Celeste era uma anciã. Havia sobrevivido a guerras pessoais e coletivas em seu país. Agora, naquele domingo de Páscoa, se sentara na praça, na hora do almoço. Pouca gente na rua. Talvez estivessem todos almoçando em família, depois da missa de Páscoa. Talvez.
Resolvera caminhar. Visitar um pouco de cada Igreja histórica, talvez apenas seus adros, mas viu a movimentação de entrada e saída dos fiéis. Viu e recordou de tempos de antanho. Sentou-se na praça, no banco vazio e reviu outras festas como as desse domingo.
Julinho, enquanto foi Julinho, acordando cedinho, procurando por ovinhos de chocolate, seguindo tufinhos de algodão pelas rotas, rindo de alegria ao encontrar os ovinhos, pequenos e coloridos. Abria-os com uma felicidade, que Celeste se aquecia de perfumes internos. Era… foi tão lindo!
Márcia, enquanto foi Marcinha, fazendo ovos de chocolate em formas, embalando, fazendo cartõezinhos com desenhos de coelhinhos, colando neles algodão. E quando visitavam coelhinhos de verdade, a surpresa de Marcinha ao ver que existiam coelhos de pelos diferentes, havia os rajadinhos, os marrom, os pretos… eram descobertas tão lindas e surpreendentes, que Celeste se aquecia de perfumes internos. Era… foi tão lindo!
Das vezes tantas em que acompanhou filhos virarem pais e até avós… o tempo encaminha memórias e recordações do real vivido.
Celeste chegou para o lado. Sentaram-se ao seu lado no banco mais duas pessoas. Dois jovens.
Foto: Emmanuel, filho de Nina e Estevam, em visita à minha casa, descobrindo objetos que não se usam mais.
Se quer seguir-me, narro-lhe; não uma aventura, mas experiência, a que me induziram, alternadamente, séries de raciocínios e intuições. Tomou-me tempo, desânimos, esforços. Dela me prezo, sem vangloriar-me. Surpreendo-me, porém, um tanto à-parte de todos, penetrando conhecimento que os outros ainda ignoram. O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha idéia do que seja na verdade — um espelho? Demais, decerto, das noções de física, com que se familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Fixemo-nos no concreto. O espelho, são muitos, captando-lhe as feições; todos refletem-lhe o rosto, e o senhor crê-se com aspecto próprio e praticamente imudado, do qual lhe dão imagem fiel. Mas — que espelho? Há-os «bons» e «maus», os que favorecem e os que detraem; e os que são apenas honestos, pois não. E onde situar o nível e ponto dessa honestidade ou fidedignidade? Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para as lentes das máquinas objeções análogas, seus resultados apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados iconográficos os índices do misterioso. Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes. E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico. Não se esqueça, é de fenômenos sutis que estamos tratando.
Resta-lhe argumento: qualquer pessoa pode, a um tempo, ver o rosto de outra e sua reflexão no espelho. Sem sofisma, refuto-o. O experimento, por sinal ainda não realizado com rigor, careceria de valor científico, em vista das irredutíveis deformações, de ordem psicológica. Tente, aliás, fazê-lo, e terá notáveis surpresas. Além de que a simultaneidade torna-se impossível, no fluir de valores instantâneos. Ah, o tempo é o mágico de todas as traições…E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram, mais e mais. Por começo, a criancinha vê os objetos invertidos, daí seu desajeitado tactear; só a pouco e pouco é que consegue retificar, sobre a postura dos volumes externos, uma precária visão. Subsistem, porém, outras pechas, e mais graves. Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente… E então?
Note que meus reparos limitam-se ao capítulo dos espelhos planos, de uso comum. E os demais — côncavos, convexos, parabólicos — além da possibilidade de outros, não descobertos, apenas, ainda? Um espelho, por exemplo, tetra ou quadridimensional? Parece-me não absurda, a hipótese. Matemáticos especializados, depois de mental adestramento, vieram a construir objetos a quatro dimensões, para isso utilizando pequenos cubos, de várias cores, como esses com que os meninos brincam. Duvida? Vejo que começa a descontar um pouco de sua inicial desconfiança, quanto ao meu são juízo. Fiquemos, porém, no terra-a-terra. Rimo-nos, nas barracas de diversões, daqueles caricatos espelhos, que nos reduzem a mostrengos, esticados ou globosos. Mas, se só usamos os planos — e nas curvas de um bule tem-se sofrível espelho convexo, e numa colher brunida um côncavo razoável — deve-se a que primeiro a humanidade mirou-se nas superfícies de água quieta, lagoas, lameiros, fontes, delas aprendendo a fazer tais utensílios de metal ou cristal. Tirésias, contudo, já havia predito ao belo Narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse… Sim, são para se ter medo, os espelhos.
