ANTIGAMENTE, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas. Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões, faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficava longos meses debaixo do balaio. E levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas, quando corriam, antigamente, era de tirar o pai da forca, e não caíam de cavalo magro.
Algumas jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam alguém que lhes passava manta e azulava, dando às de Vila-diogo. Os idosos, depois da janta, faziam o quilo, saindo para tomar a fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou sonhavam em andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças pardas; não admira que dessem com os burros n’água.
Havia os que tomavam chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu , exclamando: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”; ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os eruditos, se alguém espirrava – sinal de defluxo -, eram impelidos a exortar: “Dominus Tecum.” Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com isso punham a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram encapetados; chegavam a pitar escondido, atrás da igreja. As meninas, não : verdadeiros cromos, umas tetéias.
Antigamente, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde judas perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um “cabrito”, não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia novidades de baixo, ou seja, da corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de presente ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais que velhacos: eram grandessíssimos tratantes.
Acontecia o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor e, depois ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas, asthmas os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser superior e mesmo X.P.T.O.London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam: descansavam. Mas tudo isso era antigamente, isto é, outrora.
II-
Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés sem tugir nem mugir. Nada de bater na corcunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer todo liró ao copo d’água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de um treteiro de topete; depois de fintar e de engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da Candinha: que somava a candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando, encafifada, muita gente na embira, que não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o mão-de-defunto.
Bom era ter costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão; melhor ainda, ter uma caixinha de pós de pirlimpimpim, pois isso evitava de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes que Deus fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no dia-de-reis, um capado! Ganhar vidro de cheiro marca Barbante, isso não: a mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia um doutor pomada, todo cheio de noive horas; ia-se ver, debaixo de tanta farafo era um doutor mula ruça, um pé rapado, que espiga! E a moçoila, que começava a nutrir xodó por ele, que estava mesmo de rabicho, caía das nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as estribeiras por uma tutaméi, um alcaide que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um cascão de goiabada.
Em compensação, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que vida supimpa a do Degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos que havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no prato em que comera), o testa-de-ferro, o sabe-com-quem-está-falando, o sangue-de-barata, o dr. Fiado que morreu ontem, o Zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o passador de nota falsa, o mequetrefe, o safardana, o maria-vai-com-as-outras….Depois de mil peripécias, assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com o rabo na cerca, ou simplesmente a bota, sem saber como descalçá-la. Mas até aí morreu o Neves, e não foi no dia de São Nunca de tarde: foi vítima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os recursos da ciência, e acreditam que a família nem sequer botou fumo no chapéu.
Carlos Drummond de Andrade
Por décadas, li com meus alunos esse texto de Drummond. Parecia a eles uma outra língua, um antiguês, dialeto do português atual. Isso era um gatilho para trabalharmos diferenças e variantes linguísticas em tempo, regiões etc. Contudo, o mais saboroso era irem levantando hipóteses para o significado das palavras e expressões, dentro do contexto. Ouvíamos cançonetas do início do século XX, em especial os chorinhos. Depois pedia que desenhassem o que descobriram, algumas vezes faziam colagens também. Uma delícia de trabalho com os jovens, que certamente encantaria meu pai lírico Drummond em demasia.
Texto: Carlos Drummond de Andrade
Fotos de arquivo pessoal: capa e páginas da mesma obra
Republicação do post de 26/3/2018 – UM ENCONTRO MARCADO COM FERNANDO
Professor é aquele que mesmo em momentos de diversão, deleite, encontra ali um vínculo, um link a ser feito também com seu ofício de ensinar.
Conheci pessoalmente Fernando Sabino numa noite de novembro de 1991. Fui assistir a uma mesa-redonda da qual ele participava, em São Paulo. Ao final, ficamos conversando, autografou seu último livro que eu havia levado e foi mineiramente o contador de “causos”, que eu previa.
Contei a ele o trabalho que estava desenvolvendo com meus alunos do Colégio Galileu Galilei, nas sextas séries. Conforme eu lhe contava, seus olhos ficavam cada vez mais atentos. Pediu que lhe mandasse alguma coisa deles pra ele ler. Dando-me seu endereço e telefone em Ipanema, no Rio. Enviei as cartas dos meninos e meninas; nelas eles contavam do que mais haviam gostado no livro lido, faziam perguntas e mais algumas meninices tantas. Fernando respondeu uma por uma e mandou para o colégio.
Então vamos fazer de um limão vários jarros de limonada, por que não?
LEITURAS INICIAIS
Iniciamos com o texto “Menino”. Lemos as frases e pedi que marcassem apenas aquelas que seus pais diziam para eles. Foi muito bacana. Houve quem marcasse poucas e quem tivesse assinalado muitas. Rimos, e concluíram que uns eram bem mais “levados” do que outros. Coisas que a infância vai perfumando, como poesia.
MENINO
Menino, vem pra dentro, olha o sereno! Vai lavar essa mão. Já escovou os dentes? Toma a benção a seu pai. Já pra cama!
Onde aprendeu isso menino? – coisa mais feia. Toma modos. Hoje você fica sem sobremesa. Onde é que você estava? Agora chega, menino, tenha santa paciência.
De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe? Isso, assim que eu gosto: menino educado, obediente. Está vendo? É só a gente falar. Desce daí, menino! Me prega cada susto…para com isso! Joga isso fora. Uma boa surra dava jeito nisso. Que é que você andou arranjando? Quem te ensinou esses modos? Passe pra dentro. Isso não é gente para ficar andando com você.
