Intertextualidades afetivas

INTERTEXTUALIDADES DE MÃOS QUE SENTEM
Durante mais de 10 anos, recebia revistas que minha filha me levava, publicitária que era, nas quais depositava meus sonhos. Olhava por horas e horas aquelas revistas, as ideias que traziam, as belezas que expunham, particularmente as coloniais, as costuras, os reaproveitamentos de materiais, os garimpos de objetos, a ressignificação de objetos… Assim, fui aprendendo a costurar meus sonhos, aos poucos, com o que já possuía e a edificar o que queria. Fiz muito daquilo que aprendi nas revistas (Meu irmão Odecio costumava dizer, já em SP, que minha casa era uma galeria). Hoje, sento-me no chão com as mesmas revistas nas mãos, olho ao meu redor, e constato que já realizei muito do que aprendi com aquelas revistas todas. E com um mérito maior: com as minhas mãos, com mãos que sentem.

intertextualidade é a presença textual de elementos semânticos e/ou formais que se referem a outros textos produzidos anteriormente. Ela pode se manifestar de modo explícito, permitindo que o leitor identifique a presença de outros textos, ou de modo implícito, sendo identificada somente por quem já conhece a referência.

Por meio dessa relação entre diferentes textos, a intertextualidade permite uma ampliação do sentido, na medida em que cria novas possibilidades e desloca sentidos. Desse modo, ela pode ser utilizada para melhorar uma explicação, apresentar uma crítica, propor uma nova perspectiva, produzir humor etc.

Intertextualidade explícita

modalidade explícita é aquela em que fica claro para o leitor a referência que o autor está utilizando em seu texto.

Um exemplo são as citações, que, em geral, são marcadas pelas aspas. Dessa forma, estabelece-se uma relação direta e nítida com o texto-fonte.

As principais característica dessa categoria são:

  • Fácil identificação da intertextualidade por parte do leitor;
  • Não necessidade de conhecimento prévio;
  • Relação direta com o texto original.

Intertextualidade implícita

Em contrapartida, a modalidade implícita é mais sutil. Ela envolve uma referência indireta ao texto-fonte, o que exige do leitor uma bagagem cultural maior para compreender a relação entre os textos.

EXERCÍCIOS DE CRIAÇÃO DE TEXTO: Para quem deseja ampliar, diversificar a sua produção de textos – inclusive os poéticos – é interessante fazer exercícios de escrita; sabe aquelas séries da academia para exercitar os músculos? Então, algo similar, mas com o cérebro, com a emoção, com a degustação das palavras. Durante muitos anos em salas de aulas, motivei meus alunos a escreverem, a exercitarem com certa regularidade as mais diversas formas de intertextualidades. Quanto mais se escreve, mais se amplia a diversificação de formas e conteúdos, sem contar que para haver intertextualidade há que haver leituras, bagagem cultural anterior etc. É uma ótima forma de ”novos escritores” se encantarem com suas produções. Existem pelo menos 10 tipos de intertextualidades: citação, paráfrase, alusão, tradução, bricolagem, epígrafe, paródia, pastiche, crossover, hipertexto. Leia mais sobre Intertextualidade em: clubedoportugues.com.br/intertextualidade/

Aqui no blog há muitos exemplos de intertextualidades, produtos de meus exercícios de leituras e escritas. entre eles ‘‘As flores e a náusea”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/09/26/as-flores-e-a-nausea/“Exílios”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/05/15/exilios/

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Aracy de Almeida – Tema

2- Canal Biscoito Fino

Razões das orquídeas

ORQUÍDEAS NATIVAS
flores
poemas seminais
imagens naturais
espalhados aos ventos
crianças
sem pecado original
belas
puras
verdadeiras
brejeiras
parceiras
imagens
versos
crianças
espalhadas pelos ares, pelos mares,
pelos rios, pelos lagos
flores coloridas
almas coloridas
paisagens inesquecíveis.

Orquídeas nativas II

Voltando da caminhada com a cachorra Luna, encontrei umas florezinhas do campo mais que lindas – porque tudo aqui é primavera agora – vinha recordando minha mãe.