Temi-os, desde menino, por instintiva suspeita. Também os animais negam-se a encará-los, salvo as críveis excepções. Sou do interior, o senhor também; na nossa terra, diz-se que nunca se deve olhar em espelho às horas mortas da noite, estando-se sozinho. Porque, neles, às vezes, em lugar de nossa imagem, assombra-nos alguma outra e medonha visão. Sou, porém, positivo, um racional, piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações? — jamais. Que amedrontadora visão seria então aquela? Quem o Monstro?
Sendo talvez meu medo a revivescência de impressões atávicas? O espelho inspirava receio supersticioso aos primitivos, aqueles povos com a idéia de que o reflexo de uma pessoa fosse a alma. Via de regra, sabe-o o senhor, é a superstição fecundo ponto de partida para a pesquisa. A alma do espelho — anote-a — esplêndida metáfora. Outros, aliás, identificavam a alma com a sombra do corpo; e não lhe terá escapado a polarização: luz — treva. Não se costumava tapar os espelhos, ou voltá-los contra a parede, quando morria alguém da casa? Se, além de os utilizarem nos manejos da magia, imitativa ou simpática, videntes serviam-se deles, como da bola de cristal, vislumbrando em seu campo esboços de futuros fatos, não será porque, através dos espelhos, parece que o tempo muda de direção e de velocidade? Alongo-me, porém. Contava-lhe…
— Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado, avistei… Explico-lhe: dois espelhos — um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício — faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era — logo descobri… era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?
Desde aí, comecei a procurar-me — ao eu por detrás de mim — à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. Isso, que se saiba, antes ninguém tentara. Quem se olha em espelho, o faz partindo de preconceito afetivo, de um mais ou menos falaz pressuposto: ninguém se acha na verdade feio: quando muito, em certos momentos, desgostamo-nos por provisoriamente discrepantes de um ideal estético já aceito. Sou claro? O que se busca, então, é verificar, acertar, trabalhar um modelo subjetivo, preexistente; enfim, ampliar o ilusório, mediante sucessivas novas capas de ilusão. Eu, porém, era um perquiridor imparcial, neutro absolutamente. O caçador de meu próprio aspecto formal, movido por curiosidade, quando não impessoal, desinteressada; para não dizer o urgir científico. Levei meses.
Sim, instrutivos. Operava com toda a sorte de astúcias: o rapidíssimo relance, os golpes de esguelha, alonga obliqüidade apurada, as contra-surpresas, a finta de pálpebras, a tocaia com a luz de-repente acesa, osângulos variados incessantemente. Sobretudo, uma inembotável paciência. Mirava-me, também, em marcadosmomentos — de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-meenigmas. Se, por exemplo, em estado de ódio, o senhor enfrenta objetivamente a sua imagem, o ódio reflui erecrudesce, em tremendas multiplicações: e o senhor vê, então, que, de fato, só se odeia é a si mesmo. Olhoscontra os olhos. Soube-o: os olhos da gente não têm fim. Só eles paravam imutáveis, no centro do segredo. Se é que de mim não zombassem, para lá de uma máscara. Porque, o resto, o rosto, mudava permanentemente. O senhor, como os demais, não vê que seu rosto é apenas um movimento deceptivo, constante. Não vê, porque mal advertido, avezado; diria eu: ainda adormecido, sem desenvolver sequer as mais necessárias novas percepções. Não vê, como também não se vêem, no comum, os movimentos translativo e rotatório deste planeta Terra, sobre que os seus e os meus pés assentam. Se quiser, não me desculpe; mas o senhor me compreende.
