Corações

A história conta que povos costumavam reivindicar o coração de seus heróis para si, às vezes até mesmo no momento das autópsias – subtraindo-o sem permissão etc. O coração, ah o coração que, quando sentimos grandes alegrias, grandes sofrimentos logo se altera, modificando respiração, fôlego, ânima. Ah, o coração. [“Deixe em paz meu coração, que ele é um pote assim de mágoas e qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”], [“Chega de temer, chorar/ sofrer, sorrir, se dar/ e se perder/ e se achar/ e tudo aquilo que é viver…Gostando, adorando, gritando/ feito louca, alucinada e criança/sentindo o meu amor se derramando/não dá mais pra segurar/ Explode coração”.] [“Meu coração tropical está coberto de neve, mas ferve em seu cofre gelado/ E a voz vibra e a mão escreve mar/ Bendita lâmina grave que fere a parede e traz/ As febres loucas e breves que mancham o silêncio e o cais”] – versos de Chico Buarque, Gonzaguinha, João Bosco e Aldir Blanc

“Enterrem Meu Coração na Curva do Rio” é o relato da destruição sistemática dos índios da América do Norte.

Lançando mão de várias fontes, como registros oficiais, autobiografias, depoimentos e descrições de primeira mão, Dee Brown faz grandes chefes e guerreiros das tribos Dakota, Ute, Soiux, Cheyenne e outras contarem com suas próprias palavras sobre as batalhas contra os brancos, os massacres e rompimentos de acordos. Todo o processo que, na segunda metade do século XIX, terminou por desmoralizá-los, derrotá-los e praticamente extingui-los.

Publicado originalmente em 1970, este livro foi traduzido para dezessete línguas e vendeu quatro milhões de cópias. Com ele, Dee Brown, um dos maiores especialistas em história norte-americana, mudou para sempre o modo do mundo ver a conquista do Velho Oeste e a história do extermínio dos peles-vermelhas. Há também o filme de 2007, do diretor Yves Simoneau.

SEJA OS OLHOS MEUS

Me empresta os teus olhos?
Me empresta.
Aí por onde andas não estou
Aí por onde te maravilhas não estou
Embebe-me do teu olhar
Olhamos parecido
Somos fruto das mesmas árvores
Pois então
Me empresta os teus olhos?
Me empresta.
Gostas do amanhecer
Saboreias o perfume do entardecer
Navegas por rios que tanto eu desejaria
Me empresta os teus olhos?
Me empresta.
Quando tuas retinas fotografam águas
Tuas retinas me fotografam a alma
Quando viajas pelas estradas
Nelas meus olhos te acompanham
Quando segues em canoas
Remo junto contigo na força das águas.
Quando entornas imagens de teu país por meus olhos
Semeias lirismo em minhas mãos.
Me empresta teus olhos?
Me empresta.

Poemas sobre rios, leia aqui no blog: “O rio e eu”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2016/02/17/o-rio-e-eu/” Curvas do rio”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2019/08/28/curvas-do-rio/” Em companhia do rio”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/11/18/em-companhia-do-rio/“A canoa e o Velho Chico”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/02/04/a-canoa-e-o-velho-chico/

Poesia: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal: Tiradentes, MG, julho de 2022

Vídeo: Canal Eduardo Ferreira Ecleticamente

Café da manhã

E como dizia meu pai:
-Da nossa horta
No café da manhã

Permanência
Carlos Drummond de Andrade

Agora me lembra um, antes me lembrava outro.

Dia virá em que nenhum será lembrado.

Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.

Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustrados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo, arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

Em: Claro Enigma

REFLEXÕES NO CAFÉ DA MANHÃ
“Agora me lembra um; antes me lembrava outro”
-Mas … você não sente falta de homem, de um companheiro, assim…?
Bebo um pouco do café com leite e recordo emoções, frases, homens companheiros. Foram tão importantes.
Meu pai era homem mais solidário com o Todo do que com a parte. Acreditava que nossa família (e a dele, em Minas) fazia parte do Todo e, melhorando-se o Todo, as partes todas viriam contempladas. Nascera em 1917, fora delegado sindical metalúrgico nos anos de 1960 e tinha estofo de leituras e mescla com gente igual a nós.
O Amigo nº1 me abanava dores de amores, me ouvia em reclamações trabalhistas, me aconchegava em abraços e calor. Sentia-me tão bem ao seu lado.
O Amigo nº2, meu psicólogo gay e amoroso, sentindo as mesmas dores minhas em sua pele, compreendendo, fazendo refletir, não menosprezando os ficares e os sentires.
O Amigo nº3: “Mas você se apaixona muito, cuide de outras coisas, desse trabalho voluntário lindo. Como escreveu Espinosa…”
O Amigo nº4: “Sei, tudo ia bem e aí apareceu uma terceira pessoa, né?” Já adivinhando o que eu lhe contaria em seguida.
Amigos tantos. Às vezes até confundindo (do lado deles) amor de amizade com amor de casal – creio eu – e aí ventilando ciúmes, opiniões retaliadoras pesadas de invejas e de falta de clareza.
Há aquele que debocha do amor da amiga, diariamente, como se fazendo isso acabe revelando o seu/dele amor. Equívocos.
Homens amam de maneiras diferentes entre si e de forma diferente daquela das mulheres. Não abrem a guarda, em geral, têm um instinto de defesa enorme, como se suas garras estivessem sempre dispostas a se mostrar, a reagir, a negar seus sentimentos…“nem era tão boa assim” – raposa e uvas verdes.
Criei meu filho de forma diferente. Para o mundo. Tem opiniões objetivas sobre AMOR e não gosta de saber dos meus. Mas mães não são sagradas. Somos repletas de imperfeições, de inseguranças, de inconstâncias. Apesar da CORAGEM de nos mostrarmos em palavras e ações.
Sim, sinto falta de ouvir o lado masculino se expondo. Por isso leio tanto o que escrevem, o que cantam… e observo também.
“Viver é muito perigoso”, né, velho Guima?