Acho que todos aí me lendo agora terão histórias parecidas, portanto nada de tão especial nesse relato. Mas Dona Itália era uma conhecedora de orquídeas, cuidava delas, tirava mudas, reproduzi-as, com a ajuda de meu pai, e saía dando de presente.

Aos domingos, após ter “arrumado a cozinha”, passava mão numas ferramentas e saía pro mato, às vezes, matas fechadas lá na nossa região de Petrópolis e proximidades, a pegar mudinhas de orquídeas. Tinha absurdo cuidado ao fazê-lo para que não prejudicasse a planta nativa etc.

Eu, menina, certas vezes a acompanhava, porém achava aquilo cansativo, ficar esperando minha mãe delicadamente recompor a planta, ver se não havia machucado nada nela etc. fazia isso e ia conversando com as plantas.

Eu, tonta de tudo, achava aquilo um desperdício de tempo e conversa. Mal sabia eu.
” E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.”

(Drummond, Infância)

Texto publicado originalmente em outubro de 2015, no GGN)

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: minhas orquídeas em diversas florações

Vídeo: Canal Renato Braz – Tema

As maritacas, João e eu

Nas páginas da vida, posto literatura no Facebook. Posto para amigos de vários sertões e querências distantes. Quase todos me conhecem, conviveram comigo, têm afinidades pedagógicas, literárias, sociais. Trata-se mais ou menos de um correio-elegante o meu Facebook. Vou aceitando apenas quem sabe beber lirismo e gosta de proseios, de flores, de versos e jardins. Ali a gente se dá bom dia, boa noite, assim como numa vila, sabe como é? É. A amiga Heloísa ao ler esse banner acima logo me lembrou do conto, longo, A hora e a vez de Augusto Matraga, com o qual estava trabalhando naquele instante. Adorei a contribuição. Fui reler no meu livro e beber mais de Guimarães Rosa. E aí é que entram as maritacas. Vai escutando – como dizia a minha mãe. Todas as manhãs, elas brincam de pique aqui, logo cedo, lá pelas 6 e meia da manhã. É uma gritaria enorme. Fico observando sua brincadeira, depois somem. No final da tarde, lá pelas 5 horas, elas voltam a brincar por aqui. Nunca consegui sequer fotografá-las, tamanha a velocidade em que surgem e desaparecem. Fico refletindo por quê. Talvez queiram me fazer estar sempre ali a esperá-las, livres, alegres, lépidas, fotografando-as com meus olhos, apenas fixando sua imagem em mim, nas cores que possuem. Eu gosto assim.

Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já tem milho nas roças… Mas, também, como é que podia haver um de-manhã mesmo bonito, sem as maitacas?!…” (A hora e vez de Augusto MatragaSagarana, p. 324, 18ª edição, RJ, José Olympio,1976)

[…]
-Não faz assim, seu moço, não desespera. Reza, que Deus endireita tudo… P’ra tudo Deus dá o jeito!
E a preta acendeu a candeia, e trouxe uma estampa de Nossa Senhora do Rosário, e o terço. Agora, parado o pranto, a tristeza tomou conta de Nhô Augusto. Uma tristeza mansa, com muita saudade da mulher e da filha, e com um dó imenso de si mesmo. Tudo perdido! O resto, ainda podia… Mas, ter uma filha direito, outra vez, nunca. Nem a filha… Para sempre… E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo distante. E ele teve uma vontade virgem, uma precisão de contar a sua desgraça, de repassar as misérias de sua vida. Mas mordeu a fala e não desabafou. Também não rezou. Porém a luzinha de candeia era o pavio, a tremer, com brilhos bonitos no poço de azeite, contando histórias da infância de Nhô Augusto, histórias mal lembradas, mas todas de bom e bonito final. Fechou os olhos. Suas mãos, uma na outra, estavam frias. Deu-se ao cansaço. Dormiu. E desse modo ele se doeu no enxergão, muitos meses, porque os ossos tomavam tempo para se ajuntar, e a fratura exposta criara bicheira. Mas os pretos cuidavam muito dele, não arrefecendo na dedicação
-Se eu pudesse ao menos ter absolvição dos meus pecados!… Então eles trouxeram, uma noite, muito à escondida, o padre, que o confessou e conversou com ele, muito tempo, dando-lhe conselhos que o faziam chorar.
-Mas será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?!
-Tem meu filho, Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependimento nenhum…
E por aí a fora foi, com um sermão comprido, que acabou depondo o doente num desvencido torpor.
-Eu acho boa essa ideia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira da algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito!
-Fé eu tenho, fé eu peço, Padre…
-Você nunca trabalhou, não é? Pois, agora, por diante, cada dia de Deus você deve trabalhar por três, e ajudar os outros, sempre que puder. Modere esse mau gênio: faça de conta que ele é um poldro bravo, e que você é mais mandante do que ele… Peça a Deus assim, com esta jaculatória: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso…”
E, páginas adiante, o padre se portou ainda mais excelentemente, porque era mesmo uma brava criatura. Tanto assim, que, na despedida, insistiu:
-Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa. E você ainda pode ter muito pedaço bom de alegria… Cada um tem a sua hora e a sua ve
z: você há de ter a sua.” […] (p.338 e 339)