Sendo assim, necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa — a minha vera forma. Tinha de haver um jeito. Meditei-o. Assistiram-me seguras inspirações.
Concluí que, interpenetrando-se no disfarce do rosto externo diversas componentes, meu problema seria o de submetê-las a um bloqueio “visual” ou anulamento perceptivo, a suspensão de uma por uma, desde as mais rudimentares, grosseiras, ou de inferior significado. Tomei o elemento animal, para começo.
Parecer-se cada um de nós com determinado bicho, relembrar seu facies, é fato. Constato-o, apenas; longe de mim puxar à bimbalha temas de metempsicose ou teorias biogenéticas. De um mestre, aliás, na ciência de Lavater, eu me inteirara no assunto. Que acha? Com caras e cabeças ovinas ou eqüinas, por exemplo, bastalhe relancear a multidão ou atentar nos conhecidos, para reconhecer que os há, muitos. Meu sósia inferior na escala era, porém — a onça. Confirmei-me disso. E, então, eu teria que, após dissociá-los meticulosamente, aprender a não ver, no espelho, os traços que em mim recordavam o grande felino. Atirei-me a tanto.
Releve-me não detalhar o método ou métodos de que me vali, e que revezavam a mais buscante análise e o estrênuo vigor de abstração. Mesmo as etapas preparatórias dariam para aterrar a quem menos pronto ao árduo. Como todo homem culto, o senhor não desconhece a Ioga, e já a terá praticado, quando não seja, em suas mais elementares técnicas. E, os “exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora… Enfim, não lhe oculto haver recorrido a meios um tanto empíricos: gradações de luzes, lâmpadas coloridas, pomadas fosforescentes na obscuridade. Só a uma expediência me recusei, por medíocre senão falseadora, a de empregar outras substâncias no aço e estanhagem dos espelhos. Mas, era principalmente no modus de focar, na visão parcialmente alheada, que eu tinha de agilitar-me: olhar não-vendo.. Sem ver o que, em meu rosto, não passava de reliquat bestial. Ia-o conseguindo?
Saiba que eu perseguia uma realidade experimental, não uma hipótese imaginária. E digo-lhe que nessa operação fazia reais progressos. Pouco a pouco, no campo-de-vista do espelho, minha figura reproduzia-se-me lacunar, com atenuadas, quase apagadas de todo, aquelas partes excrescentes. Prossegui. Já aí, porém, decidindome a tratar simultaneamente as outras componentes, contingentes e ilusivas. Assim, o elemento hereditário — as parecenças com os pais e avós — que são também, nos nossos rostos, um lastro evolutivo residual. Ah, meu amigo, nem no ovo o pinto está intacto. E, em seguida, o que se deveria ao contágio das paixões, manifestadas ou latentes, o que ressaltava das desordenadas pressões psicológicas transitórias. E, ainda, o que, em nossas caras, materializa idéias e sugestões de outrem; e os efêmeros interesses, sem seqüência nem antecedência, sem conexões nem fundura. Careceríamos de dias, para explicar-lhe. Prefiro que tome minhas afirmações por seu valor nominal.
À medida que trabalhava com maior mestria, no excluir, abstrair e abstrar, meu esquema perspectivo clivava-se, em forma meândrica, a modos de couve-flor ou bucho de boi, e em mosaicos, e francamente cavernoso, como uma esponja. E escurecia-se. Por aí, não obstante os cuidados com a saúde, comecei a sofrer dores de cabeça. Será que me acovardei, sem menos? Perdoe-me, o senhor, o constrangimento, ao ter de mudar de tom para confidência tão humana, em nota de fraqueza inesperada e indigna. Lembre-se, porém, de Terêncio. Sim, os antigos; acudiu-me que representavam justamente com um espelho, rodeado de uma serpente, a Prudência, como divindade alegórica. De golpe, abandonei a investigação. Deixei, mesmo, por meses, de me olhar em qualquer espelho.
