Dizem por aí que quem usa cuida. Pode ser. Mas em casa de
poeta, marimbondo pode ser fatal.
Estando mais de 50 dias distante de jardins, galos e quintais, com 5 asas
partidas, sem poder voar, confiando em mãos alheias, não em mãos que sentem, mãos
de poeta, negligenciando – a contragosto – flores e passarinhos, a surpresa.
Deu que habitantes alados, sem terra, sem teto invadiram a
propriedade. Com propriedade. Seria? Trata-se de recanto encantado, repleto de
vermelhos e rosa, verdes-refúgio e éden de canarinhos, bem-te-vis, sabiás,
beija-flores, maritacas e poeta.
Não fora autorizada nenhuma edificação, tampouco o habite-se
de marimbondos ali.
Devidamente documentada a morada invasora no primeiro pé de mexerica, considerou-se a hipótese de não reprimir a colônia. No entanto, passaram a se achar os donos do pedaço. E poeta, quando começa a voar de novo, bate asas, reapropria-se de seu território e escreve.
Ao namorar suas plantinhas, conversar com suas rosinhas, encantar-se com as palmas cor de cenoura, todas elas sedutoras, reparou no voo do beija-flor ao redor delas. Permaneceu poeta ao encantar-se com aquele bater de asinhas tão apaixonadamente terno. Foi aí que – por ciúme ou crueldade – um marimbondo desceu de seu apartamento e, num átimo, picou a poeta. Em seguida vieram todos os demais moradores e vilmente trataram de picar seus versos e seu lirismo.
Poetas são seres lentos, doem-se muito por agruras, vilezas, injustiças e sofrimentos alheios, o que dirá por seus próprios.
Tentando evadir-se, a poeta, ainda sem poder voar totalmente, que com asas adoecidas, vê-se picada em várias partes do corpo, nas mãos, no rosto. Dores demais, inchaços, vermelhidões.
Recorre ao doutor que lhe dá as orientações, de maneira virtual, e ri.
O anjo da guarda da poeta havia entregue sua carta de demissão, alegando trabalho escravo ‘’Ninguém dá conta de tanto serviço. Em 11 meses, essa poeta me deu mais trabalho que a Academia de Letras inteirinha, incluindo-se os imortais já mortais. Não suporto mais’’
A poeta ouviu tudo e pediu que ele reconsiderasse.
Ardida, queimando em verso e prosa, ajeitava com a mão direita tijolinhos de gel congelados, dispostos em um embornal, qual uma mochila, sobre as costas, enquanto que com a mão esquerda congelava as demais picadas do rosto. De asas ainda quebradas, em convalescença, suportava tudo porque sabia que passaria, ah, iria passar, teria que passar.
No dia seguinte, a saga dos homens que vieram para
exterminar o condomínio dos invasores de quintais alheios. Foram necessários 3
homens diferentes, cada um cheio de delicadezas e respeito com o jardim e as
flores da poeta – que sabiam ter de ser assim. Mas, um deu continuidade ao serviço
do outro e, por fim, chegou a termo a desocupação.
Como tudo tem seu lado bom, a poeta sentada no banco do jardim, na tarde, admira a beleza da correria, da brincadeira de pique-esconde das maritacas pelas árvores e telhados. Mas … surge o visitante mais ilustre de todos, ao som do canto dos bem-te-vis, surge ele, o tucano. Lindo, menino, formoso, fascinante.
A poeta vive onde há 2 bosques, um em cada extremidade da rua, portanto personagens alados desfilam o dia inteiro por ali.
Filhos – em cidade distante, e em país no outro hemisfério – se apavoram com mais essa peleja entre o perigo e a poeta. Afirmam que a escritora vivera um halloween nas Gerais.
Pois então … já ela crê que o anjo da guarda tenha reconsiderado o pedido de demissão.
