Pão de guerra

RIMA DO PÃO, poema de Marcos Pimenta

CASAMENTO DE PÃO E POESIA

Carregando pães na sacola
a poesia tem ímã
quer rimar
quer
sensibilizar
quer casar
pão com poesia

tocou na pessoa certa, poesia
neta do padeiro
filha do homem que plantava
sei o valor do grão
sei o valor do pão

ganhar o pão com seu suor
comer o pão que o diabo amassou
pão dormido
pão fresco
bom grão fará bom pão
dores com pão são menores
sei o valor do grão
sei o valor do pão

às vezes me pego deitada a desejar pão
levanto e deixo escorrer pão da boca
lambo a casca
degusto a massa
sabor de pão
sustento para fomes umas
sustento para fomes outras
sustento para fomes tantas

À FALTA DE PÃO, ATÉ MIGALHAS VÃO

Na infância o refrão ouvido e repetido
mas isso é pão de guerra
Era o tempo da falta de trigo no país
a guerra guardou o trigo somente para si
nossas gentes sem pão de trigo
pão de milho
pão disso, pão daquilo
pão duro
pão de anteontem
pão de guerra
desejos constantes de saborear pão
sem ser o pão de guerra
sem querer saber de nenhuma guerra

a guerra acabou
o pão de guerra insiste em ser pão
a busca eterna pelo pão sem guerra
vai a São Paulo
volta às Minas Gerais
percorre de norte a sul o país
não há mais pão sem guerra

A guerra acabou?

PERFUMARIA GENÉTICA

aqui tem padaria
inspiro
me inspiro
perfume de pão assando
está próxima, está nesse rumo
perfume de pão assando
aqui, é aqui
encontrei
agora é fragrância de chocolate
o bairro aspirando chocolate
os biscoitos da fábrica derramam chocolate em nós
delícias paulistanas
viver por aromas
saber dos aromas
sabor dos aromas
reconhecer os aromas
prazeres inigualáveis

Vô Zé, o padeiro

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Christianealves

Seria outra a nossa História

CAPITÃO

Brasil 
quem é que seria o dono da Amazônia
e por aqui quem viveria
se a Guanabara explodisse em gás e sangue?
Seria outra a nossa História.

Inda bem,
quem ama a vida não vai ser agora matador
quem ama a selva não vai ser agora lenhador
quem ama o índio não vai ser agora caçador

Brasil
teu capitão não aceita a ordem de matar
nosso capitão não aceita quem quer te entregar
o capitão não aceita a ordem da matança

Inda bem,
quem ama a vida prefere o ofício de salvar
quem ama a terra prefere o ofício de sonhar
quem ama mesmo prefere o ofício de amar

Brasil
teu capitão não aceita a ordem de matar
nosso capitão não aceita quem quer te entregar
o capitão não aceita a morte da esperança

Inda bem,
quem ama a vida prefere o ofício de salvar
quem ama a terra prefere o ofício de sonhar
quem ama mesmo prefere o ofício de amar.

Quem é esse CAPITÃO ?

Essa música de Fernando Brandt e Chico Buarque é uma homenagem ao Capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho (Sérgio Macaco), que se recusou a usar a equipe do Para-Sar (grupo de paraquedistas da FAB especializados em salvamentos) para praticar atos de terrorismo que seriam atribuídos à esquerda. Pela recusa e por denunciar o plano, o capitão e seu heroico grupo foi expulso das forças armadas pela ditadura.

Vídeo: Canal LUBOR

Anos de sonho, anos de chumbo

# tbt

VOU

Querer voar o mundo
querer conhecer o mundo
querer outros mundos

Ir-se.
Voar.

Estar, descer, subir, cair, voar.
Novidades de véspera.
Novidades de hoje.
Novidades de amanhãs.
Arriscar-se no ar, em terra, em corações.

Voar é preciso.
Voar é urgente.

1968

FESTIVAIS DA CANÇÃO

A televisão em preto e branco trazia as novidades em imagem. Em som tínhamos o rádio, as vitrolas com discos, vários discos, já dispostos no braço, para que fossem caindo e a gente ouvindo primeiro todos eles no Lado A e depois os virávamos e iam caindo, um a um, do Lado B. Mas os Festivais da Canção eram o novo frisson em nosso país. Pouca gente tinha televisão ainda. Elas vinham em um móvel mesmo, com pés, num gabinete, tinham seletor de canais (controle remoto, nem sonhávamos em saber o que era isso), ficavam nas salas de estar das famílias brasileiras. Os canais de TV eram poucos e a programação, em princípio, só existia à noite.

