Carregando pães na sacola a poesia tem ímã quer rimar quer sensibilizar quer casar pão com poesia
tocou na pessoa certa, poesia neta do padeiro filha do homem que plantava sei o valor do grão sei o valor do pão
ganhar o pão com seu suor comer o pão que o diabo amassou pão dormido pão fresco bom grão fará bom pão dores com pão são menores sei o valor do grão sei o valor do pão
às vezes me pego deitada a desejar pão levanto e deixo escorrer pão da boca lambo a casca degusto a massa sabor de pão sustento para fomes umas sustento para fomes outras sustento para fomes tantas
À FALTA DE PÃO, ATÉ MIGALHAS VÃO
Na infância o refrão ouvido e repetido mas isso é pão de guerra Era o tempo da falta de trigo no país a guerra guardou o trigo somente para si nossas gentes sem pão de trigo pão de milho pão disso, pão daquilo pão duro pão de anteontem pão de guerra desejos constantes de saborear pão sem ser o pão de guerra sem querer saber de nenhuma guerra
a guerra acabou o pão de guerra insiste em ser pão a busca eterna pelo pão sem guerra vai a São Paulo volta às Minas Gerais percorre de norte a sul o país não há mais pão sem guerra
A guerra acabou?
PERFUMARIA GENÉTICA
aqui tem padaria inspiro me inspiro perfume de pão assando está próxima, está nesse rumo perfume de pão assando aqui, é aqui encontrei agora é fragrância de chocolate o bairro aspirando chocolate os biscoitos da fábrica derramam chocolate em nós delícias paulistanas viver por aromas saber dos aromas sabor dos aromas reconhecer os aromas prazeres inigualáveis
Brasil quem é que seria o dono da Amazônia e por aqui quem viveria se a Guanabara explodisse em gás e sangue? Seria outra a nossa História.
Inda bem, quem ama a vida não vai ser agora matador quem ama a selva não vai ser agora lenhador quem ama o índio não vai ser agora caçador
Brasil teu capitão não aceita a ordem de matar nosso capitão não aceita quem quer te entregar o capitão não aceita a ordem da matança
Inda bem, quem ama a vida prefere o ofício de salvar quem ama a terra prefere o ofício de sonhar quem ama mesmo prefere o ofício de amar
Brasil teu capitão não aceita a ordem de matar nosso capitão não aceita quem quer te entregar o capitão não aceita a morte da esperança
Inda bem, quem ama a vida prefere o ofício de salvar quem ama a terra prefere o ofício de sonhar quem ama mesmo prefere o ofício de amar.
Quem é esse CAPITÃO ?
Essa música de Fernando Brandt e Chico Buarque é uma homenagem ao Capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho (Sérgio Macaco), que se recusou a usar a equipe do Para-Sar (grupo de paraquedistas da FAB especializados em salvamentos) para praticar atos de terrorismo que seriam atribuídos à esquerda. Pela recusa e por denunciar o plano, o capitão e seu heroico grupo foi expulso das forças armadas pela ditadura.
Querer voar o mundo querer conhecer o mundo querer outros mundos
Ir-se. Voar.
Estar, descer, subir, cair, voar. Novidades de véspera. Novidades de hoje. Novidades de amanhãs. Arriscar-se no ar, em terra, em corações.
Voar é preciso. Voar é urgente.
1968
FESTIVAIS DA CANÇÃO
A televisão em preto e branco trazia as novidades em imagem. Em som tínhamos o rádio, as vitrolas com discos, vários discos, já dispostos no braço, para que fossem caindo e a gente ouvindo primeiro todos eles no Lado A e depois os virávamos e iam caindo, um a um, do Lado B. Mas os Festivais da Canção eram o novo frisson em nosso país. Pouca gente tinha televisão ainda. Elas vinham em um móvel mesmo, com pés, num gabinete, tinham seletor de canais (controle remoto, nem sonhávamos em saber o que era isso), ficavam nas salas de estar das famílias brasileiras. Os canais de TV eram poucos e a programação, em princípio, só existia à noite.