Texto: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal: mamão colhido hoje no quintal

Vídeo: Canal Roberto Carlos

Parábola

PARÁBOLA
O homem adquirira a mudinha da ameixeira na feira de mudas na grande metrópole. Sem muito terreno para plantá-la, acondicionou-a numa caixa de concreto com terra boa. Molhava sua mudinha com atenção, mas ela crescia sem características, sem se desenvolver, sem seguir em frente.
Anos se passaram assim. O homem até esqueceu que muda era aquela. Mudou-se para outra região, levou a caixa de concreto. Com novos ares, novo clima, novo sol, nova sombra, a muda começou a florescer. Flores branquinhas, lindas. Mas ainda era a caixa de concreto o seu berço. Assim pelos 3 anos seguintes.
Certo dia, formigas comeram-lhe todas as folhas e restaram-lhe apenas galhos na cor marrom. O homem resolveu cortar quase tudo da ameixeira e replantá-la fora da caixa de concreto.
Demoraram meses para que a árvore demonstrasse sinal de vida . O homem pensou até em retirá-la da terra, guardá-la como suporte de enfeites para a época do Natal.
Naquele dia, olhando que outras árvores frutíferas e flores lhe agradavam a manhã, reparou naquele tronco marrom de mais de 10 anos. Havia nele pequenas florezinhas brancas, botões que brotavam do caule quase sem folhas.
Sentou-se e ficou a contemplar o ritmo da vida.

Parábola é uma pequena narrativa que usa alegorias para transmitir uma lição moral.

As parábolas são muito comuns na literatura oriental e consistem em histórias que pretendem trazer algum ensinamento de vida. Possuem simbolismo, onde cada elemento da história tem um significado específico.

Algumas das parábolas mais famosas são as parábolas bíblicas, especificamente as parábolas de Jesus, que eram histórias com elementos comuns da cultura daquele tempo que tinham como objetivo ensinar coisas sobre o Reino de Deus. Entre as parábolas de Jesus, algumas das mais conhecidas são a parábola do filho pródigo, parábola dos talentos, parábola do semeador, parábola do trigo e do joio, etc.

Parábola na matemática

No contexto da matemática, mais concretamente da Geometria Analítica, uma parábola consiste em uma curva plana aberta onde se verifica uma simetria axial.

Na parábola, os pontos estão à mesma distância do foco (um ponto fixo) e de uma reta (conhecido como diretriz).

Fonte: https://www.significados.com.br/parabola/

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Instituto Piano Brasileiro

Existirmos

“Existirmos a que será que se destina? Pois quando tu me deste a rosa pequenina”, Cajuína, Caetano Veloso

Canal Adriano Alencar

A rosa me esfrega sua beleza e seu perfume para que eu aprenda a ler aquilo que ainda não aprendi. Estágios da mesma rosa. Que outros tantos aprendam também.

Para lembrar:

Poetas são todos aqueles que escrevem poesias. Tive alunos iniciantes que escreviam suas poesias. Sempre os estimulei e os valorizei bastante.

Poetas NÃO são apenas aqueles a quem o establishment deu aval de poetas. Os contemporâneos devem ser lidos com olhos de contemporaneidade, por exemplo.

Leminski foi poeta muito diferenciado. Seus jogos de escrita, até usando do texto dito publicitário, causaram espécie no início.

O mesmo com Manoel de Barros, Cora Coralina. E o que não dizer de Guimarães Rosa em prosas e versos, então.

Leiam os contemporâneos, portanto.

Imagem retirada da Internet: Instagram da Revista Cult

Fotos de arquivo pessoal: minhas rosinhas

“Vote no VI, no VTD, no VTI, no VTDI, no VL!”

[…]

Há 40 anos, outra lei fazia uma simplificação ainda maior das campanhas eleitorais. Trata-se da Lei Falcão

(Lei 6.339/1976), que transformou a divulgação das candidaturas no rádio e na TV numa verdadeira lista de chamada. Um locutor apresentava os políticos, e eles não podiam mostrar suas propostas.