Viveste antes de mim as ruas do Rio nove anos antes te conheci depois quando eu já sabia ler quando chegaram os festivais da canção quando guria despertava para as paixões teus olhos, tua presumida timidez tudo era sonho em ti fui aprendendo a ler o mundo tua ajuda foi imprescindível seguimos
CHICO, CIDADÃO BRASILEIRO
menina-moça tola, alienada, romântica Chico vai dando os tons é poesia é fantasia é país é nação vai poetizando o ar musicalizando os tempos vai com a lírica feminina vai com a lírica da democracia vai com as mãos dadas a nós aqui na Itália o amor pela companheira as parcerias com os amigos as dores e fragilidades humanas em si, em nós seguimos
CHICO, AMOR CONTEMPORÂNEO
Homem explícito homem verdadeiro um amor de cada vez pai de seu tempo avô de seu tempo companheiro dos parceiros companheiro das parceiras coerente com seu discurso amoroso político social democrático Chico romancista Chico teatrólogo Chico autor infantil Chico das trilhas sonoras inesquecíveis filmes, espetáculos de dança musicais, óperas Chico operário Pedro Pedreiro da cultura nacional na Construção, sempre como se fosse a última leitor admirável lançando cantores, músicos Chico, um ser humano maior que Fernando Pessoa maior que Camões …
Em tempo: Lembro-me de um episódio em que Chico caminhando na praia, como gosta de fazer sempre, bermuda, camiseta e boné, foi interpelado de forma ”veemente” e insistente por uma mulher que gritava pra ele frases de plateia assediadora. Respondeu, mais ou menos assim, me respeite, moça, sou um senhor de idade. O que demonstra que sabe viver de forma coerente com a idade que tem.
Outra vez, minha amiga voltava ao Brasil e no aeroporto ficou frente a frente com Chico no balcão de um café. Apenas cumprimentou-o, sem alarde, sem exageros, sem selfie, porque Chico merece respeito por sua obra e por sua vida.
cheiro de manga aroma de abacaxi perfume de pernas essência de amor odor de sinais eflúvio de bocas emanação de cores, bálsamo contra desencantos fragrância de vida
OLHARES
repousa em mim a luz do sol a sombra da tarde o perfume das minhas rosas repousa em mim a franqueza do ser a dignidade do existir repousa em mim a carícia do vento da serra o sol quente da altitude repousa em mim a paz da fraternidade a luta pela igualdade repousam em mim os verdes, os amarelos, os rosas, os vermelhos sou planta
BENDITAS ALMAS
Benditas as conversas de passarinhos Benditos os que ouvem os passarinhos Benditos os que permanecem imóveis frente a passarinhos Benditos aqueles que têm colorido nas mãos, qual seus companheirinhos, salpicando-lhes alimento em horas combinadas do dia. Benditos os que veem bicos, asas, penas e voos como mais que bicos, asas, penas e voos. Benditos os escolhidos pelos passarinhos para serem seus semelhantes, quase iguais.
SILÊNCIOS EXTERNOS
tudo em meio a bem-te-vis sinfonias que dialogam cores que saltitam frente a frente olho, reparo, vejo quieta sinto quieta penso quieta apaixonada estou quieta apaixonada fico olhos fechados perfumes ao redor alecrim, tomilho, rosas flores de laranjeiras, de romãs, de pitangas frente a frente sinto estou fico
MEU QUINTAL
meus pássaros cúmplices meus pássaros cúmplices me trouxeram as sementes me enfeitaram o quintal árvores que vi crescer árvores que vi brilharem árvores árvores árvores belezas que vi resplandecerem no meu quintal pertinho de mim chegando juntinho de mim árvores que semeei árvores que encontrei flores que chegaram sem que eu pudesse por elas nada fazer nada impedir nada coibir só vê-las em seu florescer
POSTOS DE ABASTECIMENTO
Há instantes em que nos sugam até o espírito Há fases em que nos vampirizam todas as emoções suaves Há momentos de tamanha crueldade e desprezo a nos anular Há voltas que destilam revoltas em corações esmigalhados Há vazios perfurantes de facas sangrentas sobre nossa voz Há que se abastecer os dias e as noites Há que se beber do vinho tinto dos sorrisos Há que se saber ler a si mesmo sem as leituras alheias Há que se manter de pé mesmo após as rasteiras vis Há que se abastecer de vida com amigos com flores e cantos com risadas compartilhadas Há de haver postos de abastecimento em nós.