Avise seu pai que o jantar tá na mesa. Você prometeu, tem de cumprir. Que é que você vai ser quando crescer? Não, chega: você já repetiu duas vezes. Por que você está quieto aí? Alguma coisa está tramando…não anda descalço, já disse! – vai calçar o sapato. Já tomou remédio? Tem de comer tudo, você tá virando um palito. Quantas vezes já te disse para não mexer aqui? Esse barulho, menino! – teu pai tá dormindo. Para com essa correria dentro de casa, vai brincar lá fora. Você vai acabar caindo daí. Pede licença a seu pai primeiro. Isso é maneira de responder à sua irmã? Se não fizer, fica de castigo. Segura o garfo direito. Põe a camisa pra dentro da calça. Fica perguntando, tudo você quer saber! Isso é conversa de gente grande. Depois eu te dou. Depois eu deixo. Depois eu te levo. Depois eu conto. Agora não, depois!
Deixa seu pai descansar – ele está cansado, trabalhou o dia todo. Você precisa ser muito bonzinho com ele, meu filho. Ele gosta tanto de você. Tudo que ele faz é para seu bem. Olha aí, vestiu essa roupa agorinha mesmo, já está toda suja. Fez seus deveres? Você vai chegar atrasado. Chora não filhinho, mamãe está aqui com você. Nosso Senhor não vai deixar doer mais.
Quando você for grande, você também vai poder. Já disse que não, e não, e não! Ah, é assim? – pois você vai ver só quando seu pai chegar. Não fale de boca cheia. Junta a comida no meio do prato. Por causa disso é preciso gritar? Seja homem. Você ainda é muito pequeno pra saber essas coisas. Mamãe tem muito orgulho de você. Cale essa boca! Você precisa cortar esse cabelo.
Sorvete não pode, você tá resfriado. Não sei como você tem coragem de fazer assim com sua mãe. Se você comer agora, depois não janta. Assim você se machuca. Deixa de fita. Um menino desse tamanho, que é que os outros hão de dizer? Você queria que fizessem o mesmo com você? Continua assim que eu te dou umas palmadas. Pensa que a gente tem dinheiro pra jogar fora? Toma juízo menino!
Ganhou agora mesmo e já acabou de quebrar. Que é que você vai querer no dia de seus anos? Agora não, depois, tenho mais o que fazer. Não fica triste não, depois mamãe te dá outro. Você teve saudades de mim? Vou contar só mais uma, tá na hora de dormir. Vem que a mamãe te leva pra caminha. Mamãe te ama, viu! Dá um beijo aqui. Dorme com Deus meu filho!
Pedi que fizessem o mesmo com seus pais. Agora seriam eles a reconhecer as frases mais usadas com o filho. E pedi que os pais lhe dessem outro título (Na verdade, fora sugestão de uma aluna. “Odonir, esse título do Fernando Sabino e muito bobo; você já ensinou a não dar título bobinho pros nossos textos, né”). Queria que as meninas e os meninos fortalecessem o conceito e a arte de se dar títulos, ideia central, certa inovação a despertar interesse em quem vai ler etc. Essa interação com a família é de suma importância, posto que integra a família com a escola, ensina o que se ensina por lá, ou até mesmo propicia aos pais se lembrarem do quão meninos já foram. Tudo alegria.
Faz muitos anos, entretanto me recordo de alguns títulos – talvez pela criatividade dos pais – “The mamas and the papas“, “Mãe é tudo igual”, “Criança é graça”, ” A arte de ser pai de aluno de uma professora crítica”. Cada um leu o “seu” e aí deram outros. Foram votados os mais interessantes etc.
“SEMEANDO INFÂNCIA”
Nas próximas aulas, propus que narrassem a aventura ou o fato mais antigo de suas infâncias, aquele de que se lembrassem. Sentados em grupos de 4, começaram a lembrar e ir contando aos parceiros. Eu caminhava pelos grupos, aqui-ali mediando os relatos orais, orientando datação, localização, envolvidos na trama, desfecho etc. Depois eles próprios haviam aprendido e faziam uns com os outros. Votaram no mais interessante, mais arriscado, mais terrível de cada grupo. Depois foram à frente da classe narrar as aventuras vividas. Foi muito interessante notar quantos adjetivos, quanta expressividade havia ali naqueles relatos. Relatos orais na escola, língua oral, devolver o discurso para os meninos – fundamentais a quem aprende e a quem ensina.
Ah, narrei o meu também. Professores devem se juntar aos alunos, sendo com eles também um aprendiz. Lembrei meu aniversário de 5 anos, com bolo de roda- gigante, bonequinhas vestidas nas cadeirinhas e docinhos de moranguinhos, deliciosos, tudo feito por minha mãe lá em Xerém, RJ. Eles adoraram.
PRODUÇÃO DE TEXTO
Pedi que agora escrevessem a sua aventura. Leram para os parceiros do grupo. Aproveitei e fiz rodízio entre os integrantes. É muito importante diversificar. A convivência de alunos com mais dificuldade de escrita e outros com bastante facilidade– sendo mediadores, os ajudando- ensina a tolerância, a solidariedade e estimula a competência– creio eu.
Produziram. Na hora em que foram ler, um menino fez a observação régia “Seu texto quando você contou era bem mais legal que agora que você leu”. Refleti com eles os porquês dessa observação. Fui encaminhando a discussão para que percebessem a distância que havia- tradicionalmente- entre a norma culta falada e a escrita e que podiam conhecer ambas e usá-las como desejassem, quando preferissem ou fosse necessário etc. A famosa adequação da linguagem à situação de uso.
NOTA DE CONTEXTUALIZAÇÃO
Cumpre lembrar que esses meninos e meninas não tinham mais de 12 anos. Idade em que se é bastante criança ainda, mas se nega isso ao extremo. Meninos só gostam de meninos, reproduzem comportamentos masculinos clichê, difundidos há décadas, e meninas também reproduzem as feminices todas. Há um confronto enorme de ideias, de sentimentos entre eles, chegando até a algum tipo de violência – física ou velada. A crueldade se espalha como perfume. Prefiro tirar deles o perfume. Sempre. Portanto, é preciso ensinar-lhes a lidar com sentimentos como ódio, raiva, agressão – naturais – mas transformando-os. E arte, criatividade é o “canal”, porque tem como matéria-prima os afetos, as sensações.
