recolhi os presentes da terra os passarinhos bicaram minhas goiabas não faz mal as resgato ainda assim os bichinhos fizeram guarita nas minhas goiabas não faz mal as reciclo, que são as melhores as acerolas do vizinho querem vir beijar o meu território para isso se esticam e se oferecem vermelhinhas nos galhos vermelhinhas no chão as espigas, da primeira vez, no terreno ao lado vêm nas mãos da dona ofertam-se para serem compartilhadas – Muito milho, não dou conta. vão virar curau vão virar bolo cremoso vão virar doçuras
AS QUITANDAS DAS AVÓS, DAS TIAS, DAS MADRINHAS
Sempre guardei o sonho de viver em um lugar pequeno, com frutas que virassem doces no fogão de lenha, com verduras e hortaliças no quintal. Por quê? Porque fui criada assim em Xerém, com um terreno enorme no fundo do quintal, quase uma chácara, onde meu pai plantava de tudo um pouco, além de criar galinhas, patos e até uma cabra e seu cabritinho, o leite de cabra fazia bem à sua saúde, sempre tossindo, com asma e bronquite – mesmo sem nunca haver fumado.
Muitos pés de goiabas, nos quais eu vivia escondida até os 12, 13 anos, láááá em cima. Pés de laranjas de várias qualidades e mais de 100 pés de bananas, todas prata. Meus pais diziam que valiam ouro. Antes de dormir, minha mãe batia vários copos de liquidificador com uma deliciosa vitamina gelada de bananas e distribuía a todos. Às vezes variava e fazia um toddy gelado também. Vários e vários copos antes de dormirmos. Já tomou o leite, Doni? Vem tomar.
Quando vinha pra Barbacena, minhas avós me enchiam de graças, pois sabiam que sempre adorei doces, o de leite em barra então, que se vai cortando as fatias com a faca e comendo, e conversando na mesa da cozinha e ouvindo causos. Uma delícia mesmo.
Quando íamos fazer novenas em casas de madrinhas, eu e minha tia Ziza, sempre nos aguardava uma quitanda depois da reza. Lembro pouco da reza, mas dos doces no guarda-comida das casas … ai que delícia. Era como se Nossa Senhora agradecesse as orações oferecendo doces. Mas quem dá doces não são Cosme e Damião? Acho que são da mesma linha – a dos doces. E eu, 10, 11 anos, adorava.
De forma que eu adoro fazer doces. Cozinhar de maneira geral. Mas os doces me adoçam sonhos e recordações.
Minha avó paterna faleceu quando eu tinha 7 anos, mas todas as vezes em que eu vinha pra Barbacena, me adocicava demais. Era uma mulherzinha baixinha, magrinha, mãe de muitos filhos homens e apenas de uma mulher. Nasceu em 1897 e lavava os pés do marido e dos filhos adultos quando chegavam do trabalho. Tenho essa imagem dela, como a cerimônia católica do Lavapés. E os enxugava, dando os chinelos a eles. Forte imagem. Minha avó Jovem – Jovercina Inácia – corria na hora da nossa partida de ônibus pro Rio e me entregava pela janela, os docinhos de leite, cortadinhos em losangos, em uma latinha. Fiz procê, Doni. Ah, que imagem linda !
Enquanto cozinho vou ouvindo músicas; pra esse doce de goiaba, por exemplo, foram essas.
Assim, hoje, estou aqui na cidade onde minhas recordações dormem e acordam e faço eu os doces. E me sinto muito bem podendo fazer doces.
1. O Reino das Águas Barrentas e os Desafios do Amor (ao povo do São Francisco) [Carlos Pita] (Part. Esp.: Roze e Dércio Marques) 00:00 2. A História do Cavaleiro Enluarado com a Donzela do Bem Amar [Carlos Pita] (Part. Esp.: Roze) 03:44 3. A História do Cavaleiro de Couro e Corda com a Dama dos Rasos de Seca [Carlos Pita] (Part. Esp.: Roze) 06:30 4. A História do Cavaleiro Sertanejo com a Princesa do Clarear [Carlos Pita] (Part. Esp.: Roze e Dércio Marques) 10:18 5. O Romance do Rei do Ensolarar com a Bela das Rendas de Lua (dedicada à Cau) [Carlos Pita] (Part. Esp.: Dércio Marques) 12:25 6. A Princesa do Agreste e o Cantador do Elo ao Mar (para Elomar Figueira) [Fernando Lona/Carlos Pita] 14:45 7. O Arco-íris Trovejou [Patinhas/Capenga] 16:58 8. A História dos Quatro Reinos Desaparecidos e os Guerreiros do Mal Viver [Carlos Pita] 19:23 9. Princesa Sertaneja [Patinhas/Gereba] 22:15 10. A Rainha do Trançar e o Violeiro dos Esqueces [Fernando Lona/Carlos Pita] 25:15 11. A História da Princesa das Candeias de Amor com o Cego do Alumiar [Fernando Lona/Carlos Pita] 28:10 12. O Príncipe das Verdejanças e o Amor do Verdejar [Carlos Pita] 31:12
CANTIGA
Ó serra de meus tormentos que trazes de novas de meu cavaleiro? Aqui arde a tarde em sortilégios Aqui dorme a noite em sacrifícios
Ó serra de meus tormentos que trazes de novas de meu cavaleiro? Aqui trago lança colorida Aqui tenho aromas e perfumes
Ó serra de meus tormentos que trazes de novas de meu cavaleiro? Aqui cavaleira sou Aqui tropeço levanto em lances de dor
Ó serra de meus tormentos que trazes de novas de meu cavaleiro? Aqui vagueiam nuvens desenhos de um cantador Aqui passeiam sonhos de encantos e sabor
Ó serra de meus tormentos que trazes de novas de meu cavaleiro?