Mas, com o comum correr quotidiano, a gente se aquieta, esquece-se de muito. O tempo, em longo trecho, é sempre tranqüilo. E pode ser, não menos, que encoberta curiosidade me picasse. Um dia… Desculpeme, não viso a efeitos de ficcionista, inflectindo de propósito, em agudo, as situações. Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi. Não vi nada. Só o campo, liso, às vácuas, aberto como o sol, água limpíssima, à dispersão da luz, tapadamente tudo. Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era — o transparente contemplador?… Tirei-me. Aturdi-me, a ponto de me deixar cair numa poltrona.
Com que, então, durante aqueles meses de repouso, a faculdade, antes buscada, por si em mim se exercitara! Para sempre? Voltei a querer encarar-me. Nada. E, o que tomadamente me estarreceu: eu não via os meus olhos. No brilhante e polido nada, não se me espelhavam nem eles!
Tanto dito que, partindo para uma figura gradualmente simplificada, despojara-me, ao termo, até à total desfigura. E a terrível conclusão: não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um… desalmado? Então, o que se me fingia de um suposto eu, não era mais que, sobre a persistência do animal, um pouco de herança, de soltos instintos, energia passional estranha, um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? Diziam-me isso os raios luminosos e a face vazia do espelho — com rigorosa infidelidade. E, seria assim, com todos? Seríamos não muito mais que as crianças — o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória.
Mas, o senhor estará achando que desvario e desoriento-me, confundindo o físico, o hiperfísico e o transfísico, fora do menor equilíbrio de raciocínio ou alinhamento lógico — na conta agora caio. Estará pensando que, do que eu disse, nada se acerta, nada prova nada. Mesmo que tudo fosse verdade, não seria mais que reles obsessão auto-sugestiva, e o despropósito de pretender que psiquismo ou alma se retratassem em espelho…
Dou-lhe razão. Há, porém, que sou um mau contador, precipitando-me às ilações antes dos fatos, e, pois: pondo os bois atrás do carro e os chifres depois dos bois. Releve-me. E deixe que o final de meu capítulo traga luzes ao até agora aventado, canhestra e antecipadamente.
São sucessos muito de ordem íntima, de caráter assaz esquisito. Narro-os, sob palavra, sob segredo. Pejo-me. Tenho de demais resumi-los.
Pois foi que, mais tarde, anos, ao fim de uma ocasião de sofrimentos grandes, de novo me defrontei — não rosto a rosto. O espelho mostrou-me. Ouça. Por um certo tempo, nada enxerguei. Só então, só depois: o tênue começo de um quanto como uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância. Seu mínimo ondear comovia-me, ou já estaria contido em minha emoção? Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa? Se quiser, infira o senhor mesmo.
São coisas que se não devem entrever; pelo menos, além de um tanto. São outras coisas, conforme pude distinguir, muito mais tarde — por último — num espelho. Por aí, perdoe-me o detalhe, eu já amava — já aprendendo, isto seja, a conformidade e a alegria. E… Sim, vi, a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto; não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto — quase delineado, apenas — mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal… E era não mais que: rostinho de menino, de menosque-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?
Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, descubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano — intersecção de planos — onde se completam de fazer as almas?
Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica — ou pelo menos parte — exigindo o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale”… — digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas… E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: — ”Você chegou a existir?”
Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?
– João Guimarães Rosa, no livro “Primeiras estórias”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008; 16ª ed., Global Editora, 2019. (mantida a ortografia original)
Em 2017, passei 7 dias no PERD, queria conhecer de perto o que havia visto em vídeos do YouTube. Registrei não só o Rio Doce, como a Lagoa do Bispo, a Lagoa Tiririca, a Serra do Jacroá, a Ponte Queimada, o Córrego da Onça, as Cachoeiras da Jacuba, Pingo D’água, Marliéria, Timóteo, Santana do Paraíso, Jaguaraçu. Foi um sonho realizado.
