O Tal Casal

AFETO E COMPANHIA
Remexe nas raízes e sente cheiro da terra
com mesmos valores
com mesmos princípios
com mesmos meios
com mesmos fins
é gente simples
com lições aprendidas com severidade
com mesmos ramais e caminhos
cheiram igual
têm cores parecidas
sabem das mesmas histórias
riem de recordações risíveis
emocionam-se com lembranças comuns
choram por perdas tão significativas
têm brio, caráter, apego a verdades
é gente simples
quando se percebem
estão trocando mudinhas
eu te dou as de violetas
você me dá as de flor-de-seda
tal qual faziam com suas coleções da meninice
tal qual faziam suas mães, seus pais
Olham-se com afeto
refletem juntos
não há do que se envergonhar
não há o que esconder
são produto de sua criação
são reflexo das verdades de seus pais
Qualquer um pode saber delas
Qualquer um pode reconhecer neles os seus pais.

VIAGEM COM CONEXÃO EM SI MESMOS
Otávio era introspectivo. Não que não tivesse companheirada, mas depois dos 55 andava querendo outros roteiros. Gente só para as horas das piadas, dos risos… vinha querendo mais que isso. Cada dia mais. Já começavam a incomodar os clichês, as piadas sempre politicamente incorretas, os deboches dos males humanos, das mulheres, dos gays. Cansaços insuportáveis.
Era quando assim que, de mochila e botas, pegava seu carro, sempre pronto pra subir caminhos íngremes, ia longe. Cada vez mais longe. Às vezes, pernoitava na barraca que levava, às vezes, em um hotelzinho, em uma pousadinha… tudo -inho, como preferia.
Fugia dos horários de pico das visitações, gostava de madrugar nos rios, cachoeiras e de deixar-se ficar, ao anoitecer, correndo certos riscos até, mas preferia estar sem gente.
Cruzou, intempestivamente, com uma mulher, calada, naquele hotelzinho. Parecia que estava seguindo Otávio. Onde ia, ela chegava logo após. Ou ainda o contrário.
Que sentido teria aquilo, não queria falar com ninguém, contar de onde vinha, para onde estava indo, o que buscava. Queria distância daquela mulher.
O tempo passou.

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal (última imagem retirada da Internet)

Vídeo: Canal Vanessa Da Mata

Impressões e expressões

RIBANCEIRA
o pó da covardia empalidece a história
no limiar da ação o medo ancestral
na esteira da glória a fraqueza do caráter
os compadrios coloniais
a hipocrisia social contumaz
o acordo dos cavalheiros semelhantes
tudo repete o teatro dos costumes
chicote nas mãos do capataz
vilões mascarados de mocinhos
sinhozinhos em gritos estridentes
sangue correndo pernas abaixo
dores em chagas sociais
jogos de poder desenhando hipocrisias eternas
falta coragem de formar fileiras
falta coragem de traçar rumos
falta coragem de tomar as rédeas
a ribanceira espia os declínios
a ribanceira não expia as culpas

COMISSÃO DE INQUÉRITO
morrer na véspera
verter até a última gota de sangue
seu merda
seus merdas
tenho punhos erguidos
tenho braços erguidos
não cedi
não cedo
não me calarão
não me derrubarão
hipocrisias a rodo
testemunhos falsos
pistas falsas
disfarces, máscaras, ludibrios
quanta vileza travestida de exatidão
quanta farsa ao espalhar as migalhas de pão
não me neutralize
não me arrefeça
não me adoce
sou farejadora de canalhas
sou farejadora de mascarados
sou farejadora de cúmplices
sou unhas na pele
sou boca e dentes na pele
sou loba esfaimada
não me atenuem fomes legítimas
não me acarinhem com cantigas de ninar
não sou feromônios apenas
nunca fui feromônios apenas
nunca serei feromônios apenas
sou fêmea parida e belicosa
verdadeira
não visto peles enganosas
quero justiça
quero justiça
quero justiça
até a última gota de sangue
cuspo em suas máscaras, hipócritas
escarro sobre seu território podre
vomito em cima de vocês
tenho nojo de suas couraças
seu merda
seus merdas.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Matheus Lopes