Anos de 1968, 1969, inebriavam nossos corações e mentes com os festivais da canção, os da TV Record, em São Paulo e os da TV Globo, no Rio. Esse último com fase nacional e internacional. Eram formadas torcidas organizadas imensas e as revistas especializadas em TV davam aquecimento a tudo que ia acontecendo nas semanas dos festivais. Assim, nos apaixonávamos pelos cantores, sabíamos as letras das canções de cor e as cantávamos dia e noite. Tantas ingenuidades!

Imagine um mundo pequenino, isolado, onde sua aldeia era o que havia de maior em seu coração e, de repente, a TV trazendo tudo aquilo de sonho, com gritos, apupos, pra dentro da sua sala. Era o máximo mesmo.

Nas escolas começaram a acontecer os festivais internos, surgindo uma luzinha de liberdade extracurricular para criação de canções, execução de instrumentos, apresentação etc. Lembro que em 1969 eu iniciava o curso normal, no Grajaú, no Rio, e foi lá que aprendi a ler poemas de uma forma especial, não que isso fosse ensinado ou incentivado, mas era escolhida quase sempre para fazer as leituras nas missas e eventos do colégio de freiras. Foi aí que aprendi a pausar nas frases, a dar entonações em destaque etc. Com marcações mesmo, como no teatro.

E no festival em 1970, o Colégio da Companhia de Maria fervia. Só mocinhas, entre 15 e 18 anos, compondo letras, cantando em grupos, ensaiando, uma beleza de integração de talentos. Imitávamos no que podíamos os festivais da canção a que assistíamos. Até no cenário do palco havia um grande violão pintado em preto e branco ao fundo. Queríamos mesmo estar integradas àquilo que acontecia no país. Mas estávamos mesmo?

(Imagem: Nostalgia TV)

A ditadura militar, ali bem perto de onde estudávamos, comia corpos no quartel da Polícia Militar, na Tijuca. De nada sabíamos, pouco era informado em jornais ”sobre terroristas, assaltos a bancos feitos por terroristas, o fantasma do comunismo, bicho papão comedor de criancinhas” . Criava-se o terror, o medo. Lembro-me do dia da execução sumária de Marighella, por exemplo, pois estávamos nós, as mocinhas, em casa de uma das amigas para um trabalho em grupo, e ela nos contou. Eu nem supunha quem fosse tal personagem.

A TV Globo saía do ar à meia-noite sob a execução do Hino Nacional, com a imagem de uma Bandeira do Brasil tremulando, uma voz em off oferecia dados sobre o crescimento do país e ao final concluía assim “Brasil, nunca fomos tão felizes”. Todas as noites.

PERCURSOS, CURSOS, RECURSOS

Do que sabiam, arriscavam.
O que esperavam buscavam.
Certos errados, errados certos,
umas rotas enormes a percorrer-se.
Beijos, abraços e corpos
mel, fel, rostos

Marcas, sinais, cicatrizes, dores
Marcas, sinais, tatuagens, prazeres.
Vidas que desabrocham novas e lindas
Vidas que nos surpreendem, novos e lindos.
Sonhos que desaguam qual cachoeiras sobre nós.

Dançamos juntos,
dançamos de rosto colado,
dançamos trançando nossos corpos.
Eu levo, eu conduzo
Eu me deixo levar, eu me deixo conduzir.

Prazeres indescritíveis, na voz de uma poeta quase infantil.

A MOCINHA

acreditava em amanhãs
desconhecia os perigos
achava que o amor era maior que tudo
sonhava com um companheiro a quem admirasse
pensava em ser cidadã e atingir suas metas
conhecia seus desejos
achava que conhecia seus desejos
queria ser amada do jeito que era
suspirava com o amor

RELÓGIO ANACRÔNICO

Como se fosse possível,
badaladas de um marcador de anos
irrompem em mim, sem aviso ou possibilidade de defesa.
Bate as horas
Bate as meias-horas
Bate os minutos
Bate os segundos.
Meu coração é todo corda.
Fujo dele
Tampo os ouvidos
Prendo a respiração
Grito mais alto que suas badaladas
Mas é tudo em vão.
As badaladas fora do tempo
insistem em acordar meus sentidos
já há tanto, sonolentos,
já há tanto, adormecidos,
já há tanto, amarelecidos.
Quase mortos.