A água do Rio Doce
A água do rio que vem da nascente Que desce do monte criando corrente Fazendo caminho, abrindo vertente Cortando vereda, formando afluente A água do rio tem medo de gente A água do rio que é tão diferente Da água do mar, do céu, d’água ardente Que rompe barreira, que vira uma enchente Que ziguezagueia, mas que segue em frente A água do rio tem medo de gente A água que segue correndo em desvio Riscando seu leito de um jeito arredio Tem medo de gente no seu rodopio E o medo que sente não é desvario Que é gente que mata a água do rio A água do rio que vem da nascente Que desce do monte criando corrente Fazendo caminho, abrindo vertente Cortando vereda, formando afluente A água do rio tem medo de gente A água do rio que é tão diferente Da água do mar, do céu, d’água ardente Que rompe barreira, que vira uma enchente Que ziguezagueia, mas que segue em frente A água do rio tem medo de gente A água que segue correndo em desvio Riscando seu leito de um jeito arredio Tem medo de gente no seu rodopio E o medo que sente não é desvario Que é gente que mata a água do rio A água do rio A água do rio
Um trem que a gente tem que saber distinguir é isso de aquilo, é ou não é? O papeateiro do proseador, o garganta do narrador. A maturidade e a velhice devem conferir avanços à sensibilidade, à percepção de veracidade e, principalmente, devem nos ensinar a atribuir credibilidade a quem realmente merece.
-Vem, vou preparar um pão e um bolo de aveia pra nós. Eu sei que uma boa prosa cai bem. -Vai dar trabalho, não vai se incomodar. Tá, então fico se você me deixar te ajudar, pode ser?-Ótimo, pega as bananas, o açúcar mascavo, a farinha de aveia, ovos, passas e as amêndoas. -Agora vamos proseando enquanto preparo, coloco pra assar e você vai lavando as louças… -Tá bom, é pra já. Mas sabe o que está acontecendo? Foi naquele dia em que estávamos lá…
Texto: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal: um bolo e um pão de aveia com bananas, que acabei de assar
A NUVEM olha sonhando olha desejando olha em formas e tons olha nuvens de algodão toca nuvens de algodão doce toca nuvens de algodão mais doce que algodão-doce flutua à espera da nuvem lírica espera esteja ainda ali
ANDANDO NAS NUVENS Andando, literalmente, nas nuvens. Num átimo do tempo, subi nas nuvens, mirei os homens, tristes. Mirei as árvores e as flores, amigáveis. Andando nas nuvens…
UM MILHÃO DE AMIGOS João quer companhia. João precisa de companhia. João encontra. Tem um milhão de amigos pra bem mais forte poder cantar. João quer estar nos bares. João quer estar nas festas. João quer estar nas praias. João quer estar nas redes. João não se conhece só. João não se suporta só. João não se reconhece. João não consegue se suportar. João, Joana, Não se conhecem.
Já estive folha em tantos e tantos outonos, que nenhum deles me surpreende mais. Convivi com muitas mulheres, colegas de trabalho, cotidianamente competitivas, enciumadas, engenheiras de planos mefistofélicos para armadilhas de enredar pessoas, oferecendo-lhes pisos ensaboados e derrubadas fatais. Nas escolas onde trabalhei, pude conviver com muitas disputas, muitas rivalidades entre professoras. Dizem que quem se preocupa em destruir as qualidades de outros é porque se sente muito inferiorizado e o faz para vingar-se do bom desempenho alheio. Nunca quis ser a sempre desconfiada, com um pé atrás, com um olho no gato e outro no peixe. Acredito que viver assim é muito ingrato, desconfia-se de tudo. Há sim traições a amizades, intrigas, maldades, mas as máscaras caem fatalmente. Mulheres, muitas vezes, são ardilosas, sabem fazer uma cama de gato e envolver os outros (não estou livrando homens, mas costumam ser “mais distraídos”, talvez).
Durante a juventude, cheguei a alertar amigos que determinadas pessoas estavam sendo falsas, convincentemente falsas, mas a vaidade de alguns não permitia que enxergassem que estavam sendo manipulados, com açúcar com afeto. Mais tarde, na vida adulta, sinalizei a colegas de trabalho que observassem mais argutamente certas posturas, que não precisavam seguir o que eu apontava, mas que fossem mais atentos. Cheguei a ouvir que estava errada (nem era equivocada, mas errada) que não eram homens de se envolver com mulheres de tal tipo etc. O mesmo se dava com amigas mais próximas. E quando se dispara um alerta, corre-se o risco de ser entendida como a que faz intrigas e tudo o mais.