Poesias: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal: flores dos meus jardins
Fátima Guedes é uma cantora e compositora a quem admiro desde os anos de 1970. Encantam-me seus versos, seu timbre, seu eu-lírico. A quem ainda não a conhece, encante-se com suas canções no Youtube.
o dono, a dona o filho dos donos o capataz os peões a criançada colhendo a criançada carregando a criançada ali de janeiro a janeiro de domingo a domingo pode ser assim? pode continuar assim? sem fim?
SEMEADURA
não sei nunca soube não pude nunca pude não leio não escrevo não compreendo nunca fui nunca pude não sei
FAZENDA ESPERANÇA
PRESENTE FUTURO
5 da tarde caminho de volta barrigas cheias de livros barrigas cheias de esportes barrigas cheias de músicas barrigas cheias de narrativas cansaço no corpo cansaço das travessias corpo reage com esperança corpo reage com energia corpo reage com alegria dormir sonhar presente futuro de seres humanos semeaduras de afeto semeaduras de atenção semeaduras de cuidados
presente germinando amorosidades
SÍTIO SOLIDARIEDADE
BONS FRUTOS
Enem e, nem, também aditivas mas, porém, todavia, contudo adversativas o bem o mal o bom o mau vai, segue, luta, resiste união, agrupamentos, intenções semelhantes meninos e meninas rapazes e moças Enem vai seu rumo promete sua meta na seta reta união, agrupamentos, intenções vai, segue, luta, resiste vai ser técnico pode ser vai ser mestre pode ser vai ser pesquisador pode ser vai ser doutor pode ser
VIVENDA DOS OLIVEIRA
FLORAÇÃO
Na rota, um porto Na reta, um ponto insípido inóspito infértil No tronco, uns galhos Nos galhos umas folhas secas opacas estéreis Alma no trajeto Curvas no caminho amargo Gotas de perfumes Pingos de cores Chuvas de flores fertilidade, sedução produção Poesia Caminhos doces então.
O mestre Paulo Freire ensina a força do trabalho e as diferenças sociais.
Ah, se fosse, princesinha ah, se fosse eu penteava seus cabelinhos bem devagarinho eu ia lhe emprestar todos os meus versos meus colares, meus anéis, minhas pulseiras minhas pedras, minhas conchas, meus livrinhos Ah, se fosse, princesinha ah, se fosse eu ia ler historinhas e poemas noite e dia, dia e noite pra você eu ia expurgar qualquer dor, machucado, gripe, tosse Ah, se fosse, princesinha ah, se fosse eu ia assoprar pra bem longe todas as mazelas, todo o ódio e rancor circundantes eu ia assoprar pra bem perto, bem pertinho todas as alegrias, todos os risos, todas as gargalhadas todas as estrelinhas, todas as borboletas, todas as joaninhas Ah, se fosse, princesinha ah, se fosse minha !
segue, vai, ruma magistério no estadual integral com mínimo salário estuda segue, vai, ruma seis irmãos vão sábado-domingo vende pipoca, cachorro-quente em frente ao estádio lotado a mãe, os irmãos vendem segue, vai, ruma aulas da semana mana pauliceia desvairada trem, ônibus, canelas grana pouca viaja nos sonhos dorme no trem que vai e vem subúrbio que nem formatura, troféu dos céus falta cascalho pra FUVEST salva pelo ENEM segue, vai, ruma facul privada financiada noturno no contra-turno trampa com a meninadinha é fadinha escolinha na favela concurso público professora, pedagoga segue, vai, ruma tudo é duro tudo é árduo tudo é garra age
sabe na pele sente na pele sem discurso age
COM A ESTRELA NA TESTA
bronze de cidade maravilhosa ri, segue, ri, segue enfeita a paisagem todos querem todos notam todos seguem doutora pediatra consultório particular zona sul engajada nas passeatas gritos nos cortejos políticos ap. de frente pra Lagoa ri, segue, ri, segue democrata socialista republicana chora com as crianças carentes soluça com as injustiças cristã sem igreja, cristã escolas particulares viagens ao exterior heranças dos pais ap. de frente pra Lagoa democrata socialista republicana sem clinicar na favela sem doar de seu vota certo desfila nas procissões políticas pela orla ri, segue, ri, segue democrata socialista republicana
Salve Eunices, Mônicas, Célias e tantas.