Foram feitas várias edições. E foi porque eu corrigi, com caneta vermelha? NÃO. Os leitores, o público leitor ao qual se destinavam aqueles textos é que deveria opinar. Passaram a fazer as críticas por escrito, em bilhetinhos, que eram presos por clips e entregues ao escritor. “Acho que tem muitas palavras repetidas”. “O final ficou sem graça.” “O título já conta tudo.” ” Tem muita troca de letras.” “Gostei, achei bem interessante. ” “Melhore a pontuação, tá faltando vírgula demais aí” etc.
Por fim, pedi que reescrevessem os textos e os ilustrassem com desenhos, colagens, o que fosse pertinente às aventuras vividas.
Ah, virou livro, né. Lindos livros até com grãos de feijão e de arroz, simulando uma narrativa ligada a um prato de sopa puxado pela toalha da mesa e derrubado na cabeça da menina; outro narrou o dia em que se perdeu na CEASA; outro a neve de onde havia morado e o frio sentido. Tantas narrativas da infância.
Lemos Drummond, então.
Lembrança do mundo antigo
Clara passeava no jardim com as crianças. O céu era verde sobre o gramado, a água era dourada sob as pontes, outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados, o guarda-civil sorria, passavam bicicletas, a menina pisou a relva para pegar um pássaro, o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara. As crianças olhavam para o céu: não era proibido. A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo. Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos. Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas, esperava cartas que custavam a chegar, nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava [no jardim, pela manhã!!! Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
APERFEIÇOANDO LEITURAS
Começamos a ler crônicas. Usando a Coleção Pra Gostar de Ler, v. 1,2,3,4. No início de cada um dos volumes lidos há um tipo de biografia: fotobiografia, auto biografia, biografia …
Depois das biografias e de terem aprendido muito sobre FERNANDO SABINO, propus a leitura de O menino no espelho, então.
Pareciam íntimos do autor. Sabiam que era botafoguense roxo, tocava bateria, o nome de todas as suas obras, que fora nadador campeão, quase profissional, que morava em Ipanema e que era “amigo da Odonir”. Facilitava, é ou não é?
Foram lendo capítulo a capítulo, de várias maneiras. Havia dias em que fazíamos leitura compartilhada em classe, outras vezes dramatizavam o capítulo lido em casa. Ilustravam os capítulos, reescreviam alguns finais etc. A obra traz histórias quase independentes umas das outras, com o fio condutor do personagem Fernando e seu duplo Odnanref. Chegaram a fazer seus auto-retratos, atribuindo a eles seus nomes ao contrário também. O meu, por exemplo, ficou Rinodo. Só alegria. Poesia inoculada em todos.
Digo alegria porque CRIAR é mágico. O professor que levanta cedo e não se sente autor, criador do seu trabalho está condenado a ser um ” dador de aulas”, triste dele. É preciso ENCANTAR-SE para também ENCANTAR – penso eu.
O HAPPENING
Telefonei do colégio para contar ao “meu amigo” Fernando o trabalho. Mas mal comecei a falar, ele me disse que estaria dali a 2 semanas em São Paulo – iria assistir a um show da filha Verônica Sabino – e queria conhecer “minhas meninas e meus meninos”. Não precisava me preocupar com nada, com passagem hospedagem porque ele estaria indo de qualquer maneira para o show. Adorei. Contei às crianças. Preparamos um happening para abraçá-lo – ora, ora.
Fizeram muitos cartazes – sob a forma de placas – que iriam carregar nas mãos com tudo aquilo que sabiam dele, desde ser botafoguense, ser mineiro, nadador, até baterista. Pintamos faixas com os nomes dos personagens e mensagens deles para o autor. Uns meninos se caracterizaram como os personagens do livro. Havia uma bateria num palquinho e a banda dos alunos do colegial a postos.
Pais e funcionários do Colégio Galileu Galilei presentes .
A CHEGADA
O motorista o trouxe, e eu fui buscá-lo na entrada que tinha uma escadaria da portaria até o pátio. Ele me beijou e logo foi dizendo “Olha, eu sei que essa criançada é muito tímida. Pega um mais desinibido, e ele me faz uma pergunta. Dali eu emendo e vou falando solto. Não gosto desse negócio de palestra não. E eles são pequenos, né. Pode ser?”
Nada disse, aliás, acho que falei que seria assim.
Quando entrou no pátio, a banda tocou o hino do Botafogo. As crianças, mais de 100, o aplaudiram, levantaram os cartazes. Juro, pensei que ele fosse ter um problema de saúde ali, tamanha a sua emoção. Ia andando no palco, lendo os cartazes, gesticulando, ouvindo o hino, aplaudindo os meninos. Um ESPETÁCULO INENARRÁVEL aqui, podem crer. Tanto que me lembro tão bem dele até hoje.
Contou muitas situações vividas por ele, a mudança do nome para Fernando Sabino, sugerida por Mário de Andrade, sua relação com a natação, (narrada em O Encontro Marcado) com sua infância e que as histórias do livro eram todas verdadeiras, mostrando, inclusive, o canivetinho vermelho – que dá nome a um dos capítulos da obra. Autografou todos os livros das crianças e um para minha filha também.
Depois me pediu para levar TODOS OS CARTAZES para o Rio. Queria tê-los com ele para nunca mais esquecer aquele dia em São Paulo. Adoramos.
Terminou tocando bateria, um solo de jazz, que disse adorar. Mas já sabíamos.