DEDICATÓRIA: Ao amigo Estevam, leitor da minha terra, que saboreia meus escritos com atenção. Obrigada por seus comentários tão cheios de Campo das Vertentes, viu.
sema soma signo ícone marca-símbolo línguas mortas línguas vivas
sema soma signo corpo-corpus meta mítica som-sono-sonho meta fora metáfora
É O BICHO !
Havia naquela serra um gato enigmático que só miava por metáforas. Como assim? Como se comunicava com os outros gatos? Por metáforas, oras. Vivia pelos muros, raro era enxergá-lo no chão. Quase sempre sobre árvores. Nunca se colocava no mesmo nível dos outros animais.
A formiguinha, ô dó, sempre lhe fazendo agrados, enamorada de seus miados de cio, acreditava serem para ela. A coitadinha, miudinha, vivia a olhar para as árvores, 24 horas por dia, e assim que ele disparava um miado, corria para rodeá-lo com seu enfadonhos, rasteiros e adocicados louvores. Era acostumada aos farelos, às migalhas que ele deixava cair com seus miados metafóricos nas árvores das redondezas. Ela vivia nas nuvens, metaforicamente.
O cão Janjão não entendia nada, Sei lá o que ele está querendo dizer, mas o seguia diuturnamente. Acreditava Janjão que os dois fossem muito parecidos, iguais mesmo, portanto ficava fascinado por aqueles miados sem endereço, nem compreensão – coisa sem explicação.
O gato miava com um prazer enorme, gostava daquelas reações que provocava nos outros animais, sentia-se superior, ninguém poderia decifrá-lo, portanto jamais seria encontrado, nem tocado. Seu esconderijo, seu endereço … jamais. Ao ser visto, fugia de muro em muro, de árvore em árvore, de modo que apenas o cão Janjão o seguia. Por terra. Mas nunca tomando lugar, de verdade, nos muros com ele, nas árvores com ele. Apenas por temporadas, embaixo, com a cabeça em adoração. Ao ouvir seus miados metafóricos, abanava o rabo, baixava as orelhas e ia feliz ao seu encontro. Era assim, se quisesse seguir o gato, teria de ser assim. E já era muito. Mas Janjão achava que valia a pena, era aquilo com que sempre sonhara. Só de estar ali, mesmo sem entender nada do que miava o gato prestidigitador, já valia a pena. Comparativamente, se entendiam como cão e gato. Ou seriam gata e cadela? Ninguém nunca soube o que acontecia de fato. Seguiam assim.
HOMEM DE PALHA
Como uma vela era manobrado com facilidade por ventos quentes Como uma biruta era moldado com facilidade por ventos novos Como uma pipa era conduzido com facilidade por ventos de ocasião Como paina era assoprado com facilidade por bocas de pimenta Porque de palha cedia ao rumo que lhe impusessem. Um dia pegou fogo. Não era mais um homem, então.
QUE DE SUPOSTOS CONTRASTES
opostos repostos dispostos também se amparam os sentidos também se amparam os toques também se amparam os risos também se amparam as rimas também se amparam os ombros a vida ainda é curta
Eta vida besta , meu Deus! diria meu poeta itabirano do céu nas estrelas.
O GATO DE BOTAS
Amigo felino, ronronar de mios roçar de pelos eriçar de bigodes enroscar de dorso aprumar de rabo umedecer de boca desmaiar de fastio.
METÁFORAS
Cofres repletos de imagens de significantes ocultos repletos de marcas, medos, modos. Metáforas são rastros tachos, mastros tudo e nada códigos e manchas flores e sangue. Metáforas são arapucas, armadilhas, alçapões. A quem acenarão todas essas metáforas?
PONTE LÂMINA
É aço? É traço? É arco?
Desfaço.
No trato No risco No disco No fraco No trisco No cisco No braço.
Destrato.
O passo O paço
A lâmina A rota
O rumo O coro A arma
A faca O fuzil
A marcha O hino
O grito A tortura
A dor A solitária
A ponte O aço O arco O pouco O dorso O osso O soco.
A destituição. A destruição.
Inaceitação!
Livremente inspirado em O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de Jorge Amado (1948)
Poesias e texto: Odonir Oliveira (escritos em 2015 e 2016)
Ouça um bom conselho Que eu lhe dou de graça Inútil dormir que a dor não passa Espere sentado Ou você se cansa Está provado, quem espera nunca alcança
Venha, meu amigo Deixe esse regaço Brinque com meu fogo Venha se queimar Faça como eu digo Faça como eu faço Aja duas vezes antes de pensar
Corro atrás do tempo Vim de não sei onde Devagar é que não se vai longe Eu semeio o vento Na minha cidade Vou pra rua e bebo a tempestade.
Chico Buarque
POR QUE AS PESSOAS ANDAM PRECISANDO TANTO DE COACHES ?
Vou desagradar a muitos, eu sei. Mas … todas as experiências que tive com pessoas, principalmente mulheres, muito dóceis, muito proativas, muito conselheiras, muito ternas, muito motivadoras … foram irreais, aliás, surreais. Pessoas muito cabotinas, que sempre diziam alguma coisa muito diferente daquilo que faziam, com sérios problemas de auto-aceitação, auto-estima, superação, quase sempre forjando narrativas sobre acontecimentos, sentimentos, omitindo razões e desrazões. Um fracasso total mesmo.
A fala mansinha, o olhar meio de lado, as mãos em posição de meditação, tudo ”filmado e fotografado” e depois apurado e filtrado mostrou-se frágil, falso e até inconsequente. Pessoas que têm vidas muito mitificadas, com sonhos frustrados, desejos interrompidos, tudo isso leva a que busquem formas de ”ajudar outros” a não sofrerem o mesmo que elas, portanto certas posturas são contestáveis, visto que nem para elas foram assertivas. Com elas não deu certo, continuam frágeis, submissas, acatando a programação que o outro faz de suas vidas e não a sua própria. Decepção atrás de decepção com ídolos, gurus, coaches é o que mais ouço contar. Mas por que isso?