Salve Dr. Mauro , mauromutum, médico de família do Posto de Saúde, sem consultório particular, ”internacionalmente” reconhecido no bairro do Carmo. (Por seus méritos, recebeu de presente de Luís Nassif, um livro com aquela bela dedicatória e entregue pelas crianças do Clubinho da Leitura, em 2015).
Leia também: ”Quem tem mais mérito? É preciso ver a largada”
Depoimento de Marcos sobre ”Os Caminhos do Sertão- caminhada coletiva pelos sertão de G.Rosa”, em julho de 2019
Cheiro rosa de poeira
Ainda penso sobre o peso colorido das poeiras daquele chão. O cheiro que o ar transportava e levava, o calor intenso que exalava da terra e dos corpos que seguiam em uma espécie de romaria rumo a uma terra prometida e já de posse tomada. As pessoas, de diversos credos, tamanhos, papéis sociais e vontades, portavam um cajado de bambu que se transmutava no corpo equestre, cuja cabeça era encoberta por fios de lã entrelaçados para coroá-lo. Por um instante, pensava no velho e bom Rosa ao ver, do alto, a cena dos tais peregrinos: talvez, deliciava-se com boas gargalhadas ao dizer que sua obra, na verdade, era apenas para ser lida; talvez, já encantado, via com os olhos marejados a intensidade do movimento dos passos de pés machucados e das almas sedentas em sertão plenas. Entendia que naquele universo onde reinam os interiores pessoal e da nação, nada pode se desejar, porque, de fato acontece. Desde a pequena vontade de comer pipoca até o refrescar a garganta com um geladinho de fruta do cerrado: passos a frente, o milho em forma de noiva, ganhava no gergelim da rapadura de Seu Raimundo, sabor igual e, ao descer a ladeira sobre os cascalhos e sob o sol escaldante, meninos com cor de jambo traziam em suas caixas térmicas porções mágicas congeladas para saborear. Sim. Nada pode se desejar. Ou, melhor, pode, sim!
É que o sertão é terra de desejo e de medo, porque lá não há máscaras. Ele é assim. Ama-se ou se odeia. Não há meio termo nem tempo para delongas e des-verdades. Há, sim, outro tempo. O tempo dele, de seus povos, de seus frutos, de seus sóis e luas que se confundem. A cadência está em outra lógica que transcende à da ciência, da religião, das previsibilidades. O encontro com o “miolo” do real. Tudo é muito tudo, sabe? Intensidade, poderia ser outro nome. Intensidade que se potencializa no mistério. Não há como descrevê-lo sem recorrer às falas de Riobaldo ou de Miguilim… Isso porque, diferente do segredo, o mistério não se encerra: contempla-se. O segredo, descobre-se, desvela-se, decifra-se. O mistério, não. Está na ordem de outra linguagem que, provavelmente, por conta da nossa imperfeição humana, utiliza-se de várias linguagens para poder chegar até a nós.