Anos de 1968, 1969, inebriavam nossos corações e mentes com os festivais da canção, os da TV Record, em São Paulo e os da TV Globo, no Rio. Esse último com fase nacional e internacional. Eram formadas torcidas organizadas imensas e as revistas especializadas em TV davam aquecimento a tudo que ia acontecendo nas semanas dos festivais. Assim, nos apaixonávamos pelos cantores, sabíamos as letras das canções de cor e as cantávamos dia e noite. Tantas ingenuidades!
Imagine um mundo pequenino, isolado, onde sua aldeia era o que havia de maior em seu coração e, de repente, a TV trazendo tudo aquilo de sonho, com gritos, apupos, pra dentro da sua sala. Era o máximo mesmo.
Nas escolas começaram a acontecer os festivais internos, surgindo uma luzinha de liberdade extracurricular para criação de canções, execução de instrumentos, apresentação etc. Lembro que em 1969 eu iniciava o curso normal, no Grajaú, no Rio, e foi lá que aprendi a ler poemas de uma forma especial, não que isso fosse ensinado ou incentivado, mas era escolhida quase sempre para fazer as leituras nas missas e eventos do colégio de freiras. Foi aí que aprendi a pausar nas frases, a dar entonações em destaque etc. Com marcações mesmo, como no teatro.
E no festival em 1970, o Colégio da Companhia de Maria fervia. Só mocinhas, entre 15 e 18 anos, compondo letras, cantando em grupos, ensaiando, uma beleza de integração de talentos. Imitávamos no que podíamos os festivais da canção a que assistíamos. Até no cenário do palco havia um grande violão pintado em preto e branco ao fundo. Queríamos mesmo estar integradas àquilo que acontecia no país. Mas estávamos mesmo?
A ditadura militar, ali bem perto de onde estudávamos, comia corpos no quartel da Polícia Militar, na Tijuca. De nada sabíamos, pouco era informado em jornais ”sobre terroristas, assaltos a bancos feitos por terroristas, o fantasma do comunismo, bicho papão comedor de criancinhas” . Criava-se o terror, o medo. Lembro-me do dia da execução sumária de Marighella, por exemplo, pois estávamos nós, as mocinhas, em casa de uma das amigas para um trabalho em grupo, e ela nos contou. Eu nem supunha quem fosse tal personagem.
A TV Globo saía do ar à meia-noite sob a execução do Hino Nacional, com a imagem de uma Bandeira do Brasil tremulando, uma voz em off oferecia dados sobre o crescimento do país e ao final concluía assim “Brasil, nunca fomos tão felizes”. Todas as noites.
PERCURSOS, CURSOS, RECURSOS
Do que sabiam, arriscavam. O que esperavam buscavam. Certos errados, errados certos, umas rotas enormes a percorrer-se. Beijos, abraços e corpos mel, fel, rostos
Marcas, sinais, cicatrizes, dores Marcas, sinais, tatuagens, prazeres. Vidas que desabrocham novas e lindas Vidas que nos surpreendem, novos e lindos. Sonhos que desaguam qual cachoeiras sobre nós.
Dançamos juntos, dançamos de rosto colado, dançamos trançando nossos corpos. Eu levo, eu conduzo Eu me deixo levar, eu me deixo conduzir.
Prazeres indescritíveis, na voz de uma poeta quase infantil.
A MOCINHA
acreditava em amanhãs desconhecia os perigos achava que o amor era maior que tudo sonhava com um companheiro a quem admirasse pensava em ser cidadã e atingir suas metas conhecia seus desejos achava que conhecia seus desejos queria ser amada do jeito que era suspirava com o amor
RELÓGIO ANACRÔNICO
Como se fosse possível, badaladas de um marcador de anos irrompem em mim, sem aviso ou possibilidade de defesa. Bate as horas Bate as meias-horas Bate os minutos Bate os segundos. Meu coração é todo corda. Fujo dele Tampo os ouvidos Prendo a respiração Grito mais alto que suas badaladas Mas é tudo em vão. As badaladas fora do tempo insistem em acordar meus sentidos já há tanto, sonolentos, já há tanto, adormecidos, já há tanto, amarelecidos. Quase mortos.