”A vida não se resume em festivais”- Geraldo Vandré, Festival Internacional da Canção, RJ, 1968


Tbt é uma gíria popular que significa throwback Thursday, e pode ser traduzida do inglês como quinta-feira do retorno ou quinta-feira do regresso. A gíria, simbolizada por #tbt, é utilizada pelos usuários de redes sociais como hashtag para marcar fotos que se refiram ao passado e/ou que deem saudades.

Texto e poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal RWR

2- Canal 6stringsmonk

3- Canal Paulo Henrique E. Rodrigues

4- Canal Edson Cerqueira Felix

Curvas do rio

NASCENTES

Do que nasce o homem?
De terra, água, pedra, céu, fogo?
Do que nasce o homem, meu Deus?
Por degraus de pedras percorrem-se imensidões.
Somos o perfume da macela e do alecrim
Somos a alfazema da estrada de terra.
Somos o riso da menina-moça que nos observa e conta, conta …
Somos o nascer e o por-do-sol no mato
na revoada de asas.
Somos a noite de estrelas
cada uma delas conversando e nos sorrindo em particular.
Somos a voz do matuto que explica as maiores e mais complexas filosofias
a desafiar nossas reflexões.
Somos pedras, pedras, pedras
Movimentos de músculos, jogos de quadris, arremessos de olhares e risos
Somos risos de frases ingênuas, como anjos caídos de um céu daqueles,
mirando-nos,
mineiramente desconfiado.

Cada um de nós conversa com a estrela escolhida,
ainda que tão-tão distantes.
Estrelas ouvem, bem sei que ouvem.

RIOS RUMAM

rio companheiro
sento-me aqui junto a ti
para te ouvir
para me ouvir
às margens
à margem
medito sobre nada
medito sobre tudo
silencio comovida
acompanho-te menina
absorvo-te ave
escuto-te flor
observo-te nuvem
estamos nós
estamos sós
eu e tu
revelo-te meus sentimentos nesse olhar
entrego-te meu coração nesse sorriso

Curvas do rio
Elomar

Vô corrê trecho
Vô percurá u’a terra preu pudê trabaiá
Pra vê se dêxo
Essa minha pobre terra véia discansá
Foi na Monarca a primeira dirrubada
Dêrna d’intão é sol é fogo é tái d’inchada

Me ispera, assunta bem
Inté a bôca das água qui vem
Num chora conforma mule
Eu volto si assim Deus quisé

Tá um apêrto
Mais qui tempão de Deus no sertão catinguêro
Vô dá um fora
Só dano um pulo agora in Son Palo Triang’Minêro
É duro môço êsse mosquêro na cozinha
A corda pura e a cuia sem um grão de farinha

A bença Afiloteus
Te dêxo intregue nas guarda de Deus
Nocença ai sôdade viu
Pai volta prás curva do rio

Ah mais cê veja
Num me resta mais creto prá um furnicimento
Só eu caino
Nas mão do véi Brolino mêrmo a deis por cento
É duro môço ritirá prum trêcho alêi
C’ua pele no osso e as alma nos bolso do véi

Me espera, assunta viu
Sô imbuzêro das bêra do rio
Conforma nun chora mulé
Eu volto se assim Deus quisé
Nem dêxa o rancho vazio
Eu volto prás curva do rio

LEITOS

Onde me deito,
leito sagrado,
corre espuma
desce torpor
exala ardor
concebo imagens
imagino paisagens
coloro personagens.
Estou vivo em margens,
passagens de um rio
passagens de um corpo
passagens de um afluente
entornando vida em mim

CURSOS

Corro
socorro
morro
recorro
entorno
torno
sorvo
movo
retorno
novo
provo
renovo
curso
recurso
impulso
pulso …

DISCURSOS

Falo
calo reparo ensaio falo
Penso
sinto penso sinto penso sinto
Morro
entrego nego renego corro
Escorro sangue
por margens
ribeiras
mangues
Encharco peles
ensaboo mãos
enxáguo braços
pélvis e dorsos
Renasço verde
repleto de seixos
ardendo em chamas
colhendo raízes
em mim.