Não é necessário um profissional que nos treine para a vida, para as perdas, para os empregos. A vida requer treino? Penso que a vida requeira vivências, passar por pontes, pinguelas, assumir, entregar-se, sofrer, restabelecer-se, ir e tentar manter sua essência, sua integridade. Não seria um coach que nos ensinaria a evitar isso (nem na área religiosa). Não queremos assumir nossas vidas, a responsabilidade de nossas escolhas e ações e por isso necessitamos de andaimes que nos sustentem, que nos chancelem, nos deem respaldos?
Roberto Freire, grande terapeuta corporal, abandonou a psiquiatria, foi ler Reich, Jung, e tantos outros, criou a Somaterapia no Brasil. Roberto, o Bigode, acreditava que cada um sabe, ou vai descobrindo, aonde quer ir. O terapeuta, como um encanador ou um taxista, vai apenas desobstruindo os encanamentos entupidos e levando ao lugar onde se deseja chegar. Nada mais que isso.
Não entendo essas grandes ingerências em vidas alheias, até porque muitos coaches nem resolveram as deles e se arvoram a exercitar seus estudos, tudo tão recente, nas existências alheias. Temo que muitos coaches sejam apenas prestidigitadores modernos.
Porque nasci de um braço de rio e de uma pedra bruta porque corri por margens doces e às vezes estéreis porque saltei obstáculos e curvas porque sou céu azul quando o céu é azul porque sou barro quando o céu anda nublado porque tenho voz e acolho olhares uns porque sou força quando recebo torrentes outras porque brinco de carregar flores porque brinco de atrair borboletas porque gosto de estar em mim porque gosto de estar em ti foi simplesmente porque nasci de um braço de rio e de uma pedra bruta.
PERCURSO DE RIO
nessa selva de prédios ouço um chamado nessa selva de pedra acolho uma súplica nessa selva de podres recebo um presente no presente há metas no presente há desejos tantos no presente há sonhos possíveis sou mata e rio sou mata, rio e projetos sou um som que soa nos longes no presente sou percurso ainda serei curso ainda serei curso de rio
TRILHAS
Obstáculo à frente. Transpor. Pedregulho.
– Vem, vem, me segue , me dá a mão. Vem. – Estou com medo. Não. – Não, vem; me segue aqui, cuidado. trilha, chão, folha, pedra Cansaço. – Não vou conseguir. – Vai sim, só mais um pouco. Eu ajudo, vem. trilha, chão, folha, pedra
Viagem de dentro pra fora. Dorso de almas Canto de terra, água e pedra. Promessa do prazer ao final.
Vem, mais um pouco, me segue. – Sigo, me dá a mão. Viagem de fora pra dentro Conquistas, dificuldades, tropeços.
Encantamento. Maravilhamento estético.
Natureza, artista de pincéis finos Natureza, artista de melodias doces Natureza, artista de lírica celestial. Contemplação. Entrega. Silêncios internos. Orquestra sob a batuta De um regente maior.
Contemplação.
CORRENTEZAS
jorra água jorra flor jorra aroma jorra folha jorra flor jorra cor jorra dor jorra verso jorra amor corre o rio corre a flor corre o tempo corre o vento corre o verso corre o amor curso de rio decurso do tempo percurso do verso correnteza do amor
GUIAS DE ASAS
Esperem, me guiem vocês são muito velozes vou devagar tenham calma isso, me levem a ele peguem minhas mãos com suavidade borboletas são anúncio de rio obedeço porque têm toda a sabedoria conduzem meus passos fazem asas de meus pés beijam meus olhos abraçam meus ouvidos o rio ri já ouço seu riso bem perto o rio faz-se voz e vez estou aqui
repousa em mim a luz do sol a sombra da tarde o perfume das minhas rosas repousa em mim a franqueza do ser a dignidade do existir repousa em mim a carícia do vento da serra o sol quente da altitude repousa em mim a paz da fraternidade a luta pela igualdade repousam em mim os verdes, os amarelos, os rosas, os vermelhos sou planta
RECOLHIMENTOS
Fui recolher, varrer, limpar não consegui a beleza me reteve a paleta de cores me deteve apaixonada fiquei ali sentei ali agradeci ali paraíso possível paraíso sensível paraíso indizível não atirarei suas cores fora não retirarei suas cores de mim não expurgarei seus tons de meu jardim que restem que fiquem que coloram as manhãs que deslumbrem as tardes que enterneçam as noites
POSTOS DE ABASTECIMENTO
Há instantes em que nos sugam até o espírito Há fases em que nos vampirizam todas as emoções suaves Há momentos de tamanha crueldade e desprezo a nos anular Há voltas que destilam revoltas em corações esmigalhados Há vazios perfurantes de facas sangrentas sobre nossa voz Há que se abastecer os dias e as noites Há que se beber do vinho tinto dos sorrisos Há que se saber ler a si mesmo sem as leituras alheias Há que se manter de pé mesmo após as rasteiras vis Há que se abastecer de vida com amigos com flores e cantos com risadas compartilhadas Há de haver postos de abastecimento em nós.
COLEÇÃO DE PEDRAS
caminho olhando o chão caminho sentindo os céus caminho recolhendo pedras pedras que encontro pedras que escolho pedras que me sustentam sou edificação de cores várias entorno minhas pedras rudes acaricio cada uma encantada com sua textura agradecida por sua cor extasiada com sua forma tenho-as de minhas veredas tenho-as de meu chão tenho-as de minhas idas e vindas sou pedra e mulher.