”A vida não se resume em festivais”- Geraldo Vandré, Festival Internacional da Canção, RJ, 1968
Tbt é uma gíria popular que significa throwback Thursday, e pode ser traduzida do inglês como quinta-feira do retorno ou quinta-feira do regresso. A gíria, simbolizada por #tbt, é utilizada pelos usuários de redes sociais como hashtag para marcar fotos que se refiram ao passado e/ou que deem saudades.
Do que nasce o homem? De terra, água, pedra, céu, fogo? Do que nasce o homem, meu Deus? Por degraus de pedras percorrem-se imensidões. Somos o perfume da macela e do alecrim Somos a alfazema da estrada de terra. Somos o riso da menina-moça que nos observa e conta, conta … Somos o nascer e o por-do-sol no mato na revoada de asas. Somos a noite de estrelas cada uma delas conversando e nos sorrindo em particular. Somos a voz do matuto que explica as maiores e mais complexas filosofias a desafiar nossas reflexões. Somos pedras, pedras, pedras Movimentos de músculos, jogos de quadris, arremessos de olhares e risos Somos risos de frases ingênuas, como anjos caídos de um céu daqueles, mirando-nos, mineiramente desconfiado.
Cada um de nós conversa com a estrela escolhida, ainda que tão-tão distantes. Estrelas ouvem, bem sei que ouvem.
RIOS RUMAM
rio companheiro sento-me aqui junto a ti para te ouvir para me ouvir às margens à margem medito sobre nada medito sobre tudo silencio comovida acompanho-te menina absorvo-te ave escuto-te flor observo-te nuvem estamos nós estamos sós eu e tu revelo-te meus sentimentos nesse olhar entrego-te meu coração nesse sorriso
Curvas do rio Elomar
Vô corrê trecho Vô percurá u’a terra preu pudê trabaiá Pra vê se dêxo Essa minha pobre terra véia discansá Foi na Monarca a primeira dirrubada Dêrna d’intão é sol é fogo é tái d’inchada
Me ispera, assunta bem Inté a bôca das água qui vem Num chora conforma mule Eu volto si assim Deus quisé
Tá um apêrto Mais qui tempão de Deus no sertão catinguêro Vô dá um fora Só dano um pulo agora in Son Palo Triang’Minêro É duro môço êsse mosquêro na cozinha A corda pura e a cuia sem um grão de farinha
A bença Afiloteus Te dêxo intregue nas guarda de Deus Nocença ai sôdade viu Pai volta prás curva do rio
Ah mais cê veja Num me resta mais creto prá um furnicimento Só eu caino Nas mão do véi Brolino mêrmo a deis por cento É duro môço ritirá prum trêcho alêi C’ua pele no osso e as alma nos bolso do véi
Me espera, assunta viu Sô imbuzêro das bêra do rio Conforma nun chora mulé Eu volto se assim Deus quisé Nem dêxa o rancho vazio Eu volto prás curva do rio
LEITOS
Onde me deito, leito sagrado, corre espuma desce torpor exala ardor concebo imagens imagino paisagens coloro personagens. Estou vivo em margens, passagens de um rio passagens de um corpo passagens de um afluente entornando vida em mim
Falo calo reparo ensaio falo Penso sinto penso sinto penso sinto Morro entrego nego renego corro Escorro sangue por margens ribeiras mangues Encharco peles ensaboo mãos enxáguo braços pélvis e dorsos Renasço verde repleto de seixos ardendo em chamas colhendo raízes em mim.