A Lei Falcão determinava que a propaganda de rádio e TV para os pleitos municipais de 1976 deveria consistir apenas em uma narração do nome, do partido, do número e do currículo de cada candidato. Nas propagandas televisivas, havia ainda uma foto dele. No máximo, era permitido divulgar datas e locais de comícios.

O idealizador da norma foi o ministro da Justiça da época, Armando Falcão, tão identificado com a lei que acabou por batizá-la nos anais da história. Conhecido pela defesa aberta da censura aos meios de comunicação e pelo uso contumaz da frase “nada a declarar” em resposta a perguntas da imprensa, Falcão ocupou o cargo durante todo o governo do general Ernesto Geisel (1974-1979).

Segundo o discurso oficial, Geisel, o quarto presidente da ditadura militar, promovia uma abertura política “lenta, gradual e segura”. Na prática, patrocinava iniciativas como a Lei Falcão, que buscavam frear o avanço da oposição. A lei foi uma reação ao resultado das eleições de 1974, quando o MDB, partido oposicionista, conquistou 15 das 22 cadeiras em disputa no Senado e 44% dos assentos na Câmara dos Deputados.

Oficialmente, a intenção era outra. Na exposição de motivos do projeto, o ministro Armando Falcão explicava que a ideia da restrição era “reduzir desigualdades” entre municípios grandes, com acesso amplo a televisão e rádio, e pequenos, onde esses recursos ainda não haviam chegado expressivamente.

Além disso, Falcão alegava querer “evitar tumulto” entre as cidades. Na época, as propagandas políticas dos municípios maiores acabavam sendo retransmitidas também para os municípios vizinhos, que estavam na área de cobertura das emissoras. Discussões de problemas e propostas acabavam extrapolando a população do próprio município, resultando em “confusão no eleitorado”, segundo ele.

“Dar a poucos municípios o direito de discutir seus problemas específicos, em campanha cujo raio de ação abrange muitos deles, é favorecer alguns e prejudicar a maioria. O projeto não tem caráter restritivo, mas o claro objetivo de adequar a lei à realidade”, escreveu Falcão.

Fonte: Agência Senado – https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/09/30/ha-40-anos-lei-falcao-reduzia-campanha-eleitoral-na-tv-a-lista-de-chamada

Canal Êgon Bonfim – Vale assistir e comparar a trajetória dos políticos que aparecem em 1985 nessa campanha e os destinos que tiveram até 2022.

PROJETO TRANSITIVIDADE VERBAL – 1985
Meninos e meninas da Escola Chácara Crescer viam pela primeira vez na TV a Campanha Eleitoral. Isso mexia com saberes antes não experimentados. Era preciso trabalhar conhecimentos, linguagem exercício de cidadania, conceito de democracia, ufa, tantos conhecimentos. Foi então que cada professor e professora da escola foi estudar e tornar mais didático o que a TV e o rádio mostravam naquele ano, antes das eleições municipais em São Paulo.
A Escola Chácara Crescer ficava em Cotia, em uma chácara. Usávamos as open class, salas sem portas ou janelas, mas apenas com muretas que davam para árvores, flores, canteiros e bosque. (*Leia-se Carl Rogers)
Havia quadra de esportes, piscina, refeitório – aberto – com aulas de marcenaria, de culinária, de música, de artes plásticas, de teatro, de horta, de natação etc. Além das disciplinas do currículo regular.
Contávamos com período integral, 3 vezes na semana. Os alunos liam livros após o almoço em redes, bancos, deitados, em almofadões, tudo que lhes fizesse confortáveis ao prazer de ler.
Nós, professores, fazíamos reuniões semanais nas noites de 5ª feira, ora em Cotia, ora em São Paulo, porque, como eu, muitos professores vinham de São Paulo. Era com a orientação da psicóloga Sílvia Lobo e da psicopedagoga Eloísa Fagali que aprendíamos sobre Paulo Freire, Emília Ferrero, Piaget, Vygotsky e tantos mais. E partíamos DA REFLEXÃO À AÇÃO.
Minha filha estudava na escola e aprendeu a ler com Paulo Freire. Aprendeu a fazer bolo de chocolate, salgados, marcenaria, estudava e tocava flautinha, praticava esportes, tinha aulas de teatro e de economia doméstica.