SAMBA-CANÇÃO
Não me mandem recados duplicados melodias duplicadas imagens congeladas duplicadas
Não me mandem telegramas cartas anônimas recados escritos.
Demoro para abrir a caixa-postal tardo para mediocridades, mesquinharias de cais não leio mensagens dúbias desvalorizo sons fugazes menosprezo feitos e fatos de estação.
Não me mandem mensagens subliminares metáforas cruéis hipérboles de álcool e fumo
Não reprisem Dalva e Herivelto. Não respinguem nada disso em mim. Sou recheada de mato, flores e rios.
DEZEMBROS
poemas Eu insistia para você criar uma página para canalizar a sua vibrante criação poética. Seus versos fluem com limpidez, encantamento e sedução.
poemas Frágeis poemas rabiscados ensinam Ser e estar tranquilo em propostas obscenas Que desfiam receitas de bolo favorável e outros temas Mas não revelam onde foi que amarrei a minha égua Nena.
poemas … poemas … poemas … trezentos e sessenta e cinco milhões de dias entre dezembros.
DIGNIDADE
Era um homem digno ouvia, ouvia, ouvia jamais desmerecia a dor alheia, fosse pela desgraça da perda de um filho da perda de um trabalho da perda de um companheiro.
Era um homem digno ouvia relatos e transformava em música dores e sangue risos e cores medos e angústias. Tirava acordes precisos dos sentimentos humanos.
Era um homem digno ouvia, ouvia, ouvia jamais desmerecia a dor alheia.
MULHER DIARIAMENTE
Não está vendo ali? É uma mulher. Tem cheiro de mulher Tem jinga de mulher Tem sorriso visguento de mulher Tem redondos e doces de mulher Não está vendo ali? É uma mulher. Chora aos baldes como mulher Ensina aos ventos e tempos como mulher Arremata discursos com exclamações sem vírgulas como mulher Cuida de seres animais, vegetais e humanos como mulher. Não está vendo ali? É uma mulher. Enfeita o cenário Compõe a moldura Derrama tintas E socorre feridas. Não está vendo ali? É uma mulher.
Poesias: Odonir Oliveira (escritas em 2016)
Fotos de arquivo pessoal
Vídeos:
1- Canal ArteVitalBlog – Vídeo que apresenta o instrumental, “Jardim das Delicias” do compositor mineiro Flávio Venturini e um apanhado magnífico da obra do pintor impressionista, Jean Claude Monet.
Separaram-se amando-se perdidamente. Perdidamente … já não se sabe. Só quem sabe de dois são os dois mesmo.
Filomena, a Filô, era apaixonada pelos diferenciais de Ricardo, o homem amado. Ele, envolto em um Édipo sem fim, de cuidados e superproteção materna, não se fixava em mulher alguma. Mas costumava deixá-las dependuradas nele eternamente – típico exemplo de gestalt interrompida. Seguiria assim, o perfeito amigo, posterior aos namoros e apaixonamentos.
Filô era corpo e pele, caixa amplificadora dos sons do amor. Alto- falantes à mostra, aos ouvidos. Viveram juntos por dois anos, tiveram um filho. Entretanto, o interesse de Ricardo por ela ia diminuindo. Logo depois do filho, ao se aninharem na cama, carinhosamente, aos beijos, abraços e prelúdio, perguntou-lhe se já poderiam ser um. Ao que ela não respondeu com palavras. Ele era assim. Depois foi vendo-a como a santa mãe de seu filho, quase num procedimento semelhante ao dos poetas românticos do século XIX. Isso incomodava demais Filô. Ora, ora, santa é a mãe !
Quando ele viajava a trabalho, junto com sua equipe, ela costumava ouvir das esposas dos outros ”Dou graças a Deus quando o zé viaja, me sinto livre, vou ao shopping, ao cinema, ao cabeleireiro, passeio, sem preocupação nenhuma. Podia ter uma viagem dessas por mês, né”. Filô era só ouvidos, porque, diferentemente, morria de saudades da voz de Ricardo, de sua pele aninhada à dela, de sua voz doce, de suas conversas com ele e de serem um.
Após tentativas de reaproximá-lo em corpo e alma, Filô, agora mãe, resolvera e dissera a ele. ”Quando você voltar dessa viagem a Salvador, vamos conversar sobre nós”. Ele concordou.
Antes disso, já havia conversado com a mãe de Ricardo sobre o assunto. Sentiu-se mexida em brios, como um filho seu, tão jovem, apresentaria tal comportamento. Pediu que marcasse uma consulta com aquele psiquiatra famoso da televisão para Ricardo. Ela pagaria. Foi. O psiquiatra disse – segundo ele – que todos os grandes personagens da literatura, por exemplo, tinham amor por suas musas e não tesão físico. Isso seria de menor importância, citando diversos exemplos. Isso serviu de álibi amoroso para o Ricardo de Filô. Era o vamos deixar como está pra ver como é que fica.
Filomena encheu-se de coragem e pediu que ele fosse embora. Sentia-se muito mal, humilhada mesmo, com seu desinteresse. Antes, batalhara tanto para tê-la, e ela resistira em nome de uma continuidade, eram tão amigos, tinham tantas identidades descobertas … depois de tudo aquilo, agora o desinteresse. Não. Inaceitável. Separaram-se.
Ricardo mudou-se para um prédio na mesma rua, dois quarteirões acima, no mesmo lado. Afirmava que com menino pequeno era bom ficarem próximos. Um novo terapeuta lhe teria dito ‘‘Pra que tantos gastos, entra um pela sala; outro, pela cozinha e estamos conversados” – ironizando a escolha de endereço de Ricardo. Pois é.