Percebo que há pessoas que desenvolvem um dom de iludir, de ludibriar, de enredar, de convencer até com certa racionalidade e credibilidade a quem desejam. Na terceira idade, adquiri mais facilidade em reconhecer comportamentos falsos, sentimentos falsos, bajuladores, interesseiros, manipuladores. E ainda assim me surpreendo a cada dia com novos engenhos que se jogam aos nossos pés. Essa mania de acreditar nos seres humanos!
Penso que viver muitos outonos deve nos conduzir a ter maior experiência com o ser humano. Aqueles que querem se dar bem com todos, sem qualquer dissidência, ruptura, os que fazem apenas política da boa vizinhança porque não se revelam nunca, não dizem o que estão pensando nunca, sempre afáveis, bonachões, os engraçados com as outras pessoas, livro-os de mim. Ou não têm nenhuma capacidade de reflexão, são imaturos demais, não elaboram, nem aprofundam vivências ou são grandessíssimos cabotinos, mascarados, cínicos. Tenho poucos amigos no Facebook. Só aqueles que me conhecem.
Outonos deitam folhas ao chão.
MULHER DE OUTONOS Calem-me aqueles que conseguirem. Não vai ser fácil. Aprendi a escrever com letras maiúsculas o de dentro de mim. Não consigo mais esquecer como se faz. Beiro as últimas estações de uma existência Delas colho flores nas primaveras Recolho folhas secas e murchas nos outonos. Ensandeço e ardo nos verões Quedo semimorta de cansaço nos invernos de meu sofrer. Não quero mais amores que já tive. Não quero mais emoções que já vivi. Não quero mais dores que já senti. Não aceito mais meios, terços e quartos. Gosto de inteiros, cheios, amplos e grandes. De tudo que estiver comigo seja o que for seja quem for. Sou mulher. Estou nos outonos de mim. Faltam-me poucos meios-dias e meias-noites Assim desejo-os inteiros.
Nasceram e nunca souberam quem seria o mais velho, quem nascera primeiro etc. Ele e Elle eram semelhantes e diferentes. Elle cresceu mais depressa, era mais desinibido e sabia fazer muxoxos, caras, bocas e manhas a seus pais e avós para conseguir seus objetivos. Era Elle o nome que mais se ouvia gritar pela empregada da casa, era quem inventava as brincadeiras dirigia tudo, desde pequenino, quando aprendera a falar. Destacava-se muito, talvez houvesse nele um espírito de liderança, ou talvez certa coação dissimulada.
Já Ele era mais sensível, mais miúdo, sorria leve em suas duas covinhas do rosto. Era um bom artilheiro no futebol, apresentava certa arquitetura nas jogadas, sabia favorecer os companheiros. Fazia sucesso no futebol. E, indiscutivelmente, era fã de seu irmão gêmeo, o defendia, pensava nele quando estava contente, queria contar a Elle suas novidades, enfim Ele e Elle guardavam semelhanças e diferenças entre si.
Comparações sempre houve, principalmente entre vizinhos, parentes, colegas de escola. Uns credenciavam Elle como o melhor; outros, Ele. Talvez isso tudo tivesse criado um certo caim-e-abel neles. Não se sabia bem.
Adolescentes, Elle e Ele foram nadar com um grupo de amigos no lago que era emoldurado pela tal afamada cachoeira. Uma cabeça d’água pegou os dois ali com os amigos. Fora violenta, seletiva e cruel. Um deles não sobreviveu.
STELLA E ESTRELLA
A mãe já tinha uma menina de 6 anos, não desejava mais engravidar. Foi quando se viu grávida. Ficou tão estática, que nem iniciou o pré-natal. Fora sozinha, aos 4 meses ao ginecologista porque engordava mais que os vinte e tantos quilos da primeira gravidez, sofria de pressão alta e, talvez, aquela sensação de impotência quanto à última gravidez, estivesse lhe fazendo mal. O médico testemunhou que esperava duas meninas. Voltou para casa, estarrecida, mas antes passou na casa da mãe. A avó das crianças a consolou, contou à outra netinha que chegariam não um irmãozinho, mas duas irmãzinhas.
Período difícil até o final dos nove meses, até uma eclâmpsia, após a cesariana no hospital. Não amamentou as gêmeas, pois ficou por lá ainda mais duas semanas.