2- Canal Gal Costa – Tema

Amor eterno e verdadeiro: Luna

O AMOR ETERNO
-Mas que amor é esse, gente? Por uma cadela? Tanta criança precisando e todo esse luxo com cachorra!
Ah, pragmáticos, de sentimentos rasos e campos de visão estreitos, vislumbrem o adiante, por favor. Ou não.
O que é AMAR?
Sabe-se sentir, talvez explicar… bem menos.
Quando leio textos de blogueiros narrando sua relação com seus animais, fico enternecida. Há sensibilidade nas entranhas humanas.
Quando abro um recipiente com queijo, que tiro da geladeira, e ouço o barulho que faz ao abrir, lembro da minha Luna que reconhecia aquilo e logo erguia as orelhinhas, mesmo já cega pelo diabetes. Ah, meu Deus, que saudade ao olhar o lugar onde ficava, a alegria do amor que me dedicava, as retribuições de afeto que a mim demonstrava. Isso é AMOR. É AMOR porque sinto sua falta, seu jeito especial de ser. Não é adotando outro cão que isso se modificará. Ama-se em especial a um cão, por suas características, por sua ternura, pelos cuidados que lhe dedicamos… isso o torna único.
Quando vi Luna em uma clínica veterinária, em SP, para ser adotada, estava ao lado de sua irmãzinha (que foi para o Rio, com meu irmão Oduvaldo também). Estava sem pelos nas patinhas, com uma micose a ser tratada e tinha muitos pelos negros pelo corpo inteiro – o que demandaria sempre muitos cuidados a serem dispensados a ela. O olhar dela aos 3 meses, me fez apaixonada. Levei-a para casa – mesmo tendo outra cadela, já meio adoentada. Foi felicidade pura. E eu nem imaginava toda a trajetória que teríamos juntas por 17 anos. Na sua identificação, o telefone, caso meu AMOR se perdesse de mim. Ela não se perdeu. Nunca.
Nunca namorou, nem cruzou. Seus problemas sempre foram os de pele. Fez viagens de muitas e muitas horas comigo, sempre olhando tudo pelas janelas, até se cansar e dormir em seu colchãozinho. Nas paradas, bebia água, fazia xixi, caminhava na coleira, me ajudando a esticar as pernas. Isso quando ainda não tinha o diabetes e por fim, a cegueira, nos 3 últimos anos.
Adorava ser acarinhada, tomar banhos quentes, ter seu lindo pelo preto seco com secador, penteado… ah, chegava a adormecer naquela uma hora que eu levava, tratando de seu pelo. Era doçura, pedindo mais carinho, empurrando minhas mãos para que prosseguisse. Cuidar dela até o fim, aplicando-lhe insulina, alimentando-a com ração especial, cortando fígado em pedaços miúdos para combater anemias… foi pouco pelo AMOR que sempre me dedicou.
No quesito percepção, era o MÁXIMO. Sabia que estava triste, que estava chorando, que me angustiava. Ela era minha cúmplice sempre.
AMAR é guardar na gente as recordações do outro ser, ETERNAMENTE.

LUNA LINDA
Faz 2 meses que nos separamos
Onde você está?
Tem comido cascas de melão?
Ontem, sem querer, me peguei cortando umas pra você
Onde você está?
Doei todas as suas coisinhas
outros cães também têm que ficar cheirosos e bonitos
Os ossinhos – eram muitos- eu os dividi com muitos cães
Guardei a sua plaquinha de identificação
com seu nome e nosso telefone
Aí onde você está tem cachorros amigos?
As ruas aqui estão muito sem vida sem você,
minha companheirinha linda.
Mesmo cega, diabética, sem descer escadas,
você e eu íamos seguindo, sempre juntas
Sinto muito a sua ausência
ao acordar
ao entrar, ao sair
ao ir dormir
17 anos de união
não são pouco
Guardarei você em mim
Para sempre.
(agosto de 2019)

Texto e poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Instituto Piano Brasileiro

Beija-flor namorado

A SEDUÇÃO AIROSA
amanhece o sol
as cores atraem
saio insegura aos coloridos
de pronto, a azaleia diferentona se apresenta
destaca-se das outras
brancas e lindas
tem nuance diferente
embarco na sedução airosa de verdes e tantos
não apenas eu
me envolve um beija-flor
verde brilhante
tem nuance diferente
estática o observo
onde vai
o que quer
a quem beija
beija-flor formoso me envolve
em bailado encantador
beija aquelas
beija a mim
em seu doce dançar de mestre-sala
descanso minhas angústias humanas
naquele beija-flor
é natural
é doce
é vida
os canteiros de ervas e verduras me atraem agora
a rúcula se envolveu com a cebolinha
enlace matrimonial seguro
convidam com garbo e elegância
o manjericão, o alecrim, a hortelã
chamam o tomilho e a cenoura
a pimenta vem e a salsinha também
O filho cheio de chiste e picardia
vê tudo e declara
Então… a cerimônia é uma salada
rimos distantes
O meu despertar
tem nuances diferentes
é natural
é doce
é vida
É POESIA