CAMPANHA ELEITORAL NA TV
Invadia as aulas aquele processo louco de se ver candidatos apenas com nome e número, sempre lidos pelo mesmo locutor. E agora? Há novidade nas campanhas.
A TV nos anos de 1980 era a Internet de hoje, as redes sociais de hoje. Cumpria ensinar nossos alunos a assistirem e refletirem sobre aquilo que estavam vendo ali.
Assim, meninos e meninas de 11 a 15 anos assistiam à noite ao Horário Eleitoral Gratuito e depois refletíamos sobre o que haviam achado, se acreditavam, de quais políticos haviam gostado mais etc. Era muito bom analisar tudo o que nos traziam. Tudo era novidade naquele ano.
Bem, passamos a estudar a TRANSITIVIDADE VERBAL.
Construíram suas plataformas para 5 partidos: VI (verbos intransitivos), VTD (verbos transitivos diretos), VTI (verbos transitivos indiretos), VTDI (verbos transitivos diretos e indiretos) e VL (verbos de ligação)
Tiveram que estudar CONCEITOS, criar EXEMPLOS (alguns criaram até jingles, imagine). Os comícios eram diários, durante uma semana inteira, com caminhada pelo bosque com cartazes, tambores, apitos e discursos. Aprenderam muito. E se informaram, se divertiram, criaram, e a Escola Chácara Crescer ainda fez, na véspera da eleição, uma votação com cédulas, apuração, anúncio do novo prefeito eleito na escola e tudo o mais. Tudo em 1985.

MAIS OU MENOS ASSIM:

VOTE NO VI : O partido que NÃO NECESSITA DE COMPLEMENTOS, não é dependente, tem sentido em si mesmo. Ex: A planta MORREU. VOTE NO VTD: O partido que governa com complementos, atua DIRETAMENTE com eles, sem PREPOSIÇÕES intermediárias. Ex: A professora LEU o texto. VOTE NO VTI: O partido que estabelece pontes com as PREPOSIÇÕES para INDIRETAMENTE complementar seu significado. Ex: Os alunos PRECISAM DE cadernos novos. VOTE NO VTDI: O partido que acolhe os DIRETOS, os INDIRETOS e complementa seus sentidos. Ex: A diretora ENTREGOU os livros aos professores. VOTE NO VL: O partido que faz a LIGAÇÃO entre os sujeitos e os seus predicativos, o mais democrático. Ex: A piscina ESTAVA suja. (Lembro que os enunciados seguiam nessa linha, em cartazes, representando cada partido “político”). Depois foi só alegria!

Saliento que esses alunos privilegiados economicamente, por serem filhos de sociólogos, professores universitários e de outros profissionais liberais, realizavam trabalhos sociais e comunitários conosco. Por exemplo, eu lecionava na Escola Estadual da Aldeia de Carapicuíba, próxima à deles e isso lá se dava de muitas formas. E o trabalho que eu desenvolvia ali era bem semelhante. Foi com eles que vivi a experiência de trazer o escritor Pedro Bandeira, quando iniciava seus escritos infanto-juvenis, para assistir a cenas de seu livro A Droga da Obediência – que muito o emocionaram, pois era a primeira vez que seus personagens saíam das páginas do livro e viravam gente, declarou o autor.
Hoje tenho notícia de que um desses nossos alunos da Escola Chácara Crescer é um bem-sucedido biógrafo (de Sócrates, de Nara Leão, de Caetano…), outros são músicos, programadores e compositores do “Instituto”, outros se dedicam ao teatro, à fotografia, ao jornalismo e há ainda outros que se tornaram bons profissionais liberais também.

*Carl Rogers foi um psicólogo estadunidense atuante na terceira força da psicologia e desenvolvedor da Abordagem Centrada na Pessoa.

Leia aqui nesse blog, na categoria: Trabalhos realizados com alunos -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/trabalhos-realizados-com-alunos/ sequências didáticas, com exemplos e ilustrações, que até hoje – em 2022 -são inovadoras.

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Um apólogo contemporâneo

Canal Chico Abelha (com um belíssimo poema de F. Pessoa na descrição do vídeo)

UM APÓLOGO CONTEMPORÂNEO

Lá por aqueles cantos da cidadezinha, erguia-se uma cidadela. Dizem que murada por heras e perfumes muitos. Havia de tudo um pouco, tivesse perfumes e cores, havia lá.

Na manhã ensolarada, as flores arrumavam suas saias rodadas a fim de encantar os olhos da dona dos jardins. Puxa aqui, estende ali, ergue à frente …

-Há quem se exiba mais linda que eu, toda trabalhada nesse roxo batata primavera-verão? Difícil chegar aos meus pés, ou melhor, às minhas raízes, repare bem!

A forma com que se expunha mexeu com os brios, com os brilhos, das vizinhas de amanhecer.

-Considera-se a mais linda, não é, pois então repare nos meus miolos de duas cores. Consegue competir com tamanha perfeição. Sou de amarelos e grenás, entendeu? E, quantos likes tem tido no Instagram, responda aí, roxinha.

Branca tinha miolo amarelo e não gostou nada-nada da referência de superioridade atribuída aos miolos grená.

-Cada uma de nós tem miolo diferenciado, dependendo do tempo de leitura, da contemplação do belo, do alvorecer ao sol… não me venha arrotar superioridade por ter saia rodada não.

-Isso mesmo, tenho do branco a saia e do roxo a blusa. Nada vejo de valor maior nisso. Somos todas tão lindas, percebam.