A cada fim de semana uma namorada nova, linda, mais jovem que Filô, o esperava no carro, enquanto ele subia para buscar o menino. Ela olhava da janela o carro sumindo, sumindo, levando sua cria e a namorada da vez. Assim seria ainda por alguns anos.
Agora, aquele bilhete, aqueles versos, aquele poema, deixado na portaria do prédio, em envelope aberto, no qual se lia apenas o número de seu apartamento. Pareciam letras femininas.
Perdi
” Perdi as folhas e os escritos, perdi o poema que escrevi à pouco, perdi a vontade de rescrever, perdi as nuvens que não chegaram e os sonhos que ainda não sonhei, perdi o sono que não encontrei e perdi a certeza de que sonhei. De entre todas as loucuras do mundo apenas a minha é sã, nesta liberdade condicional que me atribuíram sem julgamento, julgo escrever sem fundamento o que a alma vomita, porque sentir eu sinto, e viver nisso minto, não sei se vivo ou se morto, sei que eu sou, mesmo que não esteja, embriaga-me seriamente saber que me amas, ainda que eu te ame sem reciprocidade, amamo-nos, ainda sem nos somarmos, antes de nos dividirmos, na impossibilidade física de nos multiplicarmos… Que venha o sono, ou a loucura de o dormir!”
Ah, o amor, esse carrasco que fazia Filô chorar todas as noites, imaginando os beijos, os abraços e o sexo que Ricardo tinha com todas aquelas namoradas de ocasião.
Certa vez perguntou a ele se fazia AMOR com elas naquele colchão grandão, sob medida, que ambos haviam mandado fazer pra eles (Ricardo era muito alto), e se ele as chamava de ”marida” também. Ele riu, a abraçou, aconchegou-lhe a cabeça no peito e completou ”Cada relacionamento tem suas coisas particulares. Esqueça isso”.
Filomena, a muito amada, já diziam gregos e troianos.
CORPOS
nus eram uns nus eram outros sem nomes sem restos sem rostos sem máscaras sem mitos sem metas sem mesmos
tronco membros cabeça membros tronco cabeça
tronco e membros membros e tronco
sinfonias
GESTOS
de espasmos de espaços de espécie de epicentros de ex-pontes de ex-pulsos de ex-braços de ex-ventre de espasmos de expulsos
DAS DORES
Das Dores pinga dores lágrimas e lamentos. Das Dores verte sangue pus fedores. Das Dores amarga manhãs tardes noites na clausura de subidas e descidas em companhia solene de anjos, serafins e querubins. Das Dores entrega sua lira aos deuses na esperança de que pousem em sua janela, devolvendo-lhe luz, cor e o perfume dos dias.
MARIA
Bebe veneno no frio come veneno no calor cheira veneno no quintal olha a lua fala com as estrelas. Chora com as ondas soluça com as serras engasga com o sol. descama com a fumaça. Sofre com incertezas emagrece com torpezas engorda com durezas desfaz-se em friezas. Maria faz travessias na garupa do cavalo torpe que lhe encilha a alma.
O texto do bilhete é do poeta português Alberto Cuddel
“Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas – é de poesia que estão falando.”
“A voz de um passarinho me recita” – Manoel de Barros
BENDITAS ALMAS
Benditas as conversas de passarinhos Benditos os que ouvem os passarinhos Benditos os que permanecem imóveis frente a passarinhos Benditos aqueles que têm colorido nas mãos, qual seus companheirinhos, salpicando-lhes alimento em horas combinadas do dia. Benditos os que veem bicos, asas, penas e voos como mais que bicos, asas, penas e voos. Benditos os escolhidos pelos passarinhos para serem seus semelhantes, quase iguais.
SENSIBILIDADE, TEU NOME É ELIANA
Era começo de tarde. Fui ao supermercado muito rapidamente buscar uns 5 itens, pagar e voltar, que aguardava visita.
Já no último item – pães. Nos pães, me perco, que neta de padeiro tenho tesão no cheiro deles assando ou quando ele sai pelas chaminés das padarias … além do mais o sensorial olfativo se junta ao visual, e aí, meus amigos, acabou. Perco ali é bastante tempo. Prazer do bom.
Para bagunçar todo o planejamento, o imprevisto vem brincar de esconde-esconde comigo. Sabe que será irresistível. Surge ele, um abusado minúsculo pássaro, que de longe namora, literalmente, um pão de sal redondo que algum freguês deixou cair no chão. Vi a cena e o saltitar do abusado. Veio devagarzinho, de ladinho, a caminho do pão. Funcionários saíam de dentro da padaria do supermercado e iam abastecer prateleiras. Ele lá. Às vezes clandestinamente sob umas delas. Voltava. Não resisti, pedi à funcionária que arrumava os bolos que não recolhesse o pão do chão. Pedi que esperasse. – Se o gerente vir, vai mandar eu retirar o pão. Mas a vontade que eu tenho é pegar o pão e dar pra ele lá fora. – Então tá, deixa eu filmar e fotografar. Como é seu nome? – É Eliana.
Enquanto ela continuava a sua função, outros funcionários passaram por lá, olharam meu interesse, acharam graça. Levei um papo mineirim com Eliana sobre sua sensibilidade, chamei sua atenção para quantas belezas dos caminhos a gente desperdiça sem dar a elas nenhuma importância. Ao que me respondeu que adorava paisagens e poesia. Disse-lhe que escrevia poesias, crônicas e que se quisesse ler, quando tivesse tempo, os endereços eram tais. Na mesma hora achou no bolso uma caneta e anotou num pedacinho de guardanapo os endereços. Queria ler.
Depois, enquanto foi lá pra dentro buscar mais mercadorias, dei uma empurradinha no pão, com o pé, pra debaixo de um balcão. Meu amiguinho, o Abusado, entendeu tudo e foi comer lá, refugiado, sem ser incomodado por mais ninguém. Contei meu delito passarinheiro à Eliana. Ela riu.