Em tempo: Se for ler à noite, deixe o rio adormecer você. Sonhe com beira de rio, onde se estende seu corpo, mirando o céu – com ou sem estrelas – isso é relativo. Amar a natureza é amar também os que estão a seu lado. Ser amado é muito bom. Mesmo.
O telefone toca Ouve a voz sabe que ele fala com ela sabe que ele fala para ela pergunta responde conta
Ouve a voz Saboreia a voz Dispara seu coração Acalma seu coração Sabe que ele fala para ela Sabe que ele fala com ela.
CAPA E ESPADA
Virgínia conhecera, quase que sem querer, Pedro Paulo naquela rede social. De verdade, nem sabia direito como era o funcionamento daquela engrenagem ali. Estava bastante acostumada a falar com a boca, olhando os olhos, a boca, a pele dos interlocutores. Aquilo tudo era novidade, mistério e risco. Não sabia como jogar. E parecia jogo aquilo tudo. Divertia a interação entre as outras pessoas e, de certa forma, eles lhe faziam companhia. Era até engraçado.
Virgínia gostava de gente espirituosa, irônica na medida, e de vasto capital de leitura. Assim, iam naquela rede de navegações.
Dos contatos em grupo, passaram a se falar na salinha de bate-papo. Muito receio de Virgínia em falar com quem não conhecia, em fazer revelações que talvez não devesse. Foram indo. Adorava o jeito divertido de Pedro Paulo, com uma rapidez de raciocínio invejável. Só não gostava quando ele repetia aqueles modelitos masculinos de falar sacanagem pra ver qual a reação da interlocutora e mostrando-se , vendendo-se mesmo, por um preço muito mais alto do que valeria. Típico arquétipo daqueles ”que são de Marte” – digamos assim.
Na verdade, Virgínia queria encontrar Pedro Paulo, porque de papinho de colegial já tinha vivido décadas atrás. Tomou a iniciativa e buscou endereço, telefone e tudo o mais. Queria ouvir a voz mesmo.
Pedro Paulo reagiu com surpresa. Não era casado, vivia sozinho. Por que aquela reação, então?
OCUPADO
Distantes telefonemas difíceis ausência de vozes ausência de corpos tentativas frustradas
Ocupado Desligado Enguiçado Dedo no disco disco na vitrola vitrola no corpo corpos distantes vozes distantes
Não sabe escrever mensagens não sabe mandar torpedos não aderiu ao zap unânime
É falha é folha é flor é fruto tem sementes.
Não mente silente buscou antes procurou antes indagou antes explicou antes arriscou antes telefone congestionado ligação interrompida mensagem não enviada caixa-postal cheia
Esse telefone não grava recados. Telefone
Aceitam-se ligações.
A TARDE É REAL
gosta de um corpo gosta de um rosto gosta de um sorriso gosta de uma pele gosta de um lastro gosta da história gosta das raízes gosta da árvore-mãe gosta dos galhos-irmãos gosta das sementes-frutos gosta do percurso gosta das veredas gosta da tarde às tardes todas as tardes
O tempo passou. Os anos também. O encontro encanto ou desencanto teria de acontecer.
Noutras eras, eras Eras um metatarso apenas Eras uma íris semovente Eras um lábio inferior Eras um antebraço avulso Eras um lóbulo sem par Eras um mamilo improdutivo Eras um ventre desempareado Eras uma meia face de esperas Eras um acordo tácito de solidão Eras uma palma vez ou outra estendida Eras um feixe de antessalas Eras um sopro de noites sem luas Eras um estrato de si em uma Eras um compêndio de interrogações. Eras canteiro a semear porta a se abrir porto a ancorar.
Deu-se a polinização Deu-se ao beija-flor Deu-se ao sol com lua, lua com sol Encontraram-se e geraram um par Depois o segundo. A infinitude ensandeceu o corpo A completude fez-se espírito.
Dois. Três. Quatro Agora cinco. Células de si mesmos.
Até sempre.