Nesse instante, as mais iguais se uniram e começaram a se exibir, a desfilar suas belezas. Assim ficavam bem mais fortalecidas.

As lavandas riram de tudo aquilo porque além da beleza ainda tinham perfume inconfundível e eram perenes. Uma delas pensou Que exemplo estão dando aos seus botões? Talvez acreditem que serão perenes, terão beleza eterna. Que lástima!

A noite previa ciclone, nuvem de poeira e sol escaldante no dia seguinte. A dona dos jardins viajara. Retornando 3 dias depois, achou seus amores-perfeitos, mortos. Semearia outros.

Um gerânio que sempre observou aquilo calado não resistiu a comentar com as lavandas, no Facebook:

-Achavam que eram perenes como nós. Morreram sem a revelação das verdades.

O apólogo é um texto narrativo dramático de curto tamanho que apresenta histórias fantásticas, vividas por personagens inanimados (elementos sem vida na realidade), com intuito de apresentar uma “lição de moral” ou uma “conduta de comportamento”.

O gênero se assemelha a outras narrativas, como fábula e parábola, mas difere-se por utilizar objetos e elementos sem vida para metaforizar aspectos da natureza humana e revelar “lições” com tal façanha.”

O apólogo se caracteriza principalmente por sua predominância de personagens inanimados. É raro encontrar um apólogo que apresente animais como personagens, por exemplo. Geralmente os atores de tais narrativas são elementos da natureza (água, terra, árvore, céu, pedra) ou objetos (agulha, faca, bola, cadeira).

Outro aspecto em destaque é o teor moralizante presente nesse gênero. As histórias não apenas trabalham com a simbologia das coisas, mas também apresentam um modelo de conduta, que deve ser seguido, construído pela oposição entre personagens de arquétipo bom ou ruim.

O apólogo apresenta uma narrativa concisa, protagonizada por personagens inanimados, que, dentro do universo ficcional, adquirem vida e modos de comportamento semelhantes aos dos humanos. Por esse fator, considera-se a personificação ou prosopopeia como a figura de relevância nesse gênero.

Ainda sobre a caracterização das personagens, o apólogo se distingue, pois essas figuras costumam representar, por meio de sua linguagem metafórica, características comuns à natureza humana, como astúcia, prudência, inveja, corrupção, empatia, solidariedade etc.”

Em: https://brasilescola.uol.com.br/redacao/apologo.htm

Texto: Odonir Oliveira (desavergonhadamente guiado por Um apólogo, de Machado de Assis)

Fotos de arquivo pessoal: minhas flores inspiradoras

Tantas e tantas vidas

AFETO & COMPANHIA

um corpo ao crepúsculo

um copo ao crepúsculo

o soar do telefone

o recado na secretária

pouco diz

pouco esclarece

pouco se atreve

é voz temerosa

é senha

é pista

é fumaça etérea

é brisa disforme

cai a noite

um corpo vermelho sob lençóis

um copo vermelho restante

um toque imaginário

um sonho real

um beijo na boca

um eu te amo

eterno.

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Biscoito Fino

Histórias de AMOR- V

Contos do AMOR bem-sucedido. Faz bem ler. Vale ler.

DEDO MÍNIMO

Inês era o nome dela. Sonhava com um grande amor. Não namorava muito, como suas amigas da rua. Mas aguardava um grande amor. Todos a ironizavam por esse sonho que, acordada,  preservava e vivia esperando. Inês seguia.

Os rapazes do colégio pouco davam importância àquelas ilusões da mocinha. Diziam-lhe apenas que havia nascido no século errado. Talvez um cavaleiro alado viesse buscá-la na torre do castelo para levá-la até o altar, e riam dela.

Muitas e muitas vezes, Inês pensou em abrir mão do seu sonho de igreja, véu, grinalda, damas, marcha nupcial, entendendo que deveria mesmo estar fora de época, anacrônica, tola e atrasada como mulher. Todas queriam outras trajetórias para si, estudar, viajar, trabalhar, ter muitos amores. Só ela queria casar e ter filhos?! Devia mesmo ter nascido fora do enquadramento,  pois não se sentia contemporânea a eles todos. Pelo menos no que dizia respeito ao casamento.

Foi numa viagem para a Serra Gaúcha, com frio muito maior do que o esperado, que conheceu o oceanógrafo ruivo, engraçado e falador. De cara, achou-o boa gente, agradável, cheio de histórias de viagens e de aventuras e problemas contornados.

Na pousada, na primeira noite, ao lado da lareira, ficaram mudos. Ele pediu pra ficar com ela sob o belo poncho que usava. Perguntou-lhe se conhecia o Chile porque daquele poncho havia visto em Punta Arenas, numa viagem mochileira. Ela disse que não, mas que o poncho era do Chile sim. Ganhara de presente de uma amiga que sabia dos seus gostos. E Inês consentiu em aninhá-lo. Ficaram ali por horas olhando o fogo da lareira, sentados no tapete da pousada. Todos foram dormir. E eles ali nos 6º C, de silêncios. Ao fim e ao cabo, beijaram-se, tocaram-se sob o poncho. Inês desconfiou que aquele calor todo era maior do que o fogo da lareira. Pra levantar, ele se ergueu e deu seu dedinho mínimo para que ela enganchasse o dela nele.

