreditava que as filhas, em especial, tinham que estudar, trabalhar e não depender de dinheiro de homem. Queria muito ter podido continuar a estudar no Colégio Imaculada, de Barbacena, onde “as filhas de gente de dinheiro continuaram”. Meu avô tinha padaria. Minha mãe ajudava a entregar pães cedinho – nas casas das moças que continuaram a estudar no Colégio Imaculada.
Dona Itália orgulhava-se de eu ter estudado na USP, nunca ter precisado de homem pra custear minha vida. Admirava quando eu voltava, em feriados e férias ao Rio, e lhe contava das peças de teatro que vi, dos shows a que assisti. Levei-a vez ou outra. Mas achava teatro ”muito realista”, preferia os filmes e as novelas ”os atores são muito mais bonitos lá, Doni”.
Certa vez, ao me ver em sua cadeira de balanço acarinhando e amamentando minha pequenina filha, ficou parada olhando, foi pra cozinha, voltou e disse ”Cadê seus teatros, seus shows, sua USP, seus livros de literatura, hem? Tá igualzinha a mim, fazendo as mesmas coisas, babando na cria”.
Disse a ela que eu era ela, uma outra ela, mas era ela.

“Posso amarrar o seu sapatinho, posso?”

Minha mãe adorava esse vestido. Ela o costurou, em seda pura com estampas suaves. Usava sempre brincos e batom clarinho ao sair de casa, às compras, às vezes esquecia e continuava de brincos o dia inteiro. Eram suas únicas ”vaidades”. Não tinha orelhas furadas, portanto eram de pressão e machucavam. Eu é que os retirava de suas orelhas. Na lida, nem percebia que ainda estava com eles. Ah, dona Itália, dona Itália.

E gostava de contar causos e acontecidos. Em português correto, não gostava dos ”xis” do carioquês, apesar dos mais de 50 anos vividos na antiga capital do país. Mas … logo quando chegou ao Rio, nos anos de 1940, malandro é o que não faltava – daqueles de bico doce querendo capturar as incautas, sabe como é – contava ela então que levava um alfinete de fralda sempre consigo – recomendações da mãe dela, a vó Natália – e pra quê, mãe? Ora, sentenciava com todas as letras, ‘‘pra espetar os espertos que vinham querendo se esfregar na gente na lotação, no bonde”. E nessas suas aventuras com malandros, aquela mocinha bobinha, caipirinha do interior das Gerais, ia aprendendo a se defender sozinha. Dizia que a mãe a aconselhava não envolver marido em questões de abusos, “isso podia dar até em morte”, aprendeu na sevirança, na vida, a se livrar dos gaviões de palavras doces, e que só gostavam das casadas. (Ah, mas isso era naquela época, né.) Pois contou que mais de uma vez, ao descer do bonde, de mãos dadas com meu irmão mais velho, lá por 1941/42, malandros vinham com aquela conversinha mole de ”Posso amarrar o seu sapatinho?”. Eram sapatos de duas cores, em couro, e amarrados por cadarços. Contava ela que usando saia, “eles queriam era ficar a seus pés para” … bem… por vezes pisou-lhes nas mãos e seguiu caminhando. Malandro dos anos de 1940 tinha medo de mulher brava, ainda mais das “brabas, feito onça” – como explicava meu pai.

Minha mãe e sua irmã, tia Ziza, ambas com mais de 70 anos.
Minha mãe e sua irmã, tia Ziza, ambas já com mais de 80 anos.

Poesia e textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal (com a ajuda do arteiro Sandro Ernesto)

Vídeo: Canal ApacheMédian

Recontando contos II

”A ideologia do prazer decorre da compreensão de que o ser humano é essencialmente lúdico, ou seja, que viver é basicamente brincar e jogar. Se a “moral” do sacrifício aproxima amor e dor, o prazer anarquista grita, canta e rima amar com criar e libertar. Defende a necessidade de amar lúdica, criativa e prazerosamente.
Como forma de controle, as sociedades autoritárias desenvolvem no homem a noção e o medo do ridículo . O medo do ridículo se confunde com o medo de ser, de amar, de ser livre. Contra esse veneno só há um antídoto: o vexame.”

(2ª Orelha do livro AME e dê VEXAME, de Roberto Freire)

(Lindo clipe. Imperdível)

MENINOS ROMÂNTICOS
Em Santos, nos anos sessenta, Ricardo e seu primo Renato iam tentar conquistar umas garotas de São Paulo que lá estavam passando o verão.
Marcaram na praia, no final da tarde, e, ambos com 14 anos pouco sabiam de amar, embora desejassem aprender. Assim o primo encontrou-se com as meninas, levou uma delas pra caminhar na praia e a outra ficou aos cuidados de Ricardo.
Com pouca grana, pouquíssima aliás, resolveu comprar uma cocada grande para irem caminhando, passeando e comendo. A mocinha, calada, Ricardo, calado, a cocada era a salvação. E como nada dissessem, a cocada ia sumindo na boca da menina, sem ter ele dado uma bocadinha sequer no delicioso doce. Ícones eternos.
Pararam, ela já quase sem ter mais o que comer, e ele sem ter assunto que falar, vê que a mocinha, parada, se encosta em um murinho. Surpresa. Era o último pedacinho de cocada que se ia, sem o rapazinho ter provado nem um tiquinho  dela !
Nada restava a ele, a hora passava, nada do primo voltar com a amiga de seu par.
Foi aí que teve, não se sabe de onde, a sacada maior: virou-se para a garota encostada no murinho, chegou bem perto dela, num enlevo revelador,  e, perguntou, de súbito:
–  Qual a sua religião?
A menina começou a caminhar de volta ao ponto de onde haviam saído, apressando o passo, sem mesmo olhar para Ricardo, mais atrás.
Ele, meio ao lado, meio atrás, sem cocada, sem mais nada, perdera aquele beijo de murinho.
Dia seguinte, mentiu ao primo.

(Originalmente publicado em janeiro de 2016)

Foto da amiga Regina Morgado – praia de Santos

Leia aqui também: Recontando contos Ihttps://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/01/10/recontando-contos-i/

Texto: Odonir Oliveira

Vídeo: Canal Leoni Oficial