Então, ouvem-se gritos e cheiram-se olores perdidos nos galhos imaginários de um cerrado real repleto do simbólico. Como aquilo que “une”, o simbolé convive com o diabolé que separa. Este último que empresta o seu prefixo para aquele que está no meio do redemoinho (diá+bo) ou para aquele (aquela) que era a “neblina dos olhos” do jagunço protagonista (diá+dorim). É o que é e não é. É a força do “exu” que é o sim onde deve ser o não e vice-versa: força de vida, da potência, da instabilidade, do caos que gera ou pode gerar o cosmos. O exu que emprestou seu nome para apelidar tantos caminhantes que, ora surpresos, não se davam conta da força que tem a palavra.
Palavra dita e não escrita; desenhada, falada, cantada. Cantada ao som do toque de um cantil que, de forma mágica, tornou-se tambor. E que, ao ritmo do carnaval das ruas de Salvador, ajudou a dar passos mais esquecidos de dor nos areais, cascalhos, vegetação rasteiras, chão batido. Foram momentos mágicos de transformação e de transmutação. O suor dos corpos era fruto do bailar coreográfico somado aos risos e vozes de um povo que sonha e que canta; que grita e que chora ao mesmo tempo. Um povo que caminha. E que não recusa a travessia por ter elegido a busca… Sim!
Um espaço desorganizadamente organizado para confundir, onde um dos guias que detinha a maior precisão de tempo e espaço, possuía, fisicamente, deficiência visual. Como pode um guia “sem ver bem”, guiar pelas sendas, sobretudo noturnas, caminhantes desorientados? A resposta está na própria travessia: não só ele guiou como ensinou a guiar. Os seus olhos eram outros. A pedagogia da “guiança” foi uma das muitas que surgiram nesses dias de travessia.
Nessa mesma ordem, trago à memória a cena de médicos sendo tratados por homens sem ter estudado medicina. Psicólogos usando o chão como divã ao dividir suas dores e anseios com outros sem formação semelhante.
Fotógrafos se deixando fotografar pelas lentes de aprendizes… Sacerdotes sendo “rezados” por leigos… Foram vários momentos de inversão de uma lógica dominante de poder e de status, possibilitando ver, entender e pensar a vida de outra forma. De outras formas. É possível. É, verossivelmente, possível. Constata-se. Há uma mística do caminhar que é revolucionária. Passo-a-passo com constância e respeitando o ritmo pessoal e coletivo. Já sabíamos que “ninguém solta a mão de ninguém” e aprendemos que “ninguém pisa na bolha de ninguém”. Caminhando ou dançando uma quadrilha junina improvisada ou nas cantorias dos reisados. E, ninguém pisou: ao contrário, cuidou. Sarou. Com pomadas ou com lágrimas. Com os passos dos pés ou nos assentos dos carros de apoio. Todos chegaram. Todas chegaram. Descidas e subidas, pedregulhos e areias.
Poeira e veredas. Ah! As veredas.. com seus imponentes e elegantes buritis que sinalizavam ali ter água. Água cor de Oxum de temperatura gélida que massageava os pés brasis. Vi juntarem-se aos leitos delas, lágrimas de uma caminhante que dizia ter lido o Rosa em preto e branco e que, agora, o faz em “3D”. É o “Rosa no Rosa”.
Ah! Tantos sonhos reforçados em balões coloridos imaginários que subiam e ficavam juntos às estrelas daquele mar de areia do fim de tarde, onde vimos uma amazona sem precedentes, com cabelos ao vento, galopar sutil e fortemente sob o lombo de um cavalo. Ela atravessava portais e nos convidava a isso também. Seguia os passos do disseminador de enigmas que, com o chapéu de vaqueiro e um olhar-olho, via mais que todo mundo: era o Mestre dos Magos que, com seu abrir-e-fechar portais, nos aprisionou para sempre no mundo do nosso interior de busca e de travessia. Ele aparecia e sumia “do nada”. Como, “do nada”, a trupe encantada nos surpreendia, ora na vereda, ora no chão de terra vermelha, com performances que, por uns minutos nos tiravam do “real”, colocando-nos num tapete mágico de sonhos e de reflexões e, quando o último grão de areia da ampulheta caia, tiravam-nos o tal suporte e nos devolviam ao chão e, descaradamente, dizia: “boa em pratos e copos plásticos como aqueles das merendas da minha infância no povoado do Km 100 travessia!”. Ainda me perco nos sabores das comidas servidas na Bahia, no canto dos pássaros antes das quatro da manhã ou do galo que “diza” uma frase obscena; no prateado das madeixas da Vó Geralda ou nas lágrimas do valente Jorge; no romper de Seu Agemiro e de Bergues ou nos roseanos versos cortantes declamados por Elsinho; na figura de uma sacerdotiza medieval de Fernanda, na altivez e doçura de Gabi ou no sorriso e lágrimas de Alice, seguidos pelos tons doces da flauta de Gustavo. No olhar de Paulo que me fez ir às lágrimas muitas vezes ao pensar sobre o meu “ver” nesse/desse mundo. Olha. Preciso parar um pouco de escrever, porque aqui, a travessia continua, sabe?