Em tempo: Se for ler à noite, deixe o rio adormecer você. Sonhe com beira de rio, onde se estende seu corpo, mirando o céu – com ou sem estrelas – isso é relativo. Amar a natureza é amar também os que estão a seu lado. Ser amado é muito bom. Mesmo.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: rios de Minas

Vídeos:

1- Canal Various Artists – Topic

2- Canal Sem Stress

Encontro

LIGAÇÕES

Aguarda telefonemas
espera convites
anseia por encontros
aspira beijos, frases, toques

O telefone toca
Ouve a voz
sabe que ele fala com ela
sabe que ele fala para ela
pergunta
responde
conta

Ouve a voz
Saboreia a voz
Dispara seu coração
Acalma seu coração
Sabe que ele fala para ela
Sabe que ele fala com ela.

CAPA E ESPADA

Virgínia conhecera, quase que sem querer, Pedro Paulo naquela rede social. De verdade, nem sabia direito como era o funcionamento daquela engrenagem ali. Estava bastante acostumada a falar com a boca, olhando os olhos, a boca, a pele dos interlocutores. Aquilo tudo era novidade, mistério e risco. Não sabia como jogar. E parecia jogo aquilo tudo. Divertia a interação entre as outras pessoas e, de certa forma, eles lhe faziam companhia. Era até engraçado.

Virgínia gostava de gente espirituosa, irônica na medida, e de vasto capital de leitura. Assim, iam naquela rede de navegações.

Dos contatos em grupo, passaram a se falar na salinha de bate-papo. Muito receio de Virgínia em falar com quem não conhecia, em fazer revelações que talvez não devesse. Foram indo. Adorava o jeito divertido de Pedro Paulo, com uma rapidez de raciocínio invejável. Só não gostava quando ele repetia aqueles modelitos masculinos de falar sacanagem pra ver qual a reação da interlocutora e mostrando-se , vendendo-se mesmo, por um preço muito mais alto do que valeria. Típico arquétipo daqueles ”que são de Marte” – digamos assim.

Na verdade, Virgínia queria encontrar Pedro Paulo, porque de papinho de colegial já tinha vivido décadas atrás. Tomou a iniciativa e buscou endereço, telefone e tudo o mais. Queria ouvir a voz mesmo.

Pedro Paulo reagiu com surpresa. Não era casado, vivia sozinho. Por que aquela reação, então?

OCUPADO

Distantes
telefonemas difíceis
ausência de vozes
ausência de corpos
tentativas frustradas

Ocupado
Desligado
Enguiçado
Dedo no disco
disco na vitrola
vitrola no corpo
corpos distantes
vozes distantes

Ligações incompletas
desejos interrompidos
Mudez eterna
nudez eterna
surdez eterna.

Ligações inconclusas
gestos inconclusos
falas difusas
sentimentos intermitentes

TELEFONE, MEU AMOR

Não sabe escrever mensagens
não sabe mandar torpedos
não aderiu ao zap unânime

É falha
é folha
é flor
é fruto
tem sementes.

Não mente
silente
buscou antes
procurou antes
indagou antes
explicou antes
arriscou antes
telefone congestionado
ligação interrompida
mensagem não enviada
caixa-postal cheia

Esse telefone não grava recados.
Telefone

Aceitam-se ligações.

A TARDE É REAL

gosta de um corpo
gosta de um rosto
gosta de um sorriso
gosta de uma pele
gosta de um lastro
gosta da história
gosta das raízes
gosta da árvore-mãe
gosta dos galhos-irmãos
gosta das sementes-frutos
gosta do percurso
gosta das veredas
gosta da tarde às tardes
todas as tardes

O tempo passou. Os anos também. O encontro encanto ou desencanto teria de acontecer.

Virgínia ruma para a rota. Pedro Paulo irá?

E você leitor, iria?

Escritora, roteirista, apresentadora e atriz falecida no sábado, aos 49 anos

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Maria Gadú

Feminina

FRUTO DO MEU VENTRE

Noutras eras, eras
Eras um metatarso apenas
Eras uma íris semovente
Eras um lábio inferior
Eras um antebraço avulso
Eras um lóbulo sem par
Eras um mamilo improdutivo
Eras um ventre desempareado
Eras uma meia face de esperas
Eras um acordo tácito de solidão
Eras uma palma vez ou outra estendida
Eras um feixe de antessalas
Eras um sopro de noites sem luas
Eras um estrato de si em uma
Eras um compêndio de interrogações.
Eras canteiro a semear
porta a se abrir
porto a ancorar.