MULHER
Você é pai? Pai de menina? Sabe como lidar com ela? Os tempos vêm mudando, rapidamente. Ou lentamente? A gosto de quem sabe refletir.
Tenho filha e filho. Sei das duas experiências e observo, constato e reflito sobre o ser feminino (gente feminina) e o ser feminino (modo de agir feminino). Nem tudo é questão de geração, de educação machista. de ensino de prendas domésticas, de doutrinação para o ser feminino tornar-se esposa e mãe. Constato que não. Sobretudo, se a essência feminina não estiver sufocada, disfarçada, amordaçada e atualizada, para seguir os novos padrões estabelecidos (tal como lá, cá também).
Depois de ler e ouvir vários depoimentos pessoais e coletivos sobre os aspectos femininos, chego a algumas conclusões – não totalmente fechadas – que me permitem visualizar certas mudanças.
Como temos vivido numa sociedade do descartável, do efêmero, do circunstancial quase sempre, a entrega se tornou um bicho de sete cabeças, algo improvável, inoperante. Assim é que tenho lido mães jovens de 30 e alguns anos escrevendo livros para ”desmistificar a gravidez e a maternidade” e questões relativas a elas. Ora, como assim? Quem mistificava a maternidade? É preciso saber o que é ser MÃE (assim também como o que é ser PAI). Cuidar, acarinhar, fortalecer, semear não só a alimentação física, mas a moral, os valores, os sentimentos. Ora, ora, isso se faz com plantinhas, animaizinhos, com seres vivos em geral. É preciso ter responsabilidade sim. Não se pode viajar e abandonar as ”crias” a sua própria sorte. ”Não quero ter animal porque me prende muito. Não gosto de plantas porque exigem muitos cuidados, prendem muito a gente”. Opa, que ser é esse que só pensa em si mesmo, em seus prazeres, gozos e realizações pessoais? Como se pode desejar que eles pensem em conquistas sociais para todos, em bem-estar para todos, se não querem se responsabilizar nem por uma planta, um animal?
Sabe os vasinhos da janela, os canteiros, a roça, a criação? Então, é preciso molhar, cuidar, retirar folhas secas, alimentar a terra … e depois se encantar com o perfume das flores e dos frutos, a cor dos verdes, o som dos bichos todos e ver – ocasionalmente – um ou outro morrer. Não se pode querer apenas ter prazer, sem correr riscos, sem se responsabilizar por algo, sem gastar tempo com algo.
Se uma mulher entrou no rito da gestação, é necessário sentir as alegrias e os percalços desses meses, até porque maternidade é para sempre. Ora se não é.
Isso não tem nada a ver com ter sido criada para submissão, opressão etc. Ou tem?
Tenho visto mães homossexuais gerando filhos, encantando-se com a procriação – as duas como mulheres, em seus sentires; outras ocasiões uma delas mesmo como transexual masculina, mas guardando a vontade intrínseca de ser mãe. É claro que há mulheres que nunca desejaram ser mães, há que se aceitar isso como decisão individual. Portanto, é mister saber o que é ser feminina.
Mulher tem jeitos de ser bem diferentes dos homens. Quem quiser negar isso estará no mínimo sendo hipócrita – talvez o façam como forma de se impor, de crerem assim estar se fazendo respeitar, de se mostrarem agressivas, como viram tantas vezes os homens fazerem.
Mulher tem colo, tem vontade de aninhar em seu casulo os seres todos. Mulher quer ser respeitada nas diferenças de si. Mulher, de fato, não aceita ser ridicularizada por seu romantismo – quase inerente – por seu sexto sentido, por querer ser a galinha com seus pintinhos por perto – mesmo que não sejam apenas os seus – podem ser patinhos, peruzinhos, gansos, cisnes e outros bichos. Mulher é cuidadora, gosta de cozinhar, de cantar, de arrumar, de enfeitar, de se entregar. Seja a quem necessitar ou não.