Leia aqui no blog, sobre G. Rosa, também: ” A colheita é comum mas o capinar é sozinho”- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2016/12/29/a-colheita-e-comum-mas-o-capinar-e-sozinho-g-rosa/“Minas Gerais é muitas. São pelo menos várias Minas” -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/05/28/minas-gerais-e-muitas-sao-pelo-menos-varias-minas/ ”Na terceira margem do rio a de dentro”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/08/02/na-terceira-margem-do-rio-a-de-dentro/ “Grandes sertões: no nada”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/07/07/grandes-sertoes-no-nada/“Guimarães Rosa: mire e veja” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/01/21/guimaraes-rosa-mire-e-veja/“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/01/21/guimaraes-rosa-mire-e-veja/“O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo demais”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/01/21/guimaraes-rosa-mire-e-veja/“Bordando Rosa” -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/06/01/bordando-rosa/ – ”Guimarães Rosa, o médico no escritor”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/12/06/guimaraes-rosa-o-medico-no-escritor/- “João e Antônio”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/06/28/joao-e-antonio/

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Video: Canal Sâmella Almeida

As partilhas

O DOCE PRAZER DAS PARTILHAS
planto flor
planto árvore
planto prazer
não sabia plantar
aprendi
não sabia o manejo
aprendi
não sabia quando colher
aprendi
não sabia o quê e como
compartilhar
aprendi
hoje envolvo abacates em caixas de alegrias
entrego mamões e abóboras a doces vizinhos
compartilho, reparto, distribuo,
hoje recebo limões cravo
que também são rosa
hoje reparto rosas, lavandas
hoje recebo vandas, orquídeas
semear, aguardar, colher
repartir, trocar
amorosidades
carícias
afagos
seres vivos
seres humanos

VIZINHOS

Cheiro de taioba talhada
Refogada com alho pilado.
Angu molinho
Fubá banco, amarelo
Couve picada fininha
Feijão fresquinho
Quiabo com galinha
Doce de leite ambrosia e queijo fresco molhado

Desejos
Sabores senhores
Vassalagem amorosa de corpos e peles de Minas.
Num vento brejeiro,
com uma lua amante de estrelas,
um gozo de céu e terra,
um grito de entrega e refrega,
ao som de vozes fantasmas mineiras,

Drummond, Drummond , Drummond, Drummond,
me carrega que sou tua.

HUMANO

caminha
encontra, atende, ampara, acolhe
reparte, acarinha, ouve
socorre, ensina, auxilia
doa-se, pertence, assemelha-se
sofre, chora, cura
alegra, ri, cura-se
bebe em comunhão
come em comunhão
ama em comunhão

ser comum
ser coletivo
ser humano

CUIDAR

Passei duas horas dando banho na Luna. Cuidando de seus pelos pretos e sedosos, acarinhando sua pele, massageando seu dorso, enxaguando suas sujidades, secando cada patinha, cada vértebra, orelhas e ouvidos.

Vê-la totalmente relaxada, quase dormindo, me faz lembrar do que significa cuidar. Um prazer.