Viva Eliana. Gente que gosta de passarinhos e de poesia salva o nosso dia. (Com rima e tudo).
” Por viver muitos anos dentro do mato Moda ave O menino pegou um olhar de pássaro – Contraiu visão fontana. Por forma que ele enxergava as coisas Por igual como os pássaros enxergam.”
Manoel de Barros
Minhas mãos sentem, eu me emociono quando em estabelecimentos comerciais ninguém espancou um cão até a morte, nem estrangulou um rapaz até matá-lo também.
Sobre o mesmo tema, leia AQUI: ”Dona Augustinha, leve como passarinha”
Acordei e fui ouvir 2 LPs de Vicente Celestino – herdados de meu pai. Conforme ouço música, vou me envolvendo em emoções e lembranças. É assim quando escrevo e quase sempre por que escrevo. Meu pai ouvia Vicente Celestino, calado, às vezes balançava a cabeça. Em silêncio.
Homem de coração dependurado fora do corpo, vivia assim totalmente exposto e transparente. Por todos. Nas raivas, no dizer o que deveria dizer, não importando fosse mulher, filho, parentes. Costumava dizer que se TODOS fossem claros e agissem de forma clara, TODO MUNDO saberia com quem estava lidando, sem cabotinismos e escaramuças. Era um sonhador, portanto. Fato é que se alguém lhe pedisse dinheiro na rua, por exemplo, um pedinte qualquer, tirava do bolso uma nota, e não uma moeda, e lhe entregava. Nunca usou carteira de dinheiro, tinha certo desprezo por dinheiro, é verdade.
Minha mãe, ”de extirpe mineira francesa”, de gente de BH – pão-duros, materialistas, como ela afirmava – minha mãe reclamava dessas doações em espécie e do trabalho solidário ”exagerado” de meu pai. Dizia ela ”Eu, carrego peso da feira, puxo carrinho de compras, pesado, de lá até aqui, pra economizar o seu dinheiro, sem pagar carregador, e encontro você tirando dinheiro do bolso e dando pra qualquer um na rua”. Ele respondia, repleto de argumentação, ”Mas por que não esperou? Eu viria trazendo o carrinho, por que quis ir na frente sozinha?”. Eram assim. Cada um com suas idiossincrasias e valores.
Minha mãe adorava filmes de suspense, de terror, de crimes a serem descobertos etc. Flutuava com as valsas vienenses e as flores, sendo as orquídeas as de sua preferência. Cultivava mais de 300 pés de antúrios e muitas orquídeas. Dizia querer escrever a história de sua vida e enviar para Janete Clair, desde os tempos das novelas de rádio. Ao que eu lhe explicava: Mãe, as histórias dos novelistas e dos escritores, em geral, têm trechos das vidas de muitos, por isso que a gente lê ou vê na novela e se reconhece naquilo. É assim desde as tragédias gregas, mãe. ”Ah, mas a minha, tenho certeza que daria uma novela completa e ela iria aproveitar tudo”.
Já meu pai gostava pouco de TV. Era mais das leituras e da rua, e como adorava andar. No Rio, pegava um ônibus, de trajeto longo, só pra ter o que ver, apreciar. E concluía ”Pitoresco, pitoresco”. Mas o quê, pai, o quê é pitoresco? ”Tudo’‘. Em São Paulo, já chegava com o Guia Rex atualizado ‘‘São Paulo muda muito, todo dia uma rua nova, é o progresso, São Paulo não pode parar’‘- repetia a cada vez. E munido ”de seu Google Maps” do passado, ia pra rua. Voltava deslumbrado com o metrô, já no início, com a Praça da Sé, com o comércio do centro ‘‘Tem de tudo. Ferramentas então, nossa. Cada uma mais útil que a outra”. E voltava com algumas. Minha mãe esbravejava, ”Mais ferramenta, Plácido, gasta o pouco dinheiro que tem em ferramentas, nunca vi”. Ele: ”Duia, ferramenta é sempre útil e é investimento. Com a ferramenta certa pode-se fazer muita coisa. E economiza-se com gastos a mais. Só você mesmo pra não dar valor a ferramentas“.
Consertava tudo, era de uma maestria incrível. Desde pequenas delicadezas, como a solda em um anel de prata, como erguer uma parede de azulejos – azulejar é complexo, dizia – a fazer um projeto de área de lazer com laguinho para peixinhos coloridos e concretizá-lo, literalmente. Era concreto em seus planos, em seus sonhos. Inclusive nas lutas, enquanto foi delegado sindical dos metalúrgicos, na FNM, no Rio. Depois, quando escrevia cartas e cartas a políticos do Rio e de Brasília, reivindicando o coletivo, quer fosse um orelhão para uma rua, quer fosse o recebimento correto para aposentados etc. Além disso, caminhava sempre com uma enxadinha de cabo curto e uma pazinha para consertar o mundo por aí (ou seria concertar o mundo?), as plantas nas ruas, as flores … fosse o que fosse. Era completamente desligado da aparência física. ”Corta pra mim, Doni, tem tesourinha pequena aqui, corta. Sua mãe tem mão pesada, corta’‘ – referindo-se aos pelinhos que lhe cresciam nas orelhas. E que eu cortava com a maior das delicadezas, quando chegava de São Paulo.
Sempre foi muito tímido com as mulheres. Dava-lhes um sorrisinho de soslaio, baixava os olhos, mas era tímido. O que tinha de desenvolto com as causas sociais e reivindicações nas ruas, dono das palavras, e solto, tinha a menos com as mulheres. Entretanto, a mineirice de ”gostar de mulher pra cachorro”, ah isso tinha, ora se não. Comprava balas sortidas a granel nas lojas, e nos ônibus que pegava, gostava de oferecer a moças bonitas. Minha mãe morria de ciúmes, mesmo depois de mais de 200 anos de casados, vivendo no Rio – como ele costumava dizer. ‘‘Essa velha morre de ciúme de mim. Trouxe pra você as balinhas, Duia !” E ela ‘‘Eu sei. Eu é que sei”.
