MARISSOL DE ALENCASTRO DANTAS A menina pequena cresceu entre varinhas feitas de gravetos, formigueiros e ninhos de passarinhos que quedavam das árvores. Entristecia à miúde e chorava uma dor incerta, coletiva. -Por que está chorando, Marissol? -Num sei, me deu uma vontade… Não tinha o mesmo sobrenome dos outros irmãos. Mas também isso nunca lhe importara, foi já adolescente que descobriu isso. Sentia, mas elaborava as dores, mastigava as dores, sublimava as dores. Do emocional ao físico foi questão de tempo. Se antes dava menor importância aos abalos sísmicos sofridos e passava a guardá-los em pequenas gavetas, agora fora criando uma película de proteção, um invólucro, que a isentava da dor. Nem percebia, mas ia se cristalizando nela, como fosse uma segunda pele. Teve 3 filhos de parto natural, sempre contendo as dores. -Grita, Marissol, toda mulher grita ao parir. Das quedas sofridas, sempre causou estranheza aos médicos por não gritar, reclamar, se doer. -Isso é bom, mas também é ruim – diziam. Na verdade, Marissol era forte, criara força, criara sua película de proteção.
CLEPSIDRA Tua água escorre sobre meu corpo Com as marcas de existir São marcas de pele, carne, ossos e dores. Meu corpo, que antes me entregaste belo e fresco, ora resulta ocre e rugoso. Meu tronco, que antes o fizeste rijo e aveludado, ora resulta sem o brilho vivaz das primeiras idades. Minha pele, antes rósea e fina, ora fazes dela um outro matiz e uma outra textura. Convivo com meu corpo Convivo com meus sentimentos Convivo com minhas marcas Há muitos anos. Sei o porquê de cada uma. Os outros é que não.
HOJE Hoje já é ontem quando ouvia de ti palavras envoltas em papel de seda. Hoje já é ontem quando bebia de teus lábios, insubstituíveis, um tom de vinho rosé. Hoje já é ontem quando aquela música francesa era carícia em meu pescoço. Hoje já é ontem quando te encontrar pelas madrugadas caladas era ensurdecedor. Hoje já é ontem quando não sou mais a mão arrojada a apertar teclas de telefone a te buscar. Hoje já é ontem porque não consigo mais ser menina como antes.
A insegurança de se saber amado é imemorial, rotineira, contínua, diacrônica, atemporal. Ensina-se que basta amar, mas o ser humano, instintivamente, quer ser amado também. E como faz bem ao corpo e ao espírito ser amado! O poeta Luís de Camões derramou de sua pena versos e estrofes que expeliam suas expectativas em relação ao Amor.
Tanto de meu estado me acho incerto
Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao Céu voando;
Nu~a hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar u~a hora.
Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.
Quando de minhas mágoas a comprida
Quando de minhas mágoas a comprida
Maginação os olhos me adormece,
Em sonhos aquela alma me aparece
Que pera mim foi sonho nesta vida.
Lá nu~a saudade, onde estendida
A vista pelo campo desfalece,
Corro pera ela; e ela então parece
Que mais de mim se alonga, compelida.
Brado: -- Não me fujais, sombra benina! --
Ela, os olhos em mim c'um brando pejo,
Como quem diz que já não pode ser,
Torna a fugir-me; e eu gritando: -- Dina...
Antes que diga: -- mene, acordo, e vejo
Que nem um breve engano posso ter.
Amor, que o gesto humano na alma escreve
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.
A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.
Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.
Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permitirem que eu tanto viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;
E se o tempo, que tudo desbarata
Secar as frescas rosas sem colhê-las,
Mostrando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em bela prata;
Vereis, Senhora, então também mudado
O pensamento e aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.
Suspirareis então pelo passado,
Em tempo quando executar-se possa
Em vosso arrepender minha vingança.
AMOR EM TEMPOS E FASES O Amor que dá a mão e ensina a caminhar, o Amor que brinca de esconde-e-aparece, trazendo risos a boquinhas ainda desdentadas, o Amor que sustenta pequeninos corpos sobre duas rodas, o Amor que acompanha descobertas e descobre junto o viver, o Amor que suscita calor no peito a um mero olhar, o Amor que acende as bochechas a um simples toque, o Amor que sabe interpretar a respiração, o olhar, o jeito enigmático das sobrancelhas… O Amor que tira a febre, o Amor que mede a pressão, o Amor que faz curativos nos machucados externos e internos, o Amor que engorda junto, que envelhece junto, que sabe quem é o ser amado. O Amor que conhece gostos, predileções, prazeres do ser amado. O Amor que é leito macio para se descansar o espírito, quando o corpo não está mais ali. O Amor transcende entendimentos.