Casaram-se 6 meses depois, com toda pompa e circunstância que Inês desejou. Só que em  Villa Rica, no sul do Chile, numa igrejinha pequenininha e muito linda.

LENÇÓIS ESTICADÍSSIMOS

Tia Ana Amélia era uma mulher privilegiada. Sempre cuidara da casa, tinha um marido de setenta e três anos, viril em tempos de comprimidinhos azuis inexistentes. Ela, mais nova que ele uns dez anos, tinha um fogo domiciliar característico das mulheres de um homem só, daquelas que vinham envelhecendo junto a seus companheiros e por isso conheciam-lhe todos os pensamentos, os desejos, os seres e estares da vida.

Sua norinha, vinte anos, namoradinha do filho mais novo, sempre lhe intrigara. Dormiriam juntos os dois? Ali na casa dos pais sabia que não; não poderia admitir tamanha falta de respeito, ora, ora.

Naquele sábado pela manhã, o filho  saíra a buscar componentes para a feijoada do domingo, a se comemorar o aniversário do pai na segunda. Norinha e sogra esticando lençóis, conversam sobre um assunto, com diferença de mais de quarenta anos de tabus: sexo.

Enquanto ali, Ana Amélia pergunta à jovem se ela e o filho faziam sexo. A moça sem pejo ou recato responde-lhe que sim e há bastante tempo. Quis saber se o rapaz era carinhoso, se usavam se proteger e essas coisas que Chico diz que diz toda mulher.  A outra respondia sem titubear, com sonoros sins a quase todas as questões.

Depois, tomada da mesma coragem, foi ela que perguntou à Ana Amélia como era o sexo dela com o marido? Esta quase engasgou; terminou a arrumação doentia de se esticar lençóis e foram para a cozinha. Colocaram um feijão preto de molho ali, umas carnes secas também, e a conversa continuava. “Você já ouviu falar desses cursos de strip-tease, Ana Amélia?” ‘Como, pra quê? Pra dançar em boates, assim?” “Nada, pra dançar pro marido, namorado, companheiro. São um tesão. Não há quem não curta. Vou te dar o endereço de um, tá”.

“Despudorada a menina, veja só, curso de strip-tease… ai…ai”.

Tempos se passaram. Ana Amélia todas as tardes aprendia um passo novo, um jeito sensual de retirar sua saia, de suspender a blusa até a altura do sutiã, de deixá-la ali meio a acobertar um bojo e o outro não… No ritmo de muitas músicas diferentes, foi ensinada a enlouquecer o parceiro com seu corpo, aquele seu mesmo de sessenta e alguns anos. Estava pronta.

Numa segunda-feira, aniversário de casamento, pediu que o marido Jorge chegasse mais cedo. Estariam sozinhos. Filho viajando.

O pior de tudo era na hora H sentir-se ridícula, que já era entrada em anos e aquilo ficaria bem em uma mocinha como a norinha e tal. Teria coragem?! No curso aprendera a levantar sua auto-estima – como diziam por lá – aprendera também a rir de si mesma, caso o marido brochasse, bem possível tamanha a mudança, apreendera a gostar-se mais e, sobretudo, a gostar de fazer amor com seu amor.

Assim o fizera: planejara tudo, casa cheia de velas aromáticas, jantar com frutos do mar e saladas, vinho branco gelado, da preferência dos dois, flores pela casa e um filminho na tela “Love in the afternoon”. Depois era só dançar para ele, não uma música sensual como aquelas do curso. Escolheria uma que para eles sempre representara magia. Seria mais ou menos assim. E se nada corresse como previra, iria fazer tudo de novo noutro dia.

Chegou mais cedo do trabalho, encontrou-a ainda por vestir-se. Tomou banho.

Ela de salto alto, lingerie preta – vermelha pareceria puta, pensava- perfume atrás das orelhas, nos pulsos, sem aliança. Tirou a dele também.

Jantaram, riram, embebedaram-se de um tesão incomensurável.

Colocou o filme. Assistiram de mãos dadas, alguns carinhos, e por fim, o strip- tease. Peça por peça, beijo a beijo, mãos a mãos …

Deu tudo certo. Riu na cama ao recordar  como seu irmão mais velho sempre pilheriava ”Galinha boa cria bom pinto”. Ao que Ana Amélia respondia “Galinha pra ser boa é que precisa de bons pintos”.

Ficaram muito tempo ali sob lençóis, sobre os lençóis, sob a ducha …

Daquele dia em diante lençóis esticadíssimos, nunca mais .