Dona Itália não era tonta. Não caía naquela de ”vem cá meu bem, minha querida e tal ”. Era danada. Sabia que a estavam enganando, fosse em que situação fosse. E a pior coisa que existe é a gente ser enganado. Alguns fecham olhos, não se importam. Mas ser enganado, estar em uma situação, inocentemente, enquanto outros riem, debocham de sua credulidade, de sua ingenuidade é muito cruel. Claro, fica feio é para quem age assim, ensinava minha velha. Mas a sensação de ludibrio dói no corpo e, principalmente, no espírito.
Vai aqui um alô para os políticos que costumam ser useiros e vezeiros na arte de enganar.
A metrópole ardia em começo de férias. O trânsito caótico, a chuva fina. O sonho agitado na noite anterior era ainda enigmático para Sofia. Corria, corria, da estação em direção aos trilhos e não alcançava o trem.
Ela, o marido e a filha bebê fariam sua primeira viagem naquele trem noturno até a outra cidade. Era aniversário da mãe. Compraram passagens de ida e volta. Dormiriam na cabine de nº 28 na ida e na 31 na volta. Esperava, sonhadora, por aquela viagem. De tudo que namorara nos filmes de tela grande, era sonho a ser concretizado. Desses que se tem numa listinha e vai-se assinalando como num rol ”esse já foi”, e vai-se projetando outro e acrescendo mais outro. Viagem de trem, em cabine, com restaurante, com cama, hum, era um sonho na lista.
De tarde, arrumou valises, objetos da bebezinha, muitas coisas, presente para a mãe, e deixou que o marido, chegando do trabalho ao fim da tarde, fizesse o mesmo com as coisas dele. Atrasou-se um pouco com os técnicos que não conseguiam fazer uma máquina extrusora funcionar. Prejuízos para a indústria, pressão dos patrões, engenharia em tensão. Chegou. Arrumou suas coisas, arrumou-se.
Chamaram o táxi. No caminho até a estação mais tensão. Trânsito parado, caótico, chuva fina, começo de férias. Estação de trens, ao lado da estação rodoviária, centro da cidade. O suor escorria-lhe pela testa e descia até o seio que antevia a perda. A perda do trem. Significado antecipado no sonho-aviso. A bebezinha dormia, depois de ter mamado no mesmo seio que agora suava quase em lágrimas de nervosismo. O táxi não andava. O táxi não andava.
Teve vontade de descer com a filhinha e ir caminhando o trecho, não muito longo, que ainda faltava. Mas e as valises, o carrinho, o marido? E sua romântica viagem na cabine do trem com o homem amado? Estava tudo cinza, chovia, suava, sofria.
Chegaram. Corria pela estação com sua filhinha grudada no corpo, amarrada no canguru. O marido mais atrás com as valises, o carrinho. Foi ao guichê. Onde é o embarque?O trem já partiu. Como? Não podemos pegá-lo na próxima estação, vamos de carro e o pegamos lá. Não. Esse trem é direto, capital a capital, a senhora não leu as instruções?
Claro que Sofia havia lido. Era apenas uma tentativa de não perder seu sonho, de não deixar de viver aquilo por que tanto esperara. Voltaram em outro táxi, ela muda, a bebezinha dormindo e o marido repleto de culpa e de insatisfação. Argumentou uma coisa ou outra, o tempo chuvoso, o trânsito caótico, em num chiste ainda acrescentou Tá parecendo mineira que chega uma hora antes na estação e ainda perde o trem. Sofia riu um pouco, sem vontade.
No dia seguinte foi acordada pelo marido, Vamos acorde, o avião não vai esperar não, nem parar na próxima estação. Vamos que o aniversário da sua velha já é hoje. Sofia não acreditou naquilo que ouviu. Foi.
Na volta, chegou, mineiramente, bem antes à estação. Voltaram de trem, se amaram no trem. A bebezinha, uma santa. Jantaram no trem. Ouviram música no trem. Aquele sonho-aviso só mostrava a ida, não falava nada da volta. E Sofia voltou de trem.
A INCRÍVEL HISTÓRIA DAS VEIAS BAILARINAS
Reza a lenda que viviam num corpo feminino umas veias bailarinas. Uns as conheciam por dançarinas também. Ocorre que quando lhes queriam chupar até a última gota, escondiam-se. Não havia como encontrá-las. Simplesmente escondiam-se. Os profissionais do sexo masculino, apressados, gabavam-se de seu ofício, ”nenhuma veia me dá baile, é bailarina, né? vamos ver”. Era trabalho na certa, muitas tentativas, muitas perfurações, muita impaciência. E as veias resistindo.
Naquele corpo ninguém tocava gratuitamente. As mamografias, aqueles sanduíches, tostex de mamas, eram doídos, torturantes, invasores e violentos. As lágrimas lhe escorriam dos olhos como reação à tamanha violação de corpo. Corpo feminino exige mais. E só as profissionais femininas davam conta de tocar-lhe as mamas grandes, sem feri-las.
Naquela manhã, a jovem Yasmim, pressentindo sensibilidades, tomou-lhe dos braços as energias, analisou, passou neles o detector de veias, meticulosamente. Perfumada como jasmim, Yasmim iniciou as preliminares com as veias dançarinas. Tratou de acariciá-las, deu pequenos toques para energizá-las, trazê-las para serem vistas, para que atendessem as batidinhas na porta. Nada de atropelos, nada de correria, nada de pragmatismo de macho. Tudo delicadeza, tudo refinamento, nada de instinto animal. Seda, de seda eram suas mãos.