Talvez a leitura de O Pequeno Príncipe aos dez anos tenha forjado em mim esse lema, estratagema, anátema talvez- dependendo do ponto de vista que se tenha- “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Sem explicação, cativadores e cativados se encontram.

Olho meu quintal no intuito de fazer certa assepsia nele. Aquelas plantinhas são pragas , preciso evitá-las por aqui,  vou semear outras e outras … Mas quando olho também suas flores azuis, quase um roxo claro que me abrem um sorriso, cuido delas. Que importa que pareçam ser ervas daninhas e tenham aparecido no meu quintal, sem eu desejá-las ou semeá-las? Já estão ali. Deixo-as crescer então. 

Certa vez naquele vaso da Helô – minha queridíssima amiga de SP -, semeadas de forma quase inconsequente por ela, umas ameixeiras cresceram e deram tantas ameixas que foi preciso distribuir aos amigos. Eu bem comi algumas. Cuidar e deixar crescer !

Agora subo um pouco mais porque, embora eu os tenha podado, os galhos intrometidos do quintal do vizinho, resistiram  e – vejam só- se impõem, floridos de um amarelo em cachos, que só certa cegueira poderia negar sua beleza.  Não adiantou nada, nada, ter tentado impedir-lhes a entrada por cima do meu muro. Impuseram-se, como se quisessem me obrigar a conhecer aquele prazer. Até então desconhecido, talvez. Não sabia que floresceriam dessa maneira.

A natureza tem uma força estranha, e que nem sempre consigo entender, compreender, analisar. Apenas sinto, então. 

Os dois pés de mexerica estão muito mais frutíferos que no ano passado, num reflexo de subjetividades que também desconheço a razão. Fico olhando as frutas, tentando avaliar se já estão no ponto de serem colhidas. Arrisco. Colho umas. Azedas. Chupo-as assim mesmo, que se as tirei dos galhos tendo que responder por isso.

Outras, vejo-as já caídas no chão, como se dissessem não deu conta de que já estavam prontas pra serem apanhadas? Colho-as, então, e chupo-as, gomo a gomo, que sou responsável por elas.

Antes havia limpado o terreno, adubara os dois pés, os molhara no período sem chuvas e acompanhava  agora o crescimento dos frutos em tamanho, cor, maciez da casca … Entretanto, ainda tem sido difícil acertar o momento de colher os frutos. Creio que precise cuidar ainda mais. E esperar.

Luna, companheira fiel, nas caminhadas, nos silêncios das meditações pelo bairro, na audição das músicas- que quando mais altas, levanta as orelhas e procura saber de onde vêm e talvez por que razão também… está sempre aqui em seu posto de proteção.  Aprendeu a ser bem mais dócil que sua dona, que ainda arde como pimenta in natura.

Cuidar demanda tempo. Cuidar demanda ansiedade baixa e sobretudo prazer. Todos os prazeres na confecção, na arrumação, na degustação, na avaliação.

Comparo o cuidar de hoje ao cuidar em São Paulo… analiso minha casa e meu lar também.

Cuidar faz os humanos ( e nem só eles são cuidadores) mais civilizados, mais humanos com o sofrer do outro, com o  compartilhar, com o doar-se.

Cuidar é sempre um caminho longo, acredito.

A natureza tem ensinado. Pelo menos por aqui.