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Instituto Piano Brasileiro

2- Canal Odonir Oliveira

Programas de rádio: portadores de emoções – IV

RÁDIO-PIRATA DE SI MESMO

Maurício era matreiro, mateiro, orgulhoso e cheio de si. Professor de Educação Física, fizera-se trilheiro e depois guia de trilhas de águas, rios, cascatas e matas. Tinha o vício de conduzir, sabia onde queria ir, como queria ir e aonde chegaria.

Conheceu a professora de Português em uma reunião da Regional de Ensino. Ouviu a exposição que ela fizera do trabalho desenvolvido com seus alunos, interessou-se, mas jamais deixaria claro qual era o seu interesse naquilo. A colega era de outra cidade. Ele, pelas estradas do estado, ouvia canções e pensava nela. Cortava tais pensamentos porque aquela professora tinha perfil diferente do das mulheres que ele gostava de sentir o perfume nas trilhas que dominava. E bem.

Naquele mês ficara sabendo que haveria uma belíssima formatura na cidade da professora. Colegas seus se referiam ao evento com descrições de encher a boca. Pensou que seria uma oportunidade para ir até um endereço que tinha dela, escrito no material distribuído naquele encontro de professores. Maurício não conhecia a cidade e pretendia fazê-lo nos poucos dias em que estivesse por lá.

-Vou sem compromisso; quero ver de perto se é aquilo mesmo, se dá liga. Só pra isso mesmo – pensava em voz alta na beirada de uma cachoeira nos arredores de sua cidade.

Não declarou nada disso aos amigos, nem a um irmão que iria com ele. Quem dirigia era o outro. Conforme ouvia as canções das rádios de cidades pelas quais passavam, pensava nela. Mas não admitia isso a ninguém, nem a si mesmo. O pavor de estar envolvido com a professora incinerava suas possíveis ilusões.

Chegando à cidade, os amigos se dispersaram, cada um foi fazer o que queria, antes da tal formatura. Ele tomou uma moto-táxi e pediu que o parceiro da direção o levasse a diversos pontos da cidade – todos sinalizados pela professora em seu relato naquele trabalho. Ia filmando tudo com seu celular. E enquanto fazia isso, lembrava daquilo que vira e ouvira dela naquele dia.

Por fim, bateu no endereço que tinha consigo. Não havia ninguém lá. Para não perder a viagem, fotografou e filmou o local. Foi de volta ao encontro dos amigos, sem sequer mencionar que havia ido ao tal endereço.

Jamais contou a ninguém que estivera ali. Isso era admitir o que ele não queria admitir.

Dias depois, a professora ficaria sabendo, assim que retornou da viagem de emergência a outro estado, que um homem, com a descrição de Maurício, estivera ali em frente, registrando tudo. Ela, convidada para a colação de grau, nem pudera comparecer à famosa formatura de janeiro. Pena.

Maurício nunca admitiu que havia ido procurá-la. Nem quando certa noite ela, de posse de seu telefone, ligou para ele. Ao contrário, mostrou-se de um alheamento cruel.

As rádios emocionam pelas estradas.

Leia também aqui no blog: ”Programas de rádio: portadores de emoções I” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/08/09/programas-de-radio-portadores-de-emocoes-i/”Programas de rádio: portadores de emoções II”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/08/13/programas-de-radio-portadores-de-emocoes-ii/- ”Programas de rádio: portadores de emoções III” -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/08/24/programas-de-radio-portadores-de-emocoes-iii/