AVALIAÇÃO E RESGATE
A auto avaliação dos alunos foi excelente. Muitos passaram a GOSTAR DE LER ali, dessacralizando um autor, tornando-o de carne e osso. Assim eles próprios dali pra frente poderiam ser escritores também. Publicados ou não.
Também leram quase a obra completa de F. Sabino, nos anos seguintes.
Na verdade, alguns estão por aí hoje escrevendo, e muito bem. Vez ou outra encontro com algum na “nuvem”.
Apresentei esse trabalho em alguns Congressos de Educação com o título de “Um encontro com Fernando”. Na oportunidade havia vídeo, fotos e muitos dos trabalhos realizados pelos alunos – que ficaram com o Colégio, todavia.
Trabalhos de meus alunos são sagrados, não me desfaço deles. Até porque há quem possa se inspirar neles para seguir seus próprios ramais e caminhos, não é mesmo?
1- O filme O menino no espelho é de 2014 . Uma sugestão é depois de lida a obra, assistirem ao filme e compararem a linguagem de Fernando Sabino à do filme, por exemplo.
2 – Fernando Sabino morreu em 2004. Encontrei ex-alunos, na época, que lamentavam sua morte como a de alguém de sua família. E era.
“No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim”, Fernando Sabino, em “No fim dá certo”, crônicas, Record, 1998
O ambiente do Clubinho da Leitura com materiais reciclados, livros expostos e muita criatividade. Faça um clubinho aí onde você vive também.
As leituras e descobertas propiciando-lhes fazer a leitura do mundo. “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”– Paulo Freire
O desenho, a pintura, a massinha de modelar… todas as formas de arte juntando-se às leituras.
O lúdico, o jogo, o cinema, o circo, o teatro, todas as manifestações culturais se aliando às leituras.
A função social do Clubinho da Leitura invadindo espaços, uns ensinando aos outros, onde todas as brincadeiras são igualmente para meninos e para meninas, convidando e trazendo outros visitantes ao conhecimento, à ventura das leituras.
Passara a manhã inteirinha falando sobre as 10 Bienais a que compareci em São Paulo, levando alunos, levando meus filhos, apresentando trabalhos de minha moçada aos escritores. Ziraldo estivera na conversa por toda a BR 040. Alguns olhares pouco crédulos sobre o dito e feito narrado. Incluíra no discurso o desejo de ir ao stand da Editora Melhoramentos, talvez encontrasse a amiga Leila, editora-chefe, para quem escrevi muitos pareceres sobre obras enviadas por autores que se desejavam ver publicados e que sempre me acodia com exemplares a serem ofertados aos meus alunos da escola pública. Alguns olhares pouco crédulos sobre o dito e feito narrado.
Enquanto aguardávamos o check-in no saguão do hotel, faço uma pergunta sobre o crachá da Bienal do Livro que alguém portava, sem olhar quem o portava. Ouço “Odonir, é você?”. Era Leila, a portadora do crachá. Muita conversa e apresentei-a aos demais. Ficamos de nos encontrar mais tarde no Riocentro, no stand da Melhoramentos.
Assim, fui até a Companhia das Letras comprar A Vida Futura, de Sérgio Rodrigues, enfrentando um corpo-a-corpo terrível em corredores cheiíssimos, com muita, muita gente. Ainda passei pelo stand da Academia Brasileira de Letras – que retomava sua participação na Bienal do Livro do Rio.
De volta à Melhoramentos, relembramos, eu e Leila, os trabalhos que realizei com Ziraldo, os caminhos que meus filhos trilharam etc.
Depois de mais de uma hora, entra no stand uma mulher e procura por Leila. Era Márcia, a esposa de Ziraldo. E aí conversamos muito sobre ele, suas obras e pedi, ardorosamente, que se crie um Memorial para Ziraldo. Ela me disse que há um projeto da família para criá-lo. Leila relembrou passagens dele comigo e meus alunos e outros momentos nossos. Foram encontros inesperados e imantados pelo amor. Quando me despedi dela, dei-lhe 2 beijos, sendo que um deveria ser levado a ele naquela noite. (Está com 92 anos e sofreu 3 AVCs).
Na madrugada de 12 de setembro, uma ex-aluna que participou do projeto com a obra de Ziraldo, vê o vídeo sobre aquelas minhas aulas, no Youtube, se dirige ao blog – e como que imantada pelo amor, escreve lá um estrelado comentário.
Ser professora é ir recolhendo estrelas em ramalhetes pelo céu. Ou na nuvem.
Valquíria Mendes Domingues 12 DE SETEMBRO DE 2023 ”Olá querida professora, fui sua aluna e essa era a minha sala também, lembro até dos nomes dos meus amigos de sala, inclusive alguns já partiram desse plano, e sempre que posso ainda vou no centrinho da Aldeia (minha família ainda mora na mesma casa e bairro ),que hoje em dia tem um parque bem bonito nos arredores da igrejinha, a escola teve seu nome alterado para Esmeralda Becker, porém o que me enche de alegria é mostrar aos meus descendentes a minha professora tão dedicada, que cultivou em nós o amor pela leitura, cultura crescimento pessoal e intelectual. Linda professora você lançou sementes boas em nós, e hoje , mesmo após quase 40 anos seus ensinamentos permanecem intactos em nossas memórias. Um grande beijo para você. Que honra ter sido sua aluna.”
Era o ano de 1988, eu lecionava em uma Escola Estadual, em Carapicuíba, SP, quando fui convidada a gravar com a equipe da TV Cultura, o Projeto Ipê daquele ano, tendo em vista o trabalho que desenvolvia com meus alunos. Todas as equipes das Escolas do Estado o assistiram e serviu de estudo para vários outros projetos pedagógicos. Meus alunos, simples e bem humildes, sentiram-se muito valorizados, importantes mesmo. Anos atrás levei isso para o YouTube, em 3 vídeos, para que ex-alunos tivessem acesso a esse material. Já li comentários de muitos deles narrando que seus filhos nunca os haviam visto e ouvido, quando meninos e adolescentes antes, e agora sim. Magia tem a EDUCAÇÃO !