MORADAS REFÚGIO Avisto um paraíso refúgio de anos sossego de buscas oásis de penúrias. Posso me adonar de ti? Posso me embeber de ti? Posso me entregar a ti? Adentrando cômodo a cômodo, meus olhos desfrutam de ti encanto-me com tuas paredes, com teu chão de histórias. Eu, uma Helena de Troia mineira, raptada por ti. Regozijo de perfumes Regozijo de lirismos Regozijo de paisagens Regozijo de melodias De onde conheço essa moradia abandonada ? Estive aqui antes?
SARAU Olha o moço moreno de sorriso e covinhas Adivinha-lhe a pele rude de matuto Saboreia seu olhar de olhos fechados Antevê um braço forte enlaçando-a Rodopia com ele no chão de barro Pés difíceis de deslizar Corpo morada leve em braços fortes Saia de flor, blusa de algodão e colete de crochê Sai música, entra música O par constante O enlevo constante O ardor constante. Laços apertados de dois.
PAIXÃO BREJEIRA Helena espera o dia inteiro Helena quer ver o moreno dengoso de pele bronzeada Helena lava cabelos, mãos, pés com as folhinhas da lavanda do jardim.. Helena é botão, é broto, é semente. Helena espera a noite chegar. O moreno chega antes e traz viola. Helena não adivinhava que o moreno a encantaria com uma viola. Helena ouve da cozinha a conversa do moreno com seus irmãos. Helena enxuga as vasilhas e esconde no guarda-comida sua espera. Helena sente um cheiro diferente daquele dos irmãos. Helena bebe prazer, devagarinho, numa canequinha verde de café. Helena olha as árvores do quintal e cruza olhares com o moreno. O moreno toca a viola.
Sempre guardei o sonho de viver em um lugar pequeno, com frutas que virassem doces no fogão de lenha, com verduras e hortaliças no quintal. Por quê? Porque fui criada assim em Xerém, com um terreno enorme no fundo do quintal, quase uma chácara, onde meu pai plantava de tudo um pouco, além de criar galinhas, patos e até uma cabra e seu cabritinho, o leite de cabra fazia bem à sua saúde, sempre tossindo, com asma e bronquite – mesmo sem nunca haver fumado.
Muitos pés de goiabas, nos quais eu vivia escondida até os 12, 13 anos, láááá em cima. Pés de laranjas de várias qualidades e mais de 100 pés de bananas, todas prata. Meus pais diziam que valiam ouro. Antes de dormir, minha mãe batia vários copos de liquidificador com uma deliciosa vitamina gelada de bananas e distribuía a todos. Às vezes variava e fazia um toddy gelado também. Vários e vários copos antes de dormirmos. Já tomou o leite, Doni? Vem tomar.
Quando vinha pra Barbacena, minhas avós me enchiam de graças, pois sabiam que sempre adorei doces, o de leite em barra então, que se vai cortando as fatias com a faca e comendo, e conversando na mesa da cozinha e ouvindo causos. Uma delícia mesmo.
Quando íamos fazer novenas em casas de madrinhas, eu e minha tia Ziza, sempre nos aguardava uma quitanda depois da reza. Lembro pouco da reza, mas dos doces no guarda-comida das casas … ai que delícia. Era como se Nossa Senhora agradecesse as orações oferecendo doces. Mas quem dá doces não são Cosme e Damião? Acho que são da mesma linha – a dos doces. E eu, 10, 11 anos, adorava.
De forma que eu adoro fazer doces. Cozinhar de maneira geral. Mas os doces me adoçam sonhos e recordações.
Minha avó paterna faleceu quando eu tinha 7 anos, mas todas as vezes em que eu vinha pra Barbacena, me adocicava demais. Era uma mulherzinha baixinha, magrinha, mãe de muitos filhos homens e apenas de uma mulher. Nasceu em 1897 e lavava os pés do marido e dos filhos adultos quando chegavam do trabalho. Tenho essa imagem dela, como a cerimônia católica do Lavapés. E os enxugava, dando os chinelos a eles. Forte imagem. Minha avó Jovem – Jovercina Inácia – corria na hora da nossa partida de ônibus pro Rio e me entregava pela janela, os docinhos de leite, cortadinhos em losangos, em uma latinha. Fiz procê, Doni. Ah, que imagem linda !