Deu-se a polinização
Deu-se ao beija-flor
Deu-se ao sol com lua, lua com sol
Encontraram-se e geraram um par
Depois o segundo.
A infinitude ensandeceu o corpo
A completude fez-se espírito.

Dois.
Três.
Quatro
Agora cinco.
Células de si mesmos.

Até sempre.

MULHER

Você é pai? Pai de menina? Sabe como lidar com ela? Os tempos vêm mudando, rapidamente. Ou lentamente? A gosto de quem sabe refletir.

Tenho filha e filho. Sei das duas experiências e observo, constato e reflito sobre o ser feminino (gente feminina) e o ser feminino (modo de agir feminino). Nem tudo é questão de geração, de educação machista. de ensino de prendas domésticas, de doutrinação para o ser feminino tornar-se esposa e mãe. Constato que não. Sobretudo, se a essência feminina não estiver sufocada, disfarçada, amordaçada e atualizada, para seguir os novos padrões estabelecidos (tal como lá, cá também).

Depois de ler e ouvir vários depoimentos pessoais e coletivos sobre os aspectos femininos, chego a algumas conclusões – não totalmente fechadas – que me permitem visualizar certas mudanças.

Como temos vivido numa sociedade do descartável, do efêmero, do circunstancial quase sempre, a entrega se tornou um bicho de sete cabeças, algo improvável, inoperante. Assim é que tenho lido mães jovens de 30 e alguns anos escrevendo livros para ”desmistificar a gravidez e a maternidade” e questões relativas a elas. Ora, como assim? Quem mistificava a maternidade? É preciso saber o que é ser MÃE (assim também como o que é ser PAI). Cuidar, acarinhar, fortalecer, semear não só a alimentação física, mas a moral, os valores, os sentimentos. Ora, ora, isso se faz com plantinhas, animaizinhos, com seres vivos em geral. É preciso ter responsabilidade sim. Não se pode viajar e abandonar as ”crias” a sua própria sorte. ”Não quero ter animal porque me prende muito. Não gosto de plantas porque exigem muitos cuidados, prendem muito a gente”. Opa, que ser é esse que só pensa em si mesmo, em seus prazeres, gozos e realizações pessoais? Como se pode desejar que eles pensem em conquistas sociais para todos, em bem-estar para todos, se não querem se responsabilizar nem por uma planta, um animal?

Sabe os vasinhos da janela, os canteiros, a roça, a criação? Então, é preciso molhar, cuidar, retirar folhas secas, alimentar a terra … e depois se encantar com o perfume das flores e dos frutos, a cor dos verdes, o som dos bichos todos e ver – ocasionalmente – um ou outro morrer. Não se pode querer apenas ter prazer, sem correr riscos, sem se responsabilizar por algo, sem gastar tempo com algo.

Se uma mulher entrou no rito da gestação, é necessário sentir as alegrias e os percalços desses meses, até porque maternidade é para sempre. Ora se não é.

Isso não tem nada a ver com ter sido criada para submissão, opressão etc. Ou tem?

Tenho visto mães homossexuais gerando filhos, encantando-se com a procriação – as duas como mulheres, em seus sentires; outras ocasiões uma delas mesmo como transexual masculina, mas guardando a vontade intrínseca de ser mãe. É claro que há mulheres que nunca desejaram ser mães, há que se aceitar isso como decisão individual. Portanto, é mister saber o que é ser feminina.

Mulher tem jeitos de ser bem diferentes dos homens. Quem quiser negar isso estará no mínimo sendo hipócrita – talvez o façam como forma de se impor, de crerem assim estar se fazendo respeitar, de se mostrarem agressivas, como viram tantas vezes os homens fazerem.

Mulher tem colo, tem vontade de aninhar em seu casulo os seres todos. Mulher quer ser respeitada nas diferenças de si. Mulher, de fato, não aceita ser ridicularizada por seu romantismo – quase inerente – por seu sexto sentido, por querer ser a galinha com seus pintinhos por perto – mesmo que não sejam apenas os seus – podem ser patinhos, peruzinhos, gansos, cisnes e outros bichos. Mulher é cuidadora, gosta de cozinhar, de cantar, de arrumar, de enfeitar, de se entregar. Seja a quem necessitar ou não.