Resolvera que não as vestiria como dois pares de jarras, iguaizinhas. Estrella era grandona, falava bem, jogou vôlei, estudou Direito. Casou-se depois dos trinta anos e teve um belo garotão. Já Stella era mais delicada, gostava pouco de tarefas domésticas e mais de biologia. Casou-se antes, mas nunca teve filhos. Muito parecidas fisicamente, sempre estiveram juntas em suas existências.
POR QUE OVOS TÊM DUAS GEMAS?
“Era para ser uma, mas saiu com duas gemas…
Explicação de uma das especialistas em produção de ovos no País, a zootecnista Camila Dudzevicius Chagas Cuencas, com especialização em sistema de Gestão de Qualidade e é atualmente gestora de Operações Industriais da Katayama Alimentos, uma das maiores produtora de ovos do País.
Os ovos com duas gemas acontecem naturalmente só que com uma frequência bem menor, em comparado aos ovos com uma gema, segundo Cuencas.
“São ovos normais que costumam aparecer quando as galinhas mais jovens começam a ovulação. Isso porque o ciclo hormonal das aves jovens, em alguns casos, variando de animal para animal, pode ser irregular, resultando em ovos com duas gemas. Normalmente, esses ovos são maiores, mais pesados e pontudos”, explica a especialista.
Como acontece?
A explicação para isso começa pelo formato do órgão reprodutor das aves, que é afunilado. Segundo Cuencas, normalmente apenas uma gema desprende-se do ovário e é encaminhada para o oviduto, que é o canal pelo qual o ovo passa dos ovários para fora do corpo da ave. Nas aves jovens podem se desprender duas ao invés de apenas uma gema. No oviduto que as gemas se agregam à clara.
Após percorrer todo o canal, gemas e clara recebem sua proteção, a casca. As aves demoram em média de 24 a 26 horas para a produção de 1 ovo.
“Os ovos com duas gemas não se diferenciam de ovos com 1 gema, em termos de qualidade. Apenas temos um aumento dos níveis nutricionais pela presença de duas gemas. Portanto podem ser ingeridos normalmente. O aparecimento de ovos com duas gemas não tem relação com uso de antibióticos ou outros medicamentos”, explica Cuencas.
-Este ovo poderia gerar pintinhos gêmeos?
Em tese, ovos com duas gemas poderiam gerar dois pintinhos, mas o que se vê na prática é que nenhum dos dois sobrevive, segundo a especialista. O ovo em questão teria de ser galado, ou seja, que foi fertilizado por espermatozoides de um galo.
O fato é que nenhum sobreviveria porque a câmara de ar dentro do ovo – essencial para completar o ciclo pulmonar dos pintinhos – é pequena demais para os dois.
“Como nessa câmara só há espaço para a cabeça de um deles, em 99% dos casos os dois acabam morrendo”, explica o zootecnista Edvaldo Garcia, pesquisador da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
A tal câmara de ar é um espaço entre a membrana que reveste internamente a casca do ovo e outra membrana que envolve o pintinho. Numa gestação normal, na fase final do seu desenvolvimento, o filhote usa o bico para furar a película que o protege e passa a respirar o oxigênio existente na câmara. A dupla gestação é resultado de uma irregularidade do ciclo hormonal das galinhas, e, só serve mesmo para deixar a omelete mais turbinada.[…]
Quando menina quis ser caminhoneira, influências mineiras, projeção em possibilidades. Queria conhecer meu país de um jeito simples e particular que me fizesse beber sua natureza e suas gentes. Depois, fui descortinando alternativas e agora, na velhice, saio de carro, SEM ROTEIRO na maior parte das vezes. Vou guiando e me guiando por sons de trens, de rios, do vento, pela beleza das árvores e das flores. Aí sim. O sol me bate na pele e meus olhos respiram o meu país.
Já escrevi quase uma centena de poesias sobre rios. Quem as ler deve trazer suas chaves para beber mãos cheias de metáforas, goles de prosopopeias, molhar seus pés nas hipérboles e, principalmente, deixar seu corpo refrescar-se no movimento das águas. Rios são puro lirismo.
No meu canal no YouTube há uma playlist dedicada aos Rios, riachos e córregos.