Enquanto cozinho vou ouvindo músicas; pra esse doce de goiaba, por exemplo, foram essas.
Assim, hoje, estou aqui na cidade onde minhas recordações dormem e acordam e faço eu os doces. E me sinto muito bem podendo fazer doces.
SEMEAR Entrego à terra todas as minhas sementes de flores frutos e dores. Aguardo os tempos recolho as ervas daninhas rego galhos novos e folhas adubo de lágrimas e risos a terra-mãe. Aguardo tempos aguardo luas aguardo estações aguardo anos. Tempo, anjo algoz de minhas esperas.
COLHER Deu-se a polinização Encantou-se a terra com a água o ar trouxe o beija-flor depois o bem-te-vi depois a cotovia. romeus e julietas dos espíritos acudiram afrodites cupidos anjos e delírios bacos e dionisos arlequins, colombinas, pierrôs otelos e desdêmonas socorreram aspergindo pólens e pólens e pólens. De esperas gritos e contemplações de gineceus e androceus, Tempo, suserano vassalo.
Idosos não são seres descartáveis; idosos guardam sabedorias, vivências e história, sobretudo na história de todas as gentes. Idosos são o patrimônio de toda uma civilização. E ainda estão vivos, quando mortos estiverem, deverão ser lembrados por sua trajetória em vida e seu legado em seu tempo.
Sempre me atraíram, me fisgaram mesmo, homens sensíveis, sábios, ligados à arte. Fossem poetas, artistas plásticos, fotógrafos, romancistas… e homens com desenhos de bons pais na pele, às vezes apenas no rascunho ainda, mas com um potencial enorme a ser descoberto. Assim, mostrou-se artista… encantou-me. Nas mais diversas camadas. Amor físico… só mesmo rindo junto, acarinhando braços, beijando a boca… enfim homens relevantes em forma e conteúdo.
Ontem, li essa linda página no Blog do Estevam Matiazzi, que me fez imediatamente imaginar um filme. Porém, sem mão, nem perna, a imaginei em enquadramentos, luz, trilha e viajei pelos céus que amo tanto. Lindo pai, linda filha Sofia, muito obrigada.
A SABEDORIA de SOFIA! (Estrelas e Planetas)
_ Pai, nunca tinha visto aquela estrela grandona!
Qual estrela, filha?
_ Aquela ali, pai… (ali, é coisa de mineiro, rsrsrrsrs!).
Não é uma estrela filha, é um planeta!
_ Como você sabe que é planeta?
Pelo brilho fixo!
_ Uai, como assim? (uai, também é coisa de mineiro, rsrsrrsrs!).
Veja com atenção. Compare o brilho dele com a daquela estrela mais próxima. Viu a diferença?
_ Não!
Observe bem. A estrela está piscando, ou cintilando, como dizem os astrônomos. Já o planeta não pisca. O brilho dele é fixo.
_ Pai!
Oi.
_ O que é astrônomo?
São os cientistas que estudam os astros, ou seja, as estrelas, os planetas, os cometas…
_ Cê sabe qual é aquele planeta?
Rsrsrsrsrs… Vamos ver quais estão visíveis em janeiro?
_ Onde?
No google, rsrsrsrsrs…
_ Achou?
Sim! Olha, pelo que está escrito aqui, aquele planeta é Mercúrio e ali do outro lado, está Marte… Conseguiu perceber que eles não estão piscando?
_ Ummmmm… Mais ou menos! Pai, quantos planetas a gente consegue ver no céu?
Você diz, a alho nu?
_ Sim!
Acho que são uns 4. Vamos ver aqui… São 5, filha: Mercúrio, Marte, Vênus, Saturno e Júpiter.
_ Uai, como a gente sabe qual é cada um deles?
Pela posição em que cada um se encontra, dependendo do período do ano, já que eles giram como a terra, em torno do sol.
_ Pai, dá para saber qual estrela é o Vô Nilson e o Vô Zino?
Filha, já lhe disse que não. São milhões de estrelas, então fica difícil…
_ Pai, a gente também pode virar planeta, quando morre?
Que eu saiba não, filha! Desde criança pequena em Barbacena, aprendi que viramos estrelas!
_ Ãnnnnnn… Pai, já tá na hora do jantar…
Então vamos lá e me lembra de lhe mostrar as Três Marias quando a gente voltar…
_ Três Marias!!!
Sim. São três estrelas que ficam muito próximas e parecem ter o mesmo tamanho…
_ Elas são mulheres que morreram?
Deve ser filha, por isso, têm este nome… Vamos jantar, vamos!