O vídeo mostra trabalho com alunos de 4ª série (5º ano), da Escola da Aldeia de Carapicuíba, em São Paulo, em 1988. Há criação de histórias a partir de livros de Juarez Machado e Ziraldo. Registra-se também um exercício de refacção coletiva de texto produzido pelos alunos. Na sequência, entrevistam-se alunos sobre a forma de se ter aulas de Língua portuguesa, se gostam ou não. Há também a fala da diretora da escola sobre esse tipo de dinâmica de aulas.
O vídeo mostra aula em uma 6ª série (7º ano), da Escola Aldeia de Carapicuíba, em São Paulo, em 1988, quando se aborda a reescrita de estruturas linguísticas a partir de letra de música. Analisa-se a circunstância adverbial contextualizadamente, considerando-se a semântica . Entrevistam-se alunos sobre sua preocupação com erros de português, o quanto essa preocupação interfere em suas escritas e como fazer para transformarem erros em acertos, experenciando a língua. Trabalho em duplas para produção.
O vídeo apresenta trabalho com alunos da 7ª série (8º ano), da Escola Aldeia de Carapicuíba, em São Paulo, em 1988, a partir da leitura de literatura brasileira ”Vidas Secas” e ”Capitães da Areia”. Leitura coletiva de produção de texto sobre temas do Nordeste. Discussão, em roda de conversa, sobre o tema, a partir das obras literárias e dos textos informativos lidos, socializando-se o conhecimento entre os alunos.
ENSINANDO E APRENDENDO: Cada adulto, cada professor e cada professora tem o dever de ensinar a solidariedade e a compaixão e praticar o que ensina, como exemplo de humanidade. Estudos mostram, deve-se ensinar o preço de cada presente recebido e, principalmente o seu valor. Quando mostramos quanto custou aquilo que receberam – sejam valores em dinheiro ou em esforços despendidos, seleção de escolhas a serem feitas etc. estamos também ensinando valores. Há crianças que só valorizam o que ganham se tiver sido comprado em lojas, roupas da última moda, parafernálias tecnológicas etc. Desaprendeu-se o valor do que é feito artesanalmente, individualizadamente e não em série, iguaizinhos para milhões de pessoas. Pena. Mas são os adultos os responsáveis por essa inversão de valores. Percebo avós que já nem sabem mais como presentear crianças e adolescentes, pois sabem que lhes desagradarão. Isso fere sentimentos de avós, podem ter certeza. E aí, para não errarem, dão dinheiro de presente. É preciso rever as humanidades e ensinar que fazemos parte de um TODO. Somos PARTE apenas. É preciso ensinar compaixão e solidariedade. Trata-se de um exercício que engrandece qualquer um. Construir presentes, cortar, desenhar, pintar, costurar, enfeitar, distribuir a outros é muito saudável. Estamos precisando de seres solidários, de seres que NÃO se importem apenas com os presentes que comprarão para os seus familiares, com a ceia que prepararão, com as roupas que vestirão e com os sorrisos que postarão no Instagram e no Facebook. A vida humana é MAIS do que isso. (Em tempo: Os coletores de lixo atrasaram 3 horas hoje. Aguardei na sacada, cuidando das flores, desci, cuidei das de baixo, voltei e os ouvi vindo. Aí desci e coloquei no saquinho o meu presente para eles. Para mim, era pouco, mas para eles foi muito. Cinco sorrisos e desejos sinceros e agradecidos de um Feliz Natal). Lindos.
UBUNTU
Se ando e enxergo, maravilho-me
Se paro e contemplo, pulso
Se ardo em sensações, vivo.
Se estou numa fala num gesto num sorriso, continuo.
Se toco a dor humana, emano
Se acarinho a terra vermelha, sou.
Se tenho compaixão, ajo.
Se tenho ainda a emoção, levito.
Se ando e enxergo, maravilho-me
PROJETO FOME ZERO
Início da década de 2000, março, os alunos receberam o material escolar distribuído pela Prefeitura de São Paulo. Pela primeira vez vinha numa bela sacola, como aquelas das papelarias famosas ou das lojas de shopping. Ali dentro havia cadernos universitários, lápis de cores, giz de cera, dicionário, canetas, lápis pretos, borrachas, régua, transferidor. Ah, uma beleza! Eles recebiam aquilo e se encantavam. Nas sacolas dos menores, das séries iniciais, ainda havia outros materiais pertinentes ao seu trabalho cotidiano nas aulas. Era um encantamento receber aquilo tudo e cheirar cada caderno novo, abrir as caixas de lápis de cores, folhear o dicionário. Parecia que uma fada madrinha havia deixado ali o material de cada um. Os olhos embevecidos, comoção total. Pura poesia.
Ao término das aulas, enquanto caminhavam pelas ruas, dando mãos aos irmãos menores, carregando suas sacolas e as deles, pulavam, cantavam, riam, pareciam ter vindo das compras, pareciam ser como os outros meninos que estavam acostumados a sair das papelarias com os pais, depois de terem escolhido os materiais escolares que desejavam, os mais caros , os mais bonitos. Mas eles sempre foram iguais a quaisquer outros meninos! Não seria o poder de compra que os diferenciaria. Não no que dependesse de mim.