MADRUGADA
Quem está aí? Ah, é você. Entre. Fique imóvel. Mantenha as mãos para trás. Ouça. Sinta. Veja. Quem é essa mulher? pimenta rícino fel sangue Quem é essa mulher? pedra pau cuspe veneno Quem é essa mulher? tango rima ritmo gozo. Quem é essa mulher? fogo ventre peito bunda Quem é essa mulher? vômito catarro urina suor Quem é essa mulher? céu-inferno manto sangrento Quem é essa mulher? ódio inveja rancor estupor Quem é essa mulher? Quem está aí? Ah, é você. Entre. Ouça. Sinta. Veja.
Talvez desagrade a muitos, contudo costumo expressar em palavras, orais ou escritas, o que reflito e observo sobre fatos e situações.
a terra tem cheiro a chuva lavou a terra eu amo a terra minhas mãos sentem minhas mãos tocam a terra paro, aterrisso na contemplação sou braço da terra sou perna da terra sou coração da terra
a terra tem cor o vento arejou a terra eu amo a terra meus joelhos se dobram a ela meus pés a acariciam meu ventre guarda suas sementes sou cio da terra
a terra tem sentimentos o verde inaugura suas entranhas eu amo a terra meu colo nina suas flores meus seios amamentam seus frutos germino suas sementes sou gente
ESPÍRITOS DA FLORESTA
Espíritos domesticam olhares, sentires e ficares, pelo cheiro, pelo vento, pelo sons do mato do sertão. Espíritos atraem por rochas, por águas, por céus. Espíritos nas florestas polinizam almas inquietas Para sempre.
RAÍZES DE HOMENS
Há certos homens que têm caules vigorosos. São eles que semeiam a terra afagam sementes exalam perfumes de flores recolhem os frutos doces.
Há certos homens que encostam as mãos na terra a fortificam com seus dedos ásperos a revolvem com palmas ardentes a fertilizam com braços seguros.
Há certos homens que têm raízes em lugar de pés, fincam-se inexoravelmente.
GRITO DE PAVOR
Minha pele em chagas Meu tronco em dor Quem me socorre? Quem me vivifica? Quem me reanima? Minha casca em chagas Meu dorso lancetado Meu colo esvaziado Quem me socorre? Meu útero semimorto Minhas folhas sobreviventes Meu de dentro se esvaindo Meu de fora resistindo. Quem me socorre? Um fogo de fora apagando um fogo de dentro. Quem me socorre? Quem me vivifica? Quem me reanima? Um broto.
PEGADAS
São pegadas essas que deixo aqui São pegadas as que deixas aí São incursões de ti em mim São passos molhados pelas águas pelas lágrimas pela paixão.
Pegadas é só o que se deixa na natureza, então.
Salve, salve cada matuto, cada roceiro íntegro, autêntico – sem cabotinismos – que faz com que a gente ainda acredite nos seres humanos e em suas verdades. Tenho conhecido alguns e são eles que restam, com dignidade e encantos originais.
Ia pela rua caminhava desolado tiros por todos os lados mandou cercar mandou atirar mandou matar sem recuar
Ia pela rua o terror perseguido o grito engolido o gemido o cheiro vermelho do sangue espesso o mugido do gado criança do gado homem do gado mulher
Ia pela rua acuado o ponto de ônibus evacuado o medo disseminado o aviso repetido o horror nos postes acesos os escombros da guerra nos corpos os escombros da guerra nas mentes
Ia pela rua em desespero foragiu-se no beco estava a salvo o existencialismo não satisfaz mais o individualismo não sacia mais
Ia pela rua
A DESTRUIÇÃO
pode bater pode espancar pode queimar o museu as florestas os índios a terra os sonhos
pode ofender pode ameaçar pode vilipendiar pode contaminar pode sufocar pode amedrontar pode entorpecer
pode dominar pode subjugar pode desacreditar pode incinerar sem futuro sem vidas
fumaça nos olhos fumaça nas peles fumaça nas entranhas fumaça de nação
Não !