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Celso Adolfo – Tema

Fazendas de café: arqueologia de espíritos

ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Quanto mais vivia, mais gostava de seu país. Alice era nota de sinfonia telúrica.
Radical, de raiz cognato, gostava de seu ar, de seu chão, de seu céu. Que não viessem lhe apontar belezas estrangeiras, encantos de produtos estrangeiros que trepava nas tamancas. Tinha raízes profundas, difíceis de se extirpar.
Ora direis “Mas esse país é cheio de mazelas, vícios e desmandos “, Alice não acatava ofensas nem rebaixamentos. Entendia sua história e a de seu país, sabia que uma vida humana se edifica em 70 ou 80 anos, mas que a história de um país talvez demandasse 1000 anos.
Quando viajava, desbravando a história, ia ficando apaixonada cada vez mais. Parecia já haver vivido ali, andado por aquelas matas, molhado pés naquelas águas, ter sentado ali, comido ali, conversado ali. Os amigos diziam-lhe “Pronto, agora vai querer morar aqui também?” Por que não? Era tudo parte de sua história, de sua trajetória, de suas emoções.
Pura arqueologia de espíritos, sentia e era capaz de atestar que já havia vivido aquilo tudo ali.
Nas fazendas de café coloniais, nas senzalas, nos campos verdes … teria vivido ali. Ao olhar pelas janelas, era a sua vida que via, a sua história, a história de seu país.
Alice e seu país eram uma coisa só.

NA ROTA, UM PORTO
Chapéu de aba larga florido
vestido de fustão e renda
botas de cadarços
luvas brancas de seda.
Colo branco, rosto pálido, boca rósea
Olhar distante
jardim florido de rosas, rosas, rosas …
Pés de amoras, pitangas, goiabas
Perfume de lenha pão bolo café
Cavalos nas calçadas,
homens de chapéus bengalas,
meninos em calças curtas
Olhar distante
Horizontes perdidos em espaço e tempo.

Texto e poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal João Luis Ferreira Pimenta

Mar de amor

AS GAIVOTAS
Vejo gaivotas
Trombeteando sementes de flores do campo
Aspergindo perfumes de estrelas cintilantes.
Mas como, se não estamos no mar?
No meu mar
Há rios lagos lagoas
E gaivotas
Livres.

Vídeo completo do Projeto Mar de Amor, apoiado pelo Prêmio “Alcides Mesquita”, da Prefeitura Municipal de Santos – Secretaria de Cultura SECULT. Músicas de autoria do pianista Mario Tirolli, com cenas inspiradoras da cidade de Santos. Créditos: Gravado em 18/01/2021 Pinacoteca Benedicto Calixto – Salão Nobre Piano e composições: Mario Tirolli Afinação do Piano: Raymond Turner Iluminação: Fabio Salgado Áudio: Sebastian Rot Imagens e Edição: Herik Folha Locução e Direção: Andrea Tirolli – Poemas (fragmentos): – Soneto do maior amor (Vinicius de Moreas) – Sem amores, nem ódios (Ricardo Reis) – O amor bate na aorta (Carlos Drummond de Andrade) – nº 9 (Pablo Neruda) – O mergulhador (Vinicius de Moraes) – Lírica (Luiz Vaz de Camões) – Juntos (Andrea Tirolli)

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal MusicalMente Falando

Programas de rádio: portadores de emoções – III

PACOTE DE VERSOS
Anamaria gostava muito da chuva. Nem sempre pode admirá-la, em extensão, em volume. Bonitas eram as chuvas de fim de tarde, tinham perfume de emoções. Várias. Agora seu tempo de contemplação e êxtase chegara. Até que enfim. Estava ali, a janela emoldurava sua paisagem, a rádio FM a embalava com sequências de ritmos que tinham as chuvas como tema.
Algumas vozes ao longe, traziam personagens ao seu corpo.
A xícara de chocolate quente, a beleza do entorno, sua emoção interior… tudo fazia com que fosse envolvida por um lirismo real.
Sentou, bebeu chocolate, bebeu chuva e começou a escrever um feixe de versos.

CHOVENDO
Primeiro, sons de gotas
Depois, cheiro de água na terra
Agora, na sacada,
vendo a precipitação dos pingos.
entorno meu rosto por eles
para que me lavem dores,
para que me limpem do sangue,
para que me purifiquem com o prazer.
Nesse mesmo céu
há pouco havia estrelas.
Agora, entreguei a ele o meu coração.

Leia também: ”Chove em mim” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2016/12/05/chove-em-mim/ ” Programas de rádio, portadores de emoções- II-https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/08/13/programas-de-radio-portadores-de-emocoes-ii/Programas de rádio, portadores de emoções”- I- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/08/09/programas-de-radio-portadores-de-emocoes-i/

Texto e poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal
Vídeo: Giz de Cera – Fruição e Arte

O carro de bois dos mineiros

Impressiona a ingenuidade do seu Carlinhos; ele é bonito por dentro e por fora. Bendito seja! Pura poesia!