No dia seguinte conclamei meus colegas professores a desenvolvermos um projeto para ressignificar aquelas mudanças que vinham ocorrendo na escola municipal: a distribuição do material escolar, as peruas que levavam e traziam os alunos de lugares um pouco mais distantes, as refeições oferecidas nos 3 períodos com arroz, feijão, carne, salada e frutas de sobremesa. ( Já recebiam a lata de leite em pó antes, e livros do governo federal – agora também ofertados ao nível médio e à EJA ( educação de jovens e adultos). Elaboramos e demos encaminhamento a um projeto que esclarecia o custo daquilo tudo, de onde vinham os recursos para aquelas aquisições, de como cuidar do material recebido, como encapá-lo, cuidar dele etc. Para isso foi necessário ensinar, sentar com eles, encapar com eles, criar etiquetas, capas personalizadas, talvez o rosto de um ídolo, talvez um poema, talvez o símbolo da disciplina, da matéria que o caderno abrigaria …
Os cálculos de quanto custavam os 2 uniformes de inverno e os de verão – que receberam também. Logo depois o custo do passe estudantil a que tinham direito e assim por diante. Projeto envolvendo muitas disciplinas escolares e a valorização do que recebiam. Conscientização de todo investimento em EDUCAÇÃO. Assim, quando mais tarde quisessem lhes arrancar aquilo a que tinham direito – direito adquirido – soubessem eles reivindicar, lutar mesmo pelo que buscavam.
DISTRIBUIÇÃO DE ALIMENTOS AOS MAIS NECESSITADOS
Depois da leitura da coleção de livros sobre Cidadania, de Edson Gabriel Garcia, algumas ações foram propostas: montar caixas com alimentos em cestas básicas para a população necessitada. Integravam-se assim à Campanha FOME ZERO, idealizada pelo grande Betinho. Integramos nossas ações a ações mais amplas e cidadãs, portanto. Encaminhamos à Sub-prefeitura Regional da Lapa, ao sub-prefeito, na presença do autor Edson G. Garcia e com cobertura do Jornal da Lapa. O autor, meu amigo, se encarregou da solicitação de divulgação, para que outras escolas pudessem se inspirar e ensinar o que os nossos alunos aprenderam.
“Zi, de Zizinha e raldo, de Geraldo, prazer em te conhecer” Foi assim que conheci Ziraldo, em 1988, no stand da Editora Melhoramentos, na BIENAL DO LIVRO, em SP. Eu estava acompanhada de uma quantidade de alunos da Escola Estadual da Aldeia de Carapicuíba, São Paulo. Ele foi muito afetivo com meus meninos pobres, autografou livros e pediu que eles autografassem os deles para ele levar consigo. Eram exemplares de “Flicts e seus amigos”, uma resposta ao dele, ao 1º livro dele, FLICTS, “Só que a gente fizemos um livro mais alegre, acho que ele deve ter gostado, né”– falou um dos meninos. O vídeo abaixo traz o registro do trabalho com essas crianças. Ziraldo me contou nesse dia que estavam saindo “do forno” histórias em quadrinhos, mais baratas para que todas as crianças pudessem ler, visto que livros, em geral, eram caros para muitas crianças. Nós adoramos a ideia. Anos mais tarde, me tornei leitora crítica do segmento de literatura infanto-juvenil da Editora Melhoramentos. A editora era Leila Bortolazzi (que ainda é) e conhecia meu trabalho. Fui a eventos de lançamentos lá com ele e pude vê-lo bem de pertinho em pequenas rodas de aproximação. Mais tarde, quando lançou a A Vovó Maluquinha, A Professora Maluquinha e a Coleção Bichinho da Maçã, estive presente. Frases de Ziraldo; “LER É MAIS IMPORTANTE QUE ESTUDAR”, provocando a incompreensão de uma leva de professores. Eu assinava embaixo, usava até um botton com ela. Entendia, como ele, que o ensino regular, normativo e apenas reprodutor não era mais importante do que a LEITURA; ela sim, livre, variada, encantada… que ensina a criar, a desabrochar, a aprender. Em fins dos anos de 1990, criou a revista Bundas e cunhou o bordão “QUEM MOSTROU A BUNDA NA CARAS NÃO VAI QUERER MOSTRAR A CARA EM BUNDAS”. Era frasista como seu amigo Millôr Fernandes. Eu sempre adorei a irreverência de ambos. Desde os tempos de O Pasquim, no Rio. Guardo dele muitas e muitas lembranças, e livros autografados. No último fim de semana assisti por 2 vezes ao filme dirigido por sua filha Fabrizia Pinto, no Canal Curta, “Ziraldo, era uma vez um menino”, e me emocionei muito. Ziraldo completou 90 anos e, mesmo debilitado por seguidos AVCs, ainda gravou vídeo em 2018 contra a ameaça que viria a acontecer ao nosso país. Estava certo. Antes de aprender a ler, minha filha aprendeu FLICTS, em 1985. Eu, junto com ela. Tenho imagens maravilhosas com seus livros em mim.
1988
Texto: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal
Vídeo: Canal Odonir Oliveira (a partir de gravação da TV Cultura)
Gramática é norma. Existe na escrita, mas também na fala. É um traje que se veste para situações adequadas, intencionalmente ou intuitivamente. A linguagem verbal se efetiva quando comunica, quando expressa o que se quis expressar. E tem mais, existe uma gramática interna, nativa que explicita suas próprias regras. Fala-se as moça, mas não a moças – intuitivamente o artigo já seria suficiente para a identificação de plural. (Aliás há línguas que possuem regras semelhantes ou com a predominância do artigo, ou com a ausência dele, ou ainda apenas com o substantivo no plural. Basta). As línguas são vivas e se modificam. Ou como você acha que se formaram as neolatinas, por exemplo? Da conquista dos povos, na imposição do seu idioma mas, sobretudo, e com o tempo, da mescla da língua que já se falava naquele território conquistado com o latim.