A importância das preliminares para corpos sensíveis é inegável. Atingiu seu objetivo, infiltrou-se pelo corpo feminino, entrou em sua pele, sugou seu néctar de sangue. Até a mais. Ao final, perguntou, com certa graça, ‘‘quer levar o que sobrou de recordação, num tubinho?”
Nunca fora tão simples, dar sangue para análise completa. Há uma gota de sangue em cada poema, escreveu Mário de Andrade.
QUEM NUNCA ?
Conheceu o ruivo e fugiu dele. Era uma cafa de marca. Convencia até freira a morder hóstia, digamos assim. Era mentiroso demais. Rei dos álibis, dos disfarces, das encrencas mal resolvidas. Era um donjuan canhestro, se achando a última bolacha do pacote, o rei da cocada preta. Mulher pra ele não fazia diferença, isto é, caía na rede era peixe. Preferia as que não haviam tido filhos, por motivos óbvios, dizia. A carne era mais macia, mais estreita, mais saborosa.
Conquistou, com disfarces, a moça do apartamento exatamente embaixo do dele. Rodeou, ela resistiu. Encenou, ela resistiu, fez a dança do acasalamento em serenata, ela resistiu. Valdete, a Dete, a Detinha, era dura, conhecia aquele tipo de homem. Se quisesse, entraria na jogada por desejo seu, mas que conhecia, conhecia. Era carioca folgadão, chegava com aquele papo de ”se tiver teia de aranha, a gente tira’‘, ‘‘vem se deleitar na macaxeira do zé aqui”, ”vem pra felicidade”. Papo cafa mesmo. E acontece que jogava ao mesmo tempo com várias. E, sem distinção, fosse quem fosse, indo ao seu encontro ” receberia dele a maior assistência’‘. Era aquele tipo de homem que, já desinteressado, costuma dizer ”Eu não te mereço, você vai encontrar alguém que te ame’‘ e que quando sabe que a mulher já está com outro, logo diz ”que bom pra ela, e assim vai parar de me perseguir”
A Dete foi na dele. Apaixonou-se. Ele já estava com a Val, uma outra, engatilhada, a ponto de bala. Ela não sabia. A Dete perdia pra Val em alguns quesitos. O zé gostoso deu de debochar de Dete, ironizar seu amor, suas buscas por ele. Algo assim como se fosse um dono de harém.” E quem nunca … teve uma apaixonada correndo atrás? ”, costumava comentar com outros, quando tinha plateia. Nunca teve irmã. Nunca teve sobrinhas. Mais tarde teve duas filhas.
CORAÇÃO TRAIÇOEIRO
Recordações espremem limão na pinga Companheiros ouvintes de peito encharcado Narram loucuras e entregas “Eu abandonei tudo por ela Saía da cidade, rodava mais de 500 quilômetros, mas um amor com uma estrada no meio tem seu valor, depois ela montava meu cavalo e galopava comigo por dias, sem tirar, sem reclamar só prazer”.
Como num jogral afinado, o outro desfia “Vivi perdido por meses no meio do mato, entre rio e mar, caminhadas de só nós, em pelos e mel, abandonei trabalho, família, cidade, mas valeu cada milhar de moedas deixado ali”.
Pinga e choro. Alguém traz um cavaquinho, um violão Bebem Comem Iguais
São iguais
CÍNTIA ERA ASSIM
– Eu? Homem nenhum faz de mim o que quiser. Vou lá, pego, mato e como, hahaha, duvida? – Mas parece que ele tá com a outra, todo mundo tá vendo, Cíntia. – Tá nada. Ganho fácil. Eu sei do que esse tipo de homem gosta. Ela não tem isso, não. Sabe a ” Jennifer” da música, então? Ganho, fico, não tem pra ela não. Porque os direitos são iguais. Homem e mulher, sexo, cerveja, cigarro, gargalhadas, quer melhor? Nenhum zé resiste, neguinha. – Vai se apaixonar pelo zé, hem? – Eu? É zé, igual a todos os outros da praia, da quadra, do samba, do forró. Entendo de homem e sei o que é bom. Eles precisam de mim e eu deles, o combinado não é caro, minha santa.
Cíntia sabia do que estava falando. Brincava bem. Jogava em várias posições e não cometia falta, nem cobrava … pênaltis. Fez tá feito. Gozava com gosto em campo. Era mulher gol. Valorizava sexo casual, sem relacionamento, sem namoro. Dizia que os caras pareciam gostar disso, mas que, na verdade, queriam era a caça. Amoleciam, bambeavam sem a caça.
Começou a ver que o zé pensava como ela. Pensava só ou agia também ?
Resultado: no atacado a casual, a free; no varejo, ah, no varejo cedeu.
Caiu de joelhos pelo zé. Não desgrudava mais dele, mensagens, viagens, aproximação cheia de artifícios e joguinhos. O pessoal do forró nem fechava muito com aquilo. E dizia pra ela. Mas estava cega. ”Quem me ama me aceita assim vida loka como sou. Se não gostar, pode ir embora”. Era assim a Cíntia.
MULHER, TEM MUITAS
O cavaquinho derrete as cordas os dois se embebem de seus merecimentos Nada de chorar por mulher “Mulher, tem muitas” Ouvem as notas agradecidas nos dedos do amigo de copo e bar “Mãos que sentem”, diz um “Mãos que machucam”, desabafa o outro.
Olham ao redor Duas mulheres batucam o choro chorado na mesa Duas mulheres cochicham suas dores e mágoas Um pote de mágoas de zumbis, cobras venenosas, julietas, medeias, jocastas Doem suas dores nos copos esvaziados outros copos outras vozes outras vezes