 Texto publicado originalmente no GGN, em  abril de 2015

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Chico Buarque – Tema

As flores e a náusea

NO MEIO DO CAMINHO DRUMMOND ME ATIRA FLORES
Ando devagar porque já tive pressa, muita pressa, tinha afazeres com horas marcadas, compromissos a cumprir. Com o tempo, o meu tempo, fui seguindo um relógio de corda e de vez em quando deixo de dar corda nele.
Ando devagar porque já tive pressa e caí. Na infância, a tíbia, o calcanhar e o perônio. Na idade madura, um joelho quebrado, anos depois 5 costelas quebradas e meses atrás um ombro fraturado em 4 lugares. “Gato escaldado sente medo de água fria” – diriam minha mãe e minha avó … Tenho medo de caminhar, tenho receio de dobrar o pé de novo, de me desequilibrar e sofrer nova queda, ter que permanecer imobilizada etc. ”Sei que a ‘senhora’ gosta de ser autônoma, mas também tem que ter em mente as limitações que a idade impõe…”– diria meu filho.
Assim, com náuseas diárias pela situação política, social e sanitária do meu país, saio de casa devagar (porque já tive pressa) e vejo na minha frente um colorido na guia, entre o asfalto e a calçada. Penso ser papel de bala atirado ao chão. Olho mais de perto, devagar porque tenho receio de mais uma queda… são flores. As flores de Drummond vêm me colorir e me tirar o medo de caminhar… para isso se estendem em frente ao meu portão.
Fico estática, adivinhando como foi que os passarinhos semearam ali aquela proeza. Sim, porque tenho delas na minha sacada, não são flores que nascem ao léu, ou marias-sem-vergonha de qualquer sarjeta. Foram semeadas ali. E não por acaso. Reflito que é para eu NÃO ter medo das calçadas e seguir em frente.
E como as flores estão sempre a me ensinar, faço, literalmente, a lição de casa, retorno com pazinha, água, as recolho e as replanto em vasos no jardim.
A Flor e a Náusea de Drummond se atirava, assim, em meu caminho.

A Flor e a Náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais e soletram o mundo, sabendo que o perdem Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Por fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto
Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros. É feia.
Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico. É feia.
Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
(Carlos Drummond de Andrade)

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Maria Bethânia- Tema

Paulo Freire, além das frases das redes sociais

Os equívocos ou até mesmo as maledicências e inverdades atribuídas a um possível Paulo Freire, comunista, advém da falta de CONHECIMENTO SOBRE SUAS REFLEXÕES E SUA PRÁTICA REAL. Ele era cristão, humanista. Conhecer Paulo Freire além das frases soltas, descontextualizadas e sem vontade de aprender demonstram ignorância, de todos os tipos. Ouça e veja Paulo Freire falando, esclarecendo, exemplificando. Esse material, no meu ponto de vista, é o melhor para fazermos isso. Claro que também lendo suas obras.

‘Paulo Freire, um Homem do Mundo” Dividida em cinco episódios, a série dirigida por Cristiano Burlan para a SescTV buscou registrar o legado do pensamento e da obra de Freire para o processo de educação. Mistura depoimentos de familiares, colegas e amigos próximos.

O primeiro episódio, A Formação do Pensamento, fala sobre a família e os primeiros anos de vida no Recife e em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco.

No segundo episódio, As 40 horas de Angicos, revisita a cidade potiguar que serviu de laboratório para o método freiriano de alfabetização.

Em O Exílio, o terceiro episódio, a vivência de Paulo Freire no exterior na década de 1970, com especial ênfase para a cidade suíça de Genebra (O Consulado Geral da Suíça em São Paulo é copatrocinador da obra).

O quarto episódio da obra de Furlan, Do Pátio do Colégio à Pedagogia do Oprimido, aborda a volta de Freire ao Brasil, para trabalhar como secretário de educação de Luíza Erundina, a primeira gestão petista no município de São Paulo.

Finalmente, o quinto episódio O Mundo não é, Está Sendo, a relação entre educação e arte, com depoimentos de Chico César e do próprio Freire.”

O mais emocionante. Emocione-se também
Educadores franceses/suíços comparam a pedagogia de Paulo Freire à de Sócrates. P. Freire explica como agia com os analfabetos.

Leia aqui no blog: “Lendo a mão de Paulo Freire” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/09/17/lendo-a-mao-de-paulo-freire/

Vídeos: Canal Sindicato dos Professores no DF Sinpro DF

Trilhas

Trilhas, veredas, rotas, caminhos estão sempre escorrendo à nossa frente. Ir por aqui, por ali, por acolá é desafio a se enfrentar, é risco a se correr, é mote a se desenvolver. A vida é cheia de trilhas e labirintos. Segui-las, descobri-las, desnudá-las é tarefa para sempre. Contemplá-las, porém, é tarefa de quase nunca.