Há uma categoria aqui no blog: Escutador de histórias de amor – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/escutador-de-historias-de-amor/. Em tempos de amores mais do que líquidos, de valores mais do que líquidos, é bom lermos sobre o AMOR maiúsculo, aquele que une casais em corpo e alma. Faz bem.

Textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Nara Leão – Brasil em Música

Histórias de AMOR- IV

Contos do AMOR bem-sucedido. Faz bem ler. Vale ler.

DEDO ANELAR

Marcos era o nome dele. Apaixonado sempre. Louco por casamento, por ter filhos. Buscava em cada moça que conhecia uma noiva. Depois em cada mulher, uma esposa e mãe para seus filhos. Olhava e acreditava que seria com aquela. Era um coração no lugar da cabeça, e exposto, porque apresentava de cara suas credenciais e suas expectativas de por uma aliança no dedo anelar das mulheres. Isso muitas e muitas vezes depunha contra ele. As moças não queriam saber de casar nada. Umas queriam aproveitar a companhia dele para passeios, noitadas, alegrias. Outras eram mais interesseiras e viam nele um provedor de hospedagens, viagens e presentes. Ao que ele passara a chamar de “credicorpo”. Certa vez houve uma mais arrojada que lhe levou um carro na herança amorosa.

Marcos já não acreditava mais que se encontraria em uma mulher. Continuava usando todos os aplicativos de namoro, frequentando sites de relacionamento, indo àqueles clubes fechados só para solteiros, fazia de tudo pra encontrar sua alma gêmea. Nessa busca incessante, acabou por se encontrar em um coração tão apaixonado e romântico quanto o dele. O rapaz era delicado, amoroso, doce e afável. Ficaram juntos. Trocaram alianças em um lindo casamento em Trancoso, na Bahia, com a presença dos familiares de ambos, dos cachorrinhos de ambos e de muitas doçuras. Gravado por um canal de TV por assinatura. Tudo bastante colorido, alegre e carinhoso. Enfim, Marcos encontrara o dedo anelar que buscava. Não encontrara antes porque buscava em mãos erradas, oras.

ALFABETO DO AMOR
Zilá era uma pesquisadora nata. Desde menina. Gostava de observar, fazer perguntas, de querer saber de causas e consequências. Era o oposto da irmã Aurora, sempre lépida, correndo, subindo em árvores, rindo e rasgando na boca a casca das frutas do quintal. Zilá era alfa e ômega ao mesmo tempo. Mais velha que Aurora, Zilá achava engraçadinhas as aventuras e quebras de ossos da caçula.
Estudou muito, gostava de cinema, de artes plásticas, de manifestações culturais em geral. Viajara mundo afora para pesquisar seus achados, encontrar causas, justificar consequências.
Nesses anos de maturidade intelectual, achava-se completamente despreparada para o amor. Aurora já havia se casado e se separado 4 vezes, sempre insatisfeita com os homens que amara. Zilá tivera uns namorados na Europa, outros na América e 1 na África, quando fora estudar suas origens africanas. Zilá era sempre mais cabeça do que tronco e membros. Simples assim.
Resolvera se instalar em uma casa simples, e antiga, no Farol de Itapuã, onde tinha vivido nos anos 70. Procurou pesquisar se a outra ainda estava de pé, mas descobriu que fora transformada em hotel. Nem fragmentos fósseis daquela morada dos anos 70 mais. Alugou outra então.
Saía para caminhar na areia, logo cedo. A casa do grande ginecologista ainda estava lá. Mas quem viveria agora naquele lugar? Logo descobriu com os pescadores tratar-se de Zoroastro, um homem muito culto, diretor de cinema, talvez próximo dos 70 anos. Pouco vinha ali. Vivia filmando por muitos lugares.
Conheceram-se, amaram-se quase instantaneamente.
Anos depois, Zilá teve um câncer. Zoroastro precisaria ficar com ela, acompanhar seu tratamento… resolveu alterar ritmo e foco das filmagens. Ela, a causa dela, o amor por ela, tudo isso seria seu novo foco. Estava feliz com a mudança. Zilá, também.
Zilá curou-se. Zoroastro recebeu o mais alto prêmio do país por seus documentários.
Estavam felizes de A a Z.

Há uma categoria aqui no blog: Escutador de histórias de amor – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/escutador-de-historias-de-amor/. Em tempos de amores mais do que líquidos, de valores mais do que líquidos, é bom lermos sobre o AMOR maiúsculo, aquele que une casais em corpo e alma. Faz bem.

Textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal begiroquai

Histórias de AMOR- III

Contos do AMOR bem-sucedido. Faz bem ler. Vale ler.

“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa ficará diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de teus amigos ou o teu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti” (John Donne, Meditações VII).