Como é penoso ter que ensinar a norma culta escrita – e aprender – a quem não é usuário dessa língua! Quantas vezes vi alunos serem retidos (não por mim) em séries escolares por não saberem gramática, não “executarem gramática” em seus textos etc. Se uma criança pequena fala astrelinha, como vai escrever as estrelinhas; se o marceneiro fala “dei um nol, não sai mais”, como aceitar que a palavra é “nó”… Portanto, há que se ensinar a ler e a escrever com essa capacidade de entendimento e dar ferramentas aos alunos para que tenham bagagem e saibam usar a linguagem adequada em determinadas situações de uso, oralmente ou de forma escrita. E mais, cabe ao professor facilitar os diálogos. E não coibi-los. A lógica interna e a repetição social das palavras é tão forte que, certa vez uma professora, em um curso que eu ministrava, chegou a formular significados diferentes para grafias diferentes da palavra “problema”, escrita assim se referia a questões matemáticas e “poblema” eram os que encontramos na vida para serem enfrentados e resolvidos. Veja você a internalização do termo.
CLASSES GRAMATICAIS. VAMOS ESCREVER POEMAS?
O QUE É SUBSTANTIVO NAS POESIAS?
Muitos poetas escreveram versos apenas com substantivos. Que sensações, que expressividade haveria em poemas concretos apenas com substantivos? Daí emerge o conceito gramatical: são palavras que nomeiam, que dão nomes a objetos, animais, pessoas, sentimentos e a resultados de ações. Depois de uma visita a um supermercado (ou até antes), a um jardim, a ruas do bairro, nossa, quanto se garimpa para se organizar depois, para se distribuir em versos e estrofes. Sem pensar nas rimas – internas e externas.
Ao final dos passeios, haverá uma coletânea de poemas, totalmente substantivos. E o mais importante é que o conceito gramatical terá sido realmente experenciado na escrita.
OS ADJETIVOS SÃO SEMPRE POÉTICOS
Adjetivos são aqueles que caracterizam, determinam, diferenciam os substantivos; não só eles, mas também as locuções adjetivas. Já imaginou um poema com um único substantivo e repleto de caracterizadores?
NO PRINCÍPIO ERA O VERBO
Registrar ações em um evento, um episódio, até dos mais corriqueiros em salas de aula, facilita um rol de ações que podem ser organizadas em sequência, enumeradas e distribuídas em versos e estrofes. Ah, e não precisam estar no infinitivo não, só no nome dos verbos; podem aparecer conjugados, até em tempos verbais diferentes. Já pensou que “prato cheio” para se refletir sobre a língua? Prosa poética também “orna” muito bem com sequência de verbos e pontuação.
AS CLASSES GRAMATICAIS DANÇAM JUNTAS PELAS ESTROFES
Meu filho ainda não era alfabetizado, tinha 5 anos apenas, e na volta da escola, em meio a um trânsito caótico com ele, desenvolvi um jogo com essas 3 categorias gramaticais, a partir do que víamos da janela do carro, geralmente quando estávamos parados. Árvore –“ah, mãe é fácil, né, dá nome pra aquilo ali, é substantivo”. Dirigir –“moleza, você tá fazendo uma coisa, uma ação, é verbo, mãe”. E assim eu ia adicionando às minhas leituras teóricas como se ensinar classes gramaticais, a partir de situações contextualizadas, vividas e repletas de significado. E continuávamos nosso jogo. É, porque ele também perguntava, exercitando seu pensamento reverso ou reflexo, fazendo a “prova dos nove”. Aos 5 anos.
Há 40 anos, outra lei fazia uma simplificação ainda maior das campanhas eleitorais. Trata-se da Lei Falcão
(Lei 6.339/1976), que transformou a divulgação das candidaturas no rádio e na TV numa verdadeira lista de chamada. Um locutor apresentava os políticos, e eles não podiam mostrar suas propostas.
A Lei Falcão determinava que a propaganda de rádio e TV para os pleitos municipais de 1976 deveria consistir apenas em uma narração do nome, do partido, do número e do currículo de cada candidato. Nas propagandas televisivas, havia ainda uma foto dele. No máximo, era permitido divulgar datas e locais de comícios.
O idealizador da norma foi o ministro da Justiça da época, Armando Falcão, tão identificado com a lei que acabou por batizá-la nos anais da história. Conhecido pela defesa aberta da censura aos meios de comunicação e pelo uso contumaz da frase “nada a declarar” em resposta a perguntas da imprensa, Falcão ocupou o cargo durante todo o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979).
Segundo o discurso oficial, Geisel, o quarto presidente da ditadura militar, promovia uma abertura política “lenta, gradual e segura”. Na prática, patrocinava iniciativas como a Lei Falcão, que buscavam frear o avanço da oposição. A lei foi uma reação ao resultado das eleições de 1974, quando o MDB, partido oposicionista, conquistou 15 das 22 cadeiras em disputa no Senado e 44% dos assentos na Câmara dos Deputados.
Oficialmente, a intenção era outra. Na exposição de motivos do projeto, o ministro Armando Falcão explicava que a ideia da restrição era “reduzir desigualdades” entre municípios grandes, com acesso amplo a televisão e rádio, e pequenos, onde esses recursos ainda não haviam chegado expressivamente.
Além disso, Falcão alegava querer “evitar tumulto” entre as cidades. Na época, as propagandas políticas dos municípios maiores acabavam sendo retransmitidas também para os municípios vizinhos, que estavam na área de cobertura das emissoras. Discussões de problemas e propostas acabavam extrapolando a população do próprio município, resultando em “confusão no eleitorado”, segundo ele.
“Dar a poucos municípios o direito de discutir seus problemas específicos, em campanha cujo raio de ação abrange muitos deles, é favorecer alguns e prejudicar a maioria. O projeto não tem caráter restritivo, mas o claro objetivo de adequar a lei à realidade”, escreveu Falcão.