MADRUGADA

Quem está aí?
Ah, é você.
Entre. Fique imóvel.
Mantenha as mãos para trás.
Ouça.
Sinta.
Veja.
Quem é essa mulher?
pimenta rícino fel sangue
Quem é essa mulher?
pedra pau cuspe veneno
Quem é essa mulher?
tango rima ritmo gozo.
Quem é essa mulher?
fogo ventre peito bunda
Quem é essa mulher?
vômito catarro urina suor
Quem é essa mulher?
céu-inferno manto sangrento
Quem é essa mulher?
ódio inveja rancor estupor
Quem é essa mulher?
Quem está aí?
Ah, é você.
Entre.
Ouça.
Sinta.
Veja.

Talvez desagrade a muitos, contudo costumo expressar em palavras, orais ou escritas, o que reflito e observo sobre fatos e situações.

Trecho do filme Feminices, de Domingos Oliveira

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal José Freitas

2- Canal Dedina Bernardelli

”Eu te amo”

AMOR MAIÚSCULO

a terra tem cheiro 
a chuva lavou a terra
eu amo a terra
minhas mãos sentem
minhas mãos tocam a terra
paro, aterrisso na contemplação
sou braço da terra
sou perna da terra
sou coração da terra

a terra tem cor
o vento arejou a terra
eu amo a terra
meus joelhos se dobram a ela
meus pés a acariciam
meu ventre guarda suas sementes
sou cio da terra

a terra tem sentimentos
o verde inaugura suas entranhas
eu amo a terra
meu colo nina suas flores
meus seios amamentam seus frutos
germino suas sementes
sou gente

ESPÍRITOS DA FLORESTA

Espíritos domesticam
olhares, sentires e ficares,
pelo cheiro, pelo vento,
pelo sons do mato do sertão.
Espíritos atraem por rochas, por águas, por céus.
Espíritos nas florestas
polinizam almas inquietas
Para sempre.

RAÍZES DE HOMENS

Há certos homens que têm caules vigorosos.
São eles que semeiam a terra
afagam sementes
exalam perfumes de flores
recolhem os frutos doces.

Há certos homens que encostam as mãos na terra
a fortificam com seus dedos ásperos
a revolvem com palmas ardentes
a fertilizam com braços seguros.

Há certos homens que têm raízes em lugar de pés,
fincam-se inexoravelmente.

GRITO DE PAVOR

Minha pele em chagas
Meu tronco em dor
Quem me socorre?
Quem me vivifica?
Quem me reanima?
Minha casca em chagas
Meu dorso lancetado
Meu colo esvaziado
Quem me socorre?
Meu útero semimorto
Minhas folhas sobreviventes
Meu de dentro se esvaindo
Meu de fora resistindo.
Quem me socorre?
Um fogo de fora
apagando
um fogo de dentro.
Quem me socorre?
Quem me vivifica?
Quem me reanima?
Um broto.

PEGADAS

São pegadas essas que deixo aqui
São pegadas as que deixas aí
São incursões de ti em mim
São passos molhados
pelas águas
pelas lágrimas
pela paixão.

Pegadas é só o que se deixa
na natureza, então.

Salve, salve cada matuto, cada roceiro íntegro, autêntico – sem cabotinismos – que faz com que a gente ainda acredite nos seres humanos e em suas verdades. Tenho conhecido alguns e são eles que restam, com dignidade e encantos originais.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Olho d’Água

2- Canal Odonir Oliveira

3- Canal Riccardo d’Alterio

Guerra & paz

A GUERRA

Ia pela rua
caminhava desolado
tiros por todos os lados
mandou cercar
mandou atirar
mandou matar
sem recuar

Ia pela rua
o terror perseguido 
o grito engolido
o gemido
o cheiro vermelho do sangue espesso
o mugido
do gado criança
do gado homem
do gado mulher

Ia pela rua
acuado
o ponto de ônibus evacuado
o medo disseminado
o aviso repetido
o horror nos postes acesos
os escombros da guerra nos corpos
os escombros da guerra nas mentes

Ia pela rua
em desespero
foragiu-se no beco
estava a salvo
o existencialismo não satisfaz mais
o individualismo não sacia mais

Ia pela rua

A DESTRUIÇÃO

pode bater
pode espancar
pode queimar
o museu
as florestas
os índios
a terra
os sonhos

pode ofender
pode ameaçar
pode vilipendiar
pode contaminar
pode sufocar
pode amedrontar
pode entorpecer

pode dominar
pode subjugar
pode desacreditar
pode incinerar 
sem futuro
sem vidas

fumaça nos olhos
fumaça nas peles
fumaça nas entranhas
fumaça de nação

Não !