A PAZ
Encolhido no apartamento bebe o de beber come o de comer tem medo das ruas tem vontade de corpos tem vontade de pelos e peles tem vontade de viver pensa em si pensa em ti pensa no nós
os nós os tempos os ventos as armadilhas os sequestros as prisões a opressão
quer a vida quer o sol quer a rua quer a lua
em pensamento chama em pensamento clama age enquanto a aguarda toca uma canção
Faz 2 meses que nos separamos Onde você está? Tem comido cascas de melão? Ontem, sem querer, me peguei cortando umas pra você Onde você está? Doei todas as suas coisinhas outros cães também têm que ficar cheirosos e bonitos Os ossinhos – eram muitos- eu os dividi com muitos cães Guardei a sua plaquinha de identificação com seu nome e nosso telefone Aí onde você está tem cachorros amigos? As ruas aqui estão muito sem vida sem você, minha companheirinha linda. Mesmo cega, diabética, sem descer escadas, você e eu íamos seguindo, sempre juntas Sinto muito a sua ausência ao acordar ao entrar, ao sair ao ir dormir 17 anos de união não são pouco Guardarei você em mim Para sempre.
FILME: Meu amigo Enzo, em cartaz. É muito amoroso, sem pieguismos, fala de carros de corridas, do Aírton Senna e tem como protagonista-narrador um cão. Vale assistir.
“O poeta é como o príncipe das nuvens. As suas asas de gigante não o deixam caminhar” – Charles Baudelaire
CARAVANAS
Olho por dentro desertos vazios íntimos moradia oca abismo antropofágico.
Invado em mim as revoltas Invado em mim todas as injustiças Invado em mim todas as exclusões Invado em mim todos os descartes
Cuspo escarro vomito Abro portas janelas horizontes Evado de mim a dor Evado de mim as dores Evado de mim predileções vãs por mistérios magias imantações chãs.
Olho para fora Fora estará o alívio ou a consternação Fora estará o apanágio ou o desespero Fora estará a suavidade ou a consumição.
Estradas Caminhos Veredas Invernadas
Caravanas, reflexão.
OS RIOS DAS MINHAS ALDEIAS
Aldeias, tive algumas. Sempre bebendo nelas as melhores águas de seus rios, lavando minhas lágrimas em suas margens. Aldeias, tive algumas. E aproveitei tudo nelas, raspando os tachos, lambendo os dedos. Até os fins. Em primeira pessoa, sem me omitir, sem fugir, recebendo todos os nãos possíveis e os sinais de sim. Aprendi a cair, sofrer muito, usar Belladona nas dores, arnica no físico, Ignácia amara no espírito e levantar, seguir.
Nos anos de 1982 e 1983, participei dos primeiros grupos de Somaterapia, do psiquiatra e psicoterapeuta Roberto Freire – já falecido. Terapia corporal, com muita energia, corpo, dança e música. Reich norteava nossos ramais e caminhos. Terapia com data para começar e terminar. E em grupo. Nada de muita falação e sim de muita interação física. Roberto costumava dizer que ”somos o nosso corpo”. Portanto, nada de amores distantes, falta de calor físico, abraços, carinhos, afagos e de beijos na boca. Assim, agíamos, assim fazíamos, assim existíamos.
Roberto costumava dizer que os homens, em geral, me amavam de um jeito completamente particular. Eles me viam só com uma cabeça ENORME, sem corpo, como se ele não existisse, por isso eu me transformava em musa inspiradora, vestal, ninfa, nenúfar. E isso aos 30 anos. Não aceitava tal observação e tinha enormes embates com ele. De fato, sempre tive muitos amigos homens, desde a adolescência. Creditava isso ao meu jeito pouco afeito a shoppings, mimimis e a outros traços consagrados, em geral, a mulheres. Isso os aproximava a mim. E só. Sempre gostei de ver a amizade entre homens etc. E até uma certa lealdade, pouco correta, nas falhas morais e éticas entre si. E aquilo era pouco visto entre mulheres, sempre muito, muito competitivas. E com máscaras, claro, ninguém compete com ninguém, somos todas amigas e tal.