PROJETO TRANSITIVIDADE VERBAL – 1985 Meninos e meninas da Escola Chácara Crescer viam pela primeira vez na TV a Campanha Eleitoral. Isso mexia com saberes antes não experimentados. Era preciso trabalhar conhecimentos, linguagem exercício de cidadania, conceito de democracia, ufa, tantos conhecimentos. Foi então que cada professor e professora da escola foi estudar e tornar mais didático o que a TV e o rádio mostravam naquele ano, antes das eleições municipais em São Paulo. A Escola Chácara Crescer ficava em Cotia, em uma chácara. Usávamos as open class, salas sem portas ou janelas, mas apenas com muretas que davam para árvores, flores, canteiros e bosque. (*Leia-se Carl Rogers) Havia quadra de esportes, piscina, refeitório – aberto – com aulas de marcenaria, de culinária, de música, de artes plásticas, de teatro, de horta, de natação etc. Além das disciplinas do currículo regular. Contávamos com período integral, 3 vezes na semana. Os alunos liam livros após o almoço em redes, bancos, deitados, em almofadões, tudo que lhes fizesse confortáveis ao prazer de ler. Nós, professores, fazíamos reuniões semanais nas noites de 5ª feira, ora em Cotia, ora em São Paulo, porque, como eu, muitos professores vinham de São Paulo. Era com a orientação da psicóloga Sílvia Lobo e da psicopedagoga Eloísa Fagali que aprendíamos sobre Paulo Freire, Emília Ferrero, Piaget, Vygotsky e tantos mais. E partíamos DA REFLEXÃO À AÇÃO. Minha filha estudava na escola e aprendeu a ler com Paulo Freire. Aprendeu a fazer bolo de chocolate, salgados, marcenaria, estudava e tocava flautinha, praticava esportes, tinha aulas de teatro e de economia doméstica.
CAMPANHA ELEITORAL NA TV Invadia as aulas aquele processo louco de se ver candidatos apenas com nome e número, sempre lidos pelo mesmo locutor. E agora? Há novidade nas campanhas. A TV nos anos de 1980 era a Internet de hoje, as redes sociais de hoje. Cumpria ensinar nossos alunos a assistirem e refletirem sobre aquilo que estavam vendo ali. Assim, meninos e meninas de 11 a 15 anos assistiam à noite ao Horário Eleitoral Gratuito e depois refletíamos sobre o que haviam achado, se acreditavam, de quais políticos haviam gostado mais etc. Era muito bom analisar tudo o que nos traziam. Tudo era novidade naquele ano. Bem, passamos a estudar a TRANSITIVIDADE VERBAL. Construíram suas plataformas para 5 partidos: VI (verbos intransitivos), VTD (verbos transitivos diretos), VTI (verbos transitivos indiretos), VTDI (verbos transitivos diretos e indiretos) e VL (verbos de ligação) Tiveram que estudar CONCEITOS, criar EXEMPLOS (alguns criaram até jingles, imagine). Os comícios eram diários, durante uma semana inteira, com caminhada pelo bosque com cartazes, tambores, apitos e discursos. Aprenderam muito. E se informaram, se divertiram, criaram, e a Escola Chácara Crescer ainda fez, na véspera da eleição, uma votação com cédulas, apuração, anúncio do novo prefeito eleito na escola e tudo o mais. Tudo em 1985.
MAIS OU MENOS ASSIM:
VOTE NO VI : O partido que NÃO NECESSITA DE COMPLEMENTOS, não é dependente, tem sentido em si mesmo. Ex: A planta MORREU. VOTE NO VTD: O partido que governa com complementos, atua DIRETAMENTE com eles, sem PREPOSIÇÕES intermediárias. Ex: A professora LEU o texto. VOTE NO VTI: O partido que estabelece pontes com as PREPOSIÇÕES para INDIRETAMENTE complementar seu significado. Ex: Os alunos PRECISAM DE cadernos novos. VOTE NO VTDI: O partido que acolhe os DIRETOS, os INDIRETOS e complementa seus sentidos. Ex: A diretora ENTREGOU os livros aos professores. VOTE NO VL: O partido que faz a LIGAÇÃO entre os sujeitos e os seus predicativos, o mais democrático. Ex: A piscina ESTAVA suja. (Lembro que os enunciados seguiam nessa linha, em cartazes, representando cada partido “político”). Depois foi só alegria!
Saliento que esses alunos privilegiados economicamente, por serem filhos de sociólogos, professores universitários e de outros profissionais liberais, realizavam trabalhos sociais e comunitários conosco. Por exemplo, eu lecionava na Escola Estadual da Aldeia de Carapicuíba, próxima à deles e isso lá se dava de muitas formas. E o trabalho que eu desenvolvia ali era bem semelhante. Foi com eles que vivi a experiência de trazer o escritor Pedro Bandeira, quando iniciava seus escritos infanto-juvenis, para assistir a cenas de seu livro A Droga da Obediência – que muito o emocionaram, pois era a primeira vez que seus personagens saíam das páginas do livro e viravam gente, declarou o autor. Hoje tenho notícia de que um desses nossos alunos da Escola Chácara Crescer é um bem-sucedido biógrafo (de Sócrates, de Nara Leão, de Caetano…), outros são músicos, programadores e compositores do “Instituto”, outros se dedicam ao teatro, à fotografia, ao jornalismo e há ainda outros que se tornaram bons profissionais liberais também.
*Carl Rogers foi um psicólogo estadunidense atuante na terceira força da psicologia e desenvolvedor da Abordagem Centrada na Pessoa.
Leia aqui nesse blog, na categoria: Trabalhos realizados com alunos -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/trabalhos-realizados-com-alunos/ sequências didáticas, com exemplos e ilustrações, que até hoje – em 2022 -são inovadoras.