A PAZ

Encolhido no apartamento
bebe o de beber
come o de comer
tem medo das ruas
tem vontade de corpos
tem vontade de pelos e peles
tem vontade de viver
pensa em si
pensa em ti
pensa no nós

os nós
os tempos
os ventos
as armadilhas
os sequestros
as prisões
a opressão

quer a vida
quer o sol
quer a rua
quer a lua

em pensamento chama
em pensamento clama
age
enquanto a aguarda
toca uma canção

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1-Canal Roupa Nova

2- Canal Nelson Cordeiro

Verei você de novo

LUNA LINDA

Faz 2 meses que nos separamos
Onde você está?
Tem comido cascas de melão?
Ontem, sem querer, me peguei cortando umas pra você
Onde você está?
Doei todas as suas coisinhas
outros cães também têm que ficar cheirosos e bonitos
Os ossinhos – eram muitos- eu os dividi com muitos cães
Guardei a sua plaquinha de identificação
com seu nome e nosso telefone
Aí onde você está tem cachorros amigos?
As ruas aqui estão muito sem vida sem você,
minha companheirinha linda.
Mesmo cega, diabética, sem descer escadas,
você e eu íamos seguindo, sempre juntas
Sinto muito a sua ausência
ao acordar
ao entrar, ao sair
ao ir dormir
17 anos de união
não são pouco
Guardarei você em mim
Para sempre.

FILME: Meu amigo Enzo, em cartaz. É muito amoroso, sem pieguismos, fala de carros de corridas, do Aírton Senna e tem como protagonista-narrador um cão. Vale assistir.

Poema: Odonir Oliveira

Fotos da LUNA (as 3 últimas do dia em que morreu)

Vídeos:

1- Canal Acoustic Trench

2- Canal Fox Filme do Brasil

Nuvem cigana

“O poeta é como o príncipe das nuvens. As suas asas de gigante não o deixam caminhar”  – Charles Baudelaire

CARAVANAS

Olho por dentro
desertos
vazios íntimos
moradia oca
abismo antropofágico.

Invado em mim as revoltas
Invado em mim todas as injustiças
Invado em mim todas as exclusões
Invado em mim todos os descartes

Cuspo escarro vomito
Abro portas janelas horizontes
Evado de mim a dor
Evado de mim as dores
Evado de mim predileções vãs
por mistérios magias imantações chãs.

Olho para fora
Fora estará o alívio ou a consternação
Fora estará o apanágio ou o desespero
Fora estará a suavidade ou a consumição.

Estradas
Caminhos
Veredas
Invernadas

Caravanas, reflexão.

OS RIOS DAS MINHAS ALDEIAS

Aldeias, tive algumas. Sempre bebendo nelas as melhores águas de seus rios, lavando minhas lágrimas em suas margens. Aldeias, tive algumas. E aproveitei tudo nelas, raspando os tachos, lambendo os dedos. Até os fins. Em primeira pessoa, sem me omitir, sem fugir, recebendo todos os nãos possíveis e os sinais de sim. Aprendi a cair, sofrer muito, usar Belladona nas dores, arnica no físico, Ignácia amara no espírito e levantar, seguir.

Nos anos de 1982 e 1983, participei dos primeiros grupos de Somaterapia, do psiquiatra e psicoterapeuta Roberto Freire – já falecido. Terapia corporal, com muita energia, corpo, dança e música. Reich norteava nossos ramais e caminhos. Terapia com data para começar e terminar. E em grupo. Nada de muita falação e sim de muita interação física. Roberto costumava dizer que ”somos o nosso corpo”. Portanto, nada de amores distantes, falta de calor físico, abraços, carinhos, afagos e de beijos na boca. Assim, agíamos, assim fazíamos, assim existíamos.