Fizemos maratonas de vivas, em Visconde de Mauá, em Itatiaia, no Rio de Janeiro. Partíamos juntos, já desde os carros, com 4, 5 pessoas do grupo em um só carro de SP e de BH, pois Roberto tinha grupos lá, concomitantemente aos nossos em São Paulo. Ficávamos na Pousada Tiatiaim- sítio do psicoterapeuta. Era mesmo pra gente se misturar com a terra, com as águas gelaaaadas das cachoeiras, com o cheiro de gente, com a falta de eletricidade, com o fogo nas fogueiras e com silêncios. De 6ª feira a domingo, imersos em nós. Totalmente. Em corpo e espírito.
Havia um dia em que era vetado falarmos, nenhuma palavra. E fomos até o Pico do Itatiaia. O ar rarefeito, as dificuldades físicas, a falta de fala, tiradas todas as nossas bengalas, só a natureza em nossos corpos remexidos, suados, exercitando juntas, músculos, sentimentos pouco lógicos, sentindo, sentindo, sentindo. Meditar de cima, na subida, contornando pedras, trechos que deslizavam, sem palavras. Sabe lá o que é isso, sem dizer nada. Só sentindo.
Depois, ao final, banho gelado de cachoeira, gritos, catarses, prazeres, abraços, afagos, aprendizagens. Nas leituras em grupos, falava sobre a experiência vivida quem quisesse, sem opressão. Muitos permaneciam mudos, observando as falas dos companheiros, identificando-se, indo contra, mas sentindo, sem refrear sensações. Nenhuma delas.
Ali não era permitido o uso de drogas ilícitas. Só vinho, cerveja, pingas trazidas das Gerais e AMOR. Assim maiúsculo, que acredito ser a droga mais viciante que existe.
No dia da subida pelo rio até o tobogã, que ficava muito acima, era um coroamento do contato com terra, pedra, água, cachoeira. Roberto Freire ficava lá em cima, no tobogã, observando nossa subida por água, por pedras, até o prazer. Sim, o prazer de poder depois escorregar de lá de cima, feito criançada em dia de folga da escola, gazeteando as aulas, sei lá, bebendo orgasmos múltiplos no sentir. Muitos fugiam da subida, buscando acostamentos ao redor, via mata, não aguentavam aqueles obstáculos todos. Para alguns era muito difícil aquele enfrentamento. Covardia? Não, estavam em outro estágio ainda. Faziam outros atalhos, portanto.
Agora … sentir no corpo a dor de existir, o movimento em todos os órgãos internos, se revirando no corpo, brigando com os movimentos, brincando de gozar nas risadas, nos escorregões, nas quedas e raladas, uau, inesquecível mesmo.
Houve um instante em que, ao chegar lá em cima com meu amigo, disse ao Roberto que não escorregaria pelas pedras. Nunca soube nadar, nunca quis aprender sequer. Ele me impulsionou a ir, de leve me empurrou e fui. Afogada estava pelo volume de água que me envolvia, pensei rapidamente em minha filha criança que ficara com o pai em São Paulo e tive de subir à superfície. Meu amigo me buscou lá, me agarrou com vigor e me fez respirar, salva. Lindo. Inesquecível. Um desafio e tanto.
Os grupos, no fim da tarde, fizeram a leitura dessa expedição experimentando a natureza em seus corpos. Adoráveis recordações. A turma de BH retornou para as Gerais e nós para São Paulo.
Sei o que é sobreviver a naufrágios e gosto muito de quem é parceiro e me faz voltar a respirar. Sempre.
“O sertão é do tamanho do mundo.” “O sertão é sem lugar.” “O sertão é uma espera enorme.” “Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra.” “Sertão, – se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”