TRILHAS

Obstáculo à frente.

Transpor.

Pedregulho.

– Vem, vem, me segue , me dá a mão. Vem.

– Estou com medo. Não.

– Não, vem; me segue aqui, cuidado.

trilha, chão, folha, pedra

Cansaço.

– Não vou conseguir.

– Vai sim, só mais um pouco. Eu ajudo, vem.

trilha, chão, folha, pedra

Viagem de dentro pra fora.

Dorso de almas

Canto de terra, água e pedra.

Promessa do prazer ao final.

Vem, mais um pouco, me segue.

– Sigo, me dá a mão.

Viagem de fora pra dentro

Conquistas, dificuldades, tropeços.

Encantamento.

Maravilhamento estético.

Natureza, artista de pinceis finos

Natureza, artista de melodias doces

Natureza, artista de lírica celestial.

Contemplação.

Entrega.

Silêncios internos.

Orquestra sob a batuta

De um regente maior.

Contemplação.

PEGADAS

São pegadas essas que deixo aqui

São pegadas as que deixas aí

São incursões de ti em mim

São passos molhados

pelas águas

pelas lágrimas

pela paixão.

Pegadas é só o que se deixa

na natureza, então.

TRILHAS SONORAS

Quando a gente só tinha o rádio pra ouvir músicas, quando a gente só tinha o toca-discos pra ouvir músicas, quando a gente só tinha um radinho de pilhas pra ouvir músicas, quando a gente só tinha um micro system pra ouvir música, quando a gente só tinha o toca-fitas pra ouvir músicas, quando a gente só tinha o walkman pra ouvir músicas … quando a gente passou a ser totalmente contemporâneo ao vertiginoso mercado da tecnologia e aderiu às playlists, aos pendrives, aos cartuchos de memória, às músicas na nuvem … a gente tem sido mais feliz? As trilhas sonoras de nossas vidas têm caminhado conosco, dançado conosco, trabalhado conosco, feito amor conosco? A obsolescência tecnológica programada tem impedido a degenerescência humana? Ou uma vem fazendo trilha sonora para a outra?

DIGITAIS

Meu corpo tem suas digitais

Duvida?

Tem

Tem nele suas cores, dores e flores

Rimas pobres

Meu corpo tem suas digitais

Duvida?

Tem

Sua lírica vizinha de confundido poeta vagabundo

Plágios sem limites

Meu corpo tem suas digitais

Ainda?

Duvida?

Tem

As estradas cantantes, borbulhantes,

Companheira, passageira, errante

Rimas pobres

Meu corpo tem suas digitais

Duvida?

Tem

Lêmures vagueiam por sobre, por entre

Sempre

Acostamentos, impedimentos, atropelamentos

Rimas pobres

Meu corpo tem suas digitais

Duvida?

Tem

CONVERSAS COM ESTRELAS
Só, somente assim ser.
Acalanto de sossegos ninando aspirações.
Respostas ternas para enigmas ocultados.
Confissões em cantos únicos
súplicas, apelos, inquietações.
Aquiescendo dores inconfessáveis
segredos indizíveis
amores inexplicáveis.
Oráculos de almas em conflito.
Estrelas,
dos mistérios
à luz.

CHANCE
De carne osso e pulso.
Chance.
De pouca fala, poucos ditos, pouco lirismo
De muito ritmo, muita ação, muita força.
Arrebatou-a com atitude.
Sequestrou-a com veracidades.
Raptou-a com fragrâncias no colo.
– Vamos pra Cuba?!
Pés que reconhecem pés,
por décadas,
mesmos poeirais de antanhos, mesmos,
mesmas raízes nas flores de seus jardins
mesmas brejeirices de meninices
mesmos olhos claros em um
mesmas pernas em outra
fetiches-lembranças
na estrada.
– Vamos pra Cuba!

DA ESTRELA
Noite escura,
opacidade imensidão esperas
diáfanos ventos brisas sopram sonatas
O sono impele ao sonho contumaz.
Impacto,
brilho luz cor movimento
suaves alimentos sopram lirismo
O sonho seduz ao lume da estrela.
De tantas ali ora expostas
Só ela incita àquela descoberta fugaz.