ILHAS DE AMOR
Filipe era um ilhéu. Fora nascido e criado em Ilha Bela e desde cedo se pegava admirando o mar, fugia para cantos solitários a se encantar com o mar. Colecionava tudo que tivesse cheiro de mar. Areias eram tingidas com o que lhe chegasse às mãos e colocadas em garrafinhas, como se quisesse ter o mar no quarto sempre. Aprendera muitas graças e segredos do mar com os pescadores, quando retornavam das pescas diárias. Ouvia o mar em si. Adolescente ainda, decidiu que estudaria Oceanografia. Queria ir fundo. Como se um canto de sereia o imantasse aos oceanos.
Na universidade fez muitos estudos de campo, teve aulas de mergulho, aprendeu a fotografar o fundo do mar, a recolher corais, algas, a medir a quantidade de peixes por quilômetros de mar. A biologia marinha o sorveu em goles longos, saborizou suas taças de luzes e perfumes de mar. Estudava e permanecia muito tempo na água. No continente sentia vontade de voltar ao mar. Era como se Janaína, sedutoramente, o fizesse realizado, nas águas do mar.
Foi viver no Rio de Janeiro e passou a se debruçar em estudos sobre as Ilhas Cagarras. Gostava de namorar suas ilhas, era um ilhéu. Nos dias de chuva, com areia molhada, ficava ali olhando a vida de longe.
Conheceu e se alinhou à gestão ambiental e foi estudar o arquipélago. Começou pela Ilha Comprida. No barco que os conduzia ás pesquisas, foi fisgado pela isca do olhar de Nara, bióloga e responsável por aquela expedição. Encantou-se por seu conhecimento, seu tom de voz de sereia do mar, quase um canto. Mergulharam juntos, filmaram as profundezas daquela ilha. Subiram e, em terra firme, se viram muito próximos. Mais por olhares, silêncios e barulhos de mar. Durante semanas na mesma rotina se amaram naquelas ilhas. A rede de pesca da sereia havia trazido um amor de Netuno a eles.
Nara havia nascido na Ilha do Governador e sempre se encantara com o mar. Colecionava tudo que tivesse cheiro de mar. Recolhia conchinhas pelas manhãs, namorava o pôr do sol nas águas…
Eram dois seres marinhos.

A ESTRADA

Não havia mais jeito. Fim de linha. Era essa viagem e depois cada um pro seu lado. E isso agora de ter de contar aos pais, tios e avós já era demais.

Casamento acabando, dez anos de alegrias e tropeços, sem filhos. Fim. Nada segurava mais aquilo. Fim do romantismo, fim do erotismo, fim do companheirismo, fim de tudo. Carmem pensava enquanto o marido Raul dirigia por aquela estrada cheia de remendos e de chuva fininha, sabão para acidentes.

Motorista, só sirvo pra isso. Bem que ela podia guiar um pouco, não considera nem minha dor nas costas, não se oferece, nada. Horas nesse volante. Fim de tudo. Acabou esse jogo, fim da parceria, ainda bem que não tem filho no meio. Menos pensão, menos discussão, só separação e pronto.

Silêncio absurdo como o de uma sala de cirurgia delicada. Delicadíssima. Nenhum lamento, nenhum xingamento ou conexão. Mudez recíproca, que cada palavra dita era prenúncio de deboche, desdém, menosprezo. Fim.

Tropeço na estrada. Engasgo do carro. Esforço de alcançarem uma luzinha acesa à frente. Chuva aumentando. Chegaram. Ele saiu. Chuva. Olhou o motor. Nada. Perguntou a alguém no balcão se ainda haveria alguma oficina nas redondezas que pudesse socorrê-lo. Só amanhã– foi a resposta.

Ela no carro. Lembrou do auxílio da seguradora, mas ali o telefone não funcionava. Fora de área.

Sugestão do homem em pé no balcão: Amanhã, amanhã consertam o seu carro.

O do balcão sugeriu que pernoitassem lá. Nos fundos havia uns quartinhos com banheiro, chuveiro.

Essa música é de onde? – quis saber Raul. Do bailinho aqui ao lado. Toda quarta, sexta e sábado tem. Tem? Tem.

Banhos tomados. Roupas trocadas. Lanches quentes na chapa. Raul, uma pinguinha. Uma batida pra ela. Duas batidas, três batidas. Raul mais umas pingas. Perdeu a conta. Foram até o tal lado porque ouviram a primeira, a segunda, a terceira e eram todas músicas com histórico na etiqueta. Tinham viajado com elas por anos de namoro etc. etc. Dançaram. Ficaram mudos e totalmente sozinhos. Ninguém dos outros pares foi sequer notado pelos dois. Colados de rosto e pele, foram ficando mais e mais colados de rosto e pele, por mais de uma hora.

Chega. Cama. Romantismo. Erotismo. Beijos, toques e prazeres.

Na manhã seguinte o carro ficou pronto. Um sorriso de cumplicidade neles.

Estrada.

Há uma categoria aqui no blog: Escutador de histórias de amor – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/escutador-de-historias-de-amor/. Em tempos de amores mais do que líquidos, de valores mais do que líquidos, é bom lermos sobre o AMOR maiúsculo, aquele que une casais em corpo e alma. Faz bem.

Textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal The Soul Jukebox