Roberto costumava dizer que os homens, em geral, me amavam de um jeito completamente particular. Eles me viam só com uma cabeça ENORME, sem corpo, como se ele não existisse, por isso eu me transformava em musa inspiradora, vestal, ninfa, nenúfar. E isso aos 30 anos. Não aceitava tal observação e tinha enormes embates com ele. De fato, sempre tive muitos amigos homens, desde a adolescência. Creditava isso ao meu jeito pouco afeito a shoppings, mimimis e a outros traços consagrados, em geral, a mulheres. Isso os aproximava a mim. E só. Sempre gostei de ver a amizade entre homens etc. E até uma certa lealdade, pouco correta, nas falhas morais e éticas entre si. E aquilo era pouco visto entre mulheres, sempre muito, muito competitivas. E com máscaras, claro, ninguém compete com ninguém, somos todas amigas e tal.

Fizemos maratonas de vivas, em Visconde de Mauá, em Itatiaia, no Rio de Janeiro. Partíamos juntos, já desde os carros, com 4, 5 pessoas do grupo em um só carro de SP e de BH, pois Roberto tinha grupos lá, concomitantemente aos nossos em São Paulo. Ficávamos na Pousada Tiatiaim- sítio do psicoterapeuta. Era mesmo pra gente se misturar com a terra, com as águas gelaaaadas das cachoeiras, com o cheiro de gente, com a falta de eletricidade, com o fogo nas fogueiras e com silêncios. De 6ª feira a domingo, imersos em nós. Totalmente. Em corpo e espírito.

Havia um dia em que era vetado falarmos, nenhuma palavra. E fomos até o Pico do Itatiaia. O ar rarefeito, as dificuldades físicas, a falta de fala, tiradas todas as nossas bengalas, só a natureza em nossos corpos remexidos, suados, exercitando juntas, músculos, sentimentos pouco lógicos, sentindo, sentindo, sentindo. Meditar de cima, na subida, contornando pedras, trechos que deslizavam, sem palavras. Sabe lá o que é isso, sem dizer nada. Só sentindo.

Depois, ao final, banho gelado de cachoeira, gritos, catarses, prazeres, abraços, afagos, aprendizagens. Nas leituras em grupos, falava sobre a experiência vivida quem quisesse, sem opressão. Muitos permaneciam mudos, observando as falas dos companheiros, identificando-se, indo contra, mas sentindo, sem refrear sensações. Nenhuma delas.

Ali não era permitido o uso de drogas ilícitas. Só vinho, cerveja, pingas trazidas das Gerais e AMOR. Assim maiúsculo, que acredito ser a droga mais viciante que existe.

No dia da subida pelo rio até o tobogã, que ficava muito acima, era um coroamento do contato com terra, pedra, água, cachoeira. Roberto Freire ficava lá em cima, no tobogã, observando nossa subida por água, por pedras, até o prazer. Sim, o prazer de poder depois escorregar de lá de cima, feito criançada em dia de folga da escola, gazeteando as aulas, sei lá, bebendo orgasmos múltiplos no sentir. Muitos fugiam da subida, buscando acostamentos ao redor, via mata, não aguentavam aqueles obstáculos todos. Para alguns era muito difícil aquele enfrentamento. Covardia? Não, estavam em outro estágio ainda. Faziam outros atalhos, portanto.

Agora … sentir no corpo a dor de existir, o movimento em todos os órgãos internos, se revirando no corpo, brigando com os movimentos, brincando de gozar nas risadas, nos escorregões, nas quedas e raladas, uau, inesquecível mesmo.

Houve um instante em que, ao chegar lá em cima com meu amigo, disse ao Roberto que não escorregaria pelas pedras. Nunca soube nadar, nunca quis aprender sequer. Ele me impulsionou a ir, de leve me empurrou e fui. Afogada estava pelo volume de água que me envolvia, pensei rapidamente em minha filha criança que ficara com o pai em São Paulo e tive de subir à superfície. Meu amigo me buscou lá, me agarrou com vigor e me fez respirar, salva. Lindo. Inesquecível. Um desafio e tanto.

Os grupos, no fim da tarde, fizeram a leitura dessa expedição experimentando a natureza em seus corpos. Adoráveis recordações. A turma de BH retornou para as Gerais e nós para São Paulo.

Sei o que é sobreviver a naufrágios e gosto muito de quem é parceiro e me faz voltar a respirar. Sempre.

O sertão é do tamanho do mundo.”
“O sertão é sem lugar.”
“O sertão é uma espera enorme.”
“Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa, ainda encontra.”
“Sertão, – se diz -, o senhor querendo procurar, nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem.”

Salve Rosa.

O João Guimarães.

Texto e poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

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