‘O carro de boi, nossa senhora! Era importante dimais da conta pra nóis na roça. Ó, cum ele nóis transportava tudo que era pra vendê na cidade, de lá nóis trazia sal, querozene, pano. Carreava tudo que era pesado, tora de madera, saca de arroz, fejão, milho, mandioca. Vichi! Até quando nóis ia pras festa da romaria da Senhora d’Abadia tinha que sê com ele. Pruque tinha que fazê quasi que uma mudança, nóis passava lá três dia. Nossa! Maisi tinha carro que cantava bunito dimais da conta. Pra ele canta bunito dependia da qualidade da madera do exo, é! Tinha de sê balsamo. Até doente carregava nele tamém. Só os mió de vida é que tinha carro de boi, era sinar de prestijo. Maisi aqueles que tinha imprestava pros que num tinha, depois as pessoa tirava serviço prele. Era uma troca, sabe cumo é? Nóis tinha carro de boi, maisi o nosso era de 2 junta só. Tinha té de 6, é! Doze boi. Os boi era tudo posto na canga de madeira e travado com o canzil. A mesa do carro era de madera e tinha pro volta os fuero, que é uns paus pra sustentá a esteira que ficava em volta dele, suspensa com uma arça em cada um dos fuero. A tampa do fundo dele era de taba de madera. O pau que o carrero conduzia a boiada chamava guiada. A junta da frente era a de guia e a detrás a de coice. Quando era pra desce com carro pesado, cheio, os boi tinha que i pra trás pra segurá o peso, na frente ficava só os de guia. Os bois tem de acustumá com o carrero indesde pequeno, eles era tudo castrado pra ficá manso. Tudo dipendi da dresteza do carrero. Era uma belezura mesmo, que sodade meu deus! Hoje? Carro de boi é só prá enfeitá, senhora já viu? Virô banco de assentá, lugá de botá pranta, até aquelas coisa de acende luz, como? É, lustre ele virô, as roda, né? Se acabô mesmo, né?

Depoimento de Maria Augusta Faria – Uberlândia MG 07.07.1995. História de vida. natural de Santa Clara, município de Coromandel, onde residiu por 50 anos. ”

(Re)significações culturais no mundo rural mineiro: o carro de boi – do trabalho ao festar (1950-2000) Maria Clara Tomaz Machado in Revista Brasileira de História

Obrigada, Chico. Gerações diferentes nos brindam com suas mãos.

Vídeos: Canal Chico Abelha

Lima Barreto, histórias do cotidiano

SALVE, SALVE, EMICIDA – ”O rapper e compositor brasileiro Emicida foi convidado para atuar como professor no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, uma das instituições mais renomadas de Portugal. Ele irá ministrar uma residência artística de 3 meses, entre 25 de julho e 21 de outubro de 2021.”

MAIO

Lima Barreto

Estamos em maio, o mês das flores, o mês sagrado pela poesia. Não é sem emoção que o vejo entrar. Há em minha alma um renovamento; as ambições desabrocham de novo e, de novo, me chegam revoadas de sonhos. Nasci sob o seu signo, a treze, e creio que em sexta-feira; e, por isso, também à emoção que o mês sagrado me traz, se misturam recordações da minha meninice.

Agora mesmo estou a lembrar-me que, em 1888, dias antes da data áurea, meu pai chegou em casa e disse-me: a lei da abolição vai passar no dia de teus anos. E de fato passou; e nós fomos esperar a assinatura no Largo do Paço.

Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto, um sky-scraper; e lá de uma das janelas eu vejo um homem que acena para o povo.

Não me recordo bem se ele falou e não sou capaz de afirmar se era mesmo o grande Patrocínio.

Havia uma imensa multidão ansiosa, com o olhar preso às janelas do velho casarão. Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação: palmas, acenos com lenço, vivas…

Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente festa e harmonia.

Houve missa campal no Campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a “Primeira Missa”, de Vítor Meireles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez… Houve o barulho de bandas de música, de bombas e girândolas, indispensável aos nossos regozijos; e houve também préstitos cívicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas passaram lentamente pelas ruas. Construíram-se estrados para bailes populares; houve desfile de batalhões escolares e eu me lembro que vi a princesa imperial, na porta da atual Prefeitura, cercada de filhos, assistindo àquela fieira de numerosos soldados desfiar devagar. Devia ser de tarde, ao anoitecer.

Ela me parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca mais a vi e o imperador nunca vi, mas me lembro dos seus carros, aqueles enormes carros dourados, puxados por quatro cavalos, com cocheiros montados e um criado à traseira.

Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.

Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão.

Quando fui para o colégio, um colégio público, à rua do Resende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos tinha tomado.

A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente, a quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da coisa; mas com aquele feitio mental de criança, só uma coisa me ficou: livre! livre!

Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.

Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: “Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?”

Mas como ainda estamos longe de ser livres! Como ainda nos enleamos nas teias dos preceitos, das regras e das leis!

Dos jornais e folhetos distribuídos por aquela ocasião, eu me lembro de um pequeno jornal, publicado pelos tipógrafos da Casa Lombaerts. Estava bem impresso, tinha umas vinhetas elzevirianas, pequenos artigos e sonetos. Desses, dois eram dedicados a José do Patrocínio e o outro à princesa. Eu me lembro, foi a minha primeira emoção poética a leitura dele. Intitulava-se “Princesa e Mãe” e ainda tenho de memória um dos versos:

“Houve um tempo, senhora, há muito já passado…”

São boas essas recordações; elas têm um perfume de saudade e fazem com que sintamos a eternidade do tempo.

Oh! O tempo! O inflexível tempo, que como o Amor, é também irmão da Morte, vai ceifando aspirações, tirando presunções, trazendo desalentos, e só nos deixa na alma essa saudade do passado às vezes composta de coisas fúteis, cujo relembrar, porém, traz sempre prazer.

Quanta ambição ele não mata! Primeiro são os sonhos de posição: com os dias e as horas e, a pouco e pouco, a gente vai descendo de ministro a amanuense; depois são os do Amor – oh! como se desce nesses! Os de saber, de erudição, vão caindo até ficarem reduzidos ao bondoso Larousse. Viagens… Oh! As viagens! Ficamos a fazê-las nos nossos pobres quartos, com auxílio do Baedecker e outros livros complacentes.

Obras, satisfações, glórias, tudo se esvai e se esbate. Pelos trinta anos, a gente que se julgava Shakespeare, está crente que não passa de um “Mal das Vinhas” qualquer; tenazmente, porém, ficamos a viver, esperando, esperando… o quê? O imprevisto, o que pode acontecer amanhã ou depois. Esperando os milagres do tempo e olhando o céu vazio de Deus ou deuses, mas sempre olhando para ele, como o filósofo Guyau.

Esperando, quem sabe se a sorte grande ou um tesouro oculto no quintal?

E maio volta… Há pelo ar blandícias e afagos; as coisas ligeiras têm mais poesia; os pássaros como que cantam melhor; o verde das encostas é mais macio; um forte flux de vida percorre e anima tudo…

O mês augusto e sagrado pela poesia e pela arte, jungido eternamente à marcha da Terra, volta; e os galhos da nossa alma que tinham sido amputados – os sonhos, enchem-se de brotos muito verdes, de um claro e macio verde de pelúcia, reverdecem mais uma vez, para de novo perderem as folhas, secarem, antes mesmo de chegar o tórrido dezembro.

E assim se faz a vida, com desalentos e esperanças, com recordações e saudades, com tolices e coisas sensatas, com baixezas e grandezas, à espera da morte, da doce morte, padroeira dos aflitos e desesperados

Lima Barreto, crônica originalmente publicada na ‘Gazeta da Tarde’, em 4 de maio de 1911.

Lima Barreto: toda crônica. 2 vol’s. [organização Raquel Valença; apresentação e notas Beatriz Resende]. Rio de Janeiro: Agir, 2004, vol. 1.

Crônicas escolhidas. Lima Barreto. Coleção Folha de S. Paulo. p. 197. São Paulo: Edições Folha de S. Paulo; Ática, 1995.

Considero a vida e a obra de LIMA BARRETO grandiosas. Os seus romances preferidos são Clara dos Anjos e O homem que falava javanês, além dos contos e das crônicas – completos retratos da sociedade carioca.

Leia aqui no blog: ”Brasil: “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, Lima Barreto”- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/08/28/brasil-triste-fim-de-policarpo-quaresma-lima-barreto/Nós, todos negros brasileiros”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2016/11/19/nos-todos-negros-brasileiros/- ‘ Sobre pretos (negros), escutar, aprender e ser empático”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/11/20/sobre-pretos-negros-escutar-aprender-e-ser-empatico/-”África, me perdoe”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/09/24/africa-me-perdoe/-”Eunice, a rosa negra”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/03/15/eunice-rosa-negra/

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Emicida