“IN VINO, VERITAS”
Que Dioniso
chame Baco
refestelem-se num sofá
fazendo amor
com os carinhos
todos da embriaguez
de vida
PRAZER
Prazeres
degustando
os mistérios gozosos todos
inebriantes
ansiados
perseguidos
por muitos.
Pouco alcançados.
Gozo
Intenção
Ação.
Água
Mato
Ondas eternas
reconhecidas
Eternas ondas.
In vino, veritas?
Verás.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Dudu Falcão – Tema

Na estação por anos e anos

CENAS DA VIDA
Na película
na tela
o olhar, a cor da pele
o olhar, a cor dos pelos
o som dos trilhos
o tom da voz
o toque
a atenção
o carinho
o olhar do igual
o igual no olhar
o afeto e a companhia
o ser incomum
o ser particular
a ternura e a admiração
a atração pelos trilhos
a valorização da voz
a valorização do cenário
o enquadramento da luz
o som dos trilhos
a espera
o encontro
o afago
na estação
para sempre

Leia aqui no blog muitas histórias e poesias na categoria “Trens”- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/trens/

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Alera Cat

“É primavera, te amo …”

DIAS DE PRIMAVERAS
Desde muito cedo aprendi a cantar, no curso Primário, a canção ”Quem planta uma árvore enriquece, a terra-mãe, generosa e boa, a terra aos homens agradece, a mãe aos filhos abençoa. Crescei, crescei pelos caminhos, árvores belas, maternais, dando morada aos passarinhos, dando alimento aos animais”. Era um período em que observávamos mais a natureza, os pássaros namorando, em serenatas enamoradas, as flores se abrindo, o perfume das rosas, das damas-da-noite, ficávamos encantados com as cores da primavera, aprendíamos a fazer e a plantar mudinhas.
Os ciclos eram sentidos com os 5 sentidos, além da aprendizagem da sensibilidade. Desde cedo, portanto, aprendi a fazer distinção entre os seres humanos sensíveis, amorosos, contempladores da natureza. Apaixono-me por gente dessa qualidade. Rejeito contatos próximos com aqueles que desprezam flores e frutos, que reclamam da sujeira que folhas e flores fazem nos caminhos etc. Sou árvore, tenho raízes, gero flores e frutos. Assim, vou espargindo sementes pelos caminhos.
Em 2014, passando um mês, a trabalho, na cidade de São Paulo, levei comigo sementes de árvores frutíferas, frondosas e a cada dia as plantava em praças, onde sentia que poderiam enriquecer a sensibilidade das pessoas. Se vicejaram, não sei. Mas polvilhei de AMOR aquela terra. Talvez em agradecimento a tudo que recebi dela nas quatro décadas em que lá vivi.
Nasci em SETEMBRO. Cresci em terreno bastante simples e fértil em Xerém, no Rio de Janeiro e vivo agora onde escolhi envelhecer.
Sou muito grata por poder ter feito escolhas. Muitos não têm esse privilégio, o de viver onde escolheram viver.
AMO AS PRIMAVERAS !

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal do meu quintal hoje

Vídeo: Canal Tim Maia

Seis horas da tarde

DOCE DE BATATA DOCE, TÃO DOCE !
Descasco as batatas
apuro o ponto
as crianças andam pelas ruas
vão uniformizadas
nenhum vestígio de máscaras
a pequena de 13 anos
informam-me está grávida
não vai mais à escola
deixou de vir ao Clubinho
quando muitos vinham
apuro o doce de batata doce
moldo cada um
em mãos que sentem
a irmã mais velha
engravidou aos 17
deixou de vir ao Clubinho
quando muitos vinham
deixo o tabuleiro ao sol
dias e dias ao sol
o ponto certo
demanda espera e cuidado
a barriga da menina de 13 anos cresce
uma criança gesta um menino
o doce de batata doce ali
eu ali embalando o doce de batata doce
queria a Hora do Ângelus doce
queria a Ave-Maria dos meus tempos de menina
queria as meninas sendo meninas
queria um doce de batata doce bem doce!

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Milton Nascimento