“Minas não é palavra montanhosa, é palavra abissal” ( Drummond)
Conversa com meu pai poético mineiro, meu velho Drummond
Itabirano de aço, o senhor sabe que quem lhe escreve é alguém de sangue do Doce, do morto-vivo rio das nossas Minas.
Dito isso, quero lhe fazer algumas reclamações, alguns agradecimentos e alguns pedidos também.
De sua lira mineiro-carioca, trouxe algumas prendas: essa cabeça erguida- não baixa- esse sangue nos olhos, não o aço nas veias; trouxe um ar praiano difuso porque prefiro o mato, o rio, as águas doces de origem e a gente simples.
Não fiz farmácia, como o senhor, e ainda não conheço Itabira do Mato Dentro ou seria Conceição do Mato Dentro. Bebo versos e prosa drummoniana faz mais de 50 anos e estou cada dia mais embriagada dela.
Com o chegar dos anos, aprendi com prosas e versos que cabotinismo não vale a pena, literal nem metafórica. Minha pena, hoje tecla, é obscenamente nua e crua, sem maquiagens.
Reclamo, pois, de sua dureza durante alguma poesia que me fez enxergar, sem óculos de lentes de cores suaves, a vida, o país, o amor. Isso me tornou mais ácida e apimentada do que alguns gostariam de me saborear. Sou pouco dada a docilidades de ocasião para obter benefícios materiais ou afetivos.
Agradeço seu ponto de vista, já na idade última de sua existência, a iluminar com faróis altos as picadas das estradas, a necessidade de se saber fazer escolhas, de se valorizar verdadeiramente o que tem valor e a forma de amar. O ” Amor começa tarde”, não é pai-lírico ? Compreendo a dimensão de seu verso.
Então, lhe faço alguns pedidos, não sei se a seu alcance atendê-los. Limpa os rios de Minas, o nosso Doce e os amigos seus que correm para o mar. Limpa os corações de aço das más ações em nome de seu prazer único, de seu benefício único, de seu lucro único. Traz fé e esperança e para isso traz força de luta.
Sou carioca, filha e neta de mineiros. Vivi nos mares do Rio, de Salvador, de Santos … entretanto, encontro no meu jardim mineiro razão para cuidar das árvores, das flores e para poder, de vez em quando, ir encontrar o rio. Doce.
Abraço apertado, mas não saudoso, que lhe tenho todos os versos, meu pai. Enquanto isso ouço seus conselhos.
Odonir
PROCURA DA POESIA
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças versos com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isto ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
AMOR E SEU TEMPO
Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, o amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe
valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.
Texto: Odonir Oliveira
Poemas de Drummond: “Poesia completa”. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.
1º Vídeo: Canal Rhugles Daniel
2º Vídeo: Canal café na mesa