Da janela da minha cidade-feitiço, vejo prédios altos e o mar no horizonte. Aqui, também, há ser-tões. Aqui, nesse terreno é o meu escolhido para continuar a dar os passos. Sim. Parece que estava lá no Monte Tabor e que, agora, foi necessário, literalmente, desarmar as tendas e descer. Aqui, há muito o que caminhar. Mas, esse peso colorido daquela poeira não me larga. E não quero que isso aconteça. Quero estar com ele tatuado para sempre na pele da minha alma. Aliás, já lá estava: foram retoques feitos para garantir a sua existência e permanência, porque, de fato, a travessia é uma necessidade. Sinto que é possível, embora ser desafiador, vivenciar a magia desses dias aqui onde estou. Para isso, “vamos precisar de todo mundo” e seguir rumo ao rosáceo universo do ser-tão.
Marcos Cajaíba,
Salvador, Cidade-Feitiço, 19 de julho de 2019
Texto: Marcos Cajaíba
Fotos de arquivo pessoal: recantos e encantos das Gerais
a escada, o risco, a força o tombo as pontas espetos nas asas 5 asas verdadeiras e falsas dilaceradas o pavor, a dor, os gritos assustadores quem socorre quem busca ajuda quem ampara quem está quem fica quem acompanha o pavor, a dor, os gritos horríveis o tapete voador sobre ruas trepidantes massacre de ossos estilhaços de nervos urros insanos a sedação quem está quem fica quem acompanha a madrugada de morfina era só o começo 5 asas verdadeiras e falsas esmigalhadas a imobilidade a dependência física o medo emocional dor, dor, dor a morte fraterna na hora seguinte o mundo podre ao redor todas as energias negativas e perversas emanadas por invejas, torpezas, perversidades sangre hemorragicamente depois grite gema chore dependurada no abismo em seguida fique sem sua companheira fiel logo depois sinta o veneno que sai daquela boca a quem quiser sorvê-lo como verdades absolutas sofra sangre vomite grite se desespere e por fim morra se não você, quem estiver em você com você Mas a sororidade luta com as espadas do BEM e SALVA
SUPORTE
traz a água traz a roupa traz o doce traz as flores molha os canteiros deita na cama embala o sono lava o corpo enxuga as peles perfuma os sonhos cobre de atenções faz vigília com mezinhas tantas confere o calor do corpo chama o doutor assiste na madrugada sabe do bom sabe do bem canta parabéns enfeita a mesa busca a medicação aquece o coração enfeita de orquídeas o ser enfeita de músicas o estar ora de mãos dadas a roda do bem combatendo o mal sororidade de fato afetos de direito
HUMANO
caminha encontra, atende, ampara, acolhe reparte, acarinha, ouve socorre, ensina, auxilia doa-se, pertence, assemelha-se sofre, chora, cura alegra, ri, cura-se bebe em comunhão come em comunhão ama em comunhão
ser comum ser coletivo ser humano
DOAÇÃO
doa-ação não se doa doe ação faça, aconteça, integre-se junte-se, misture-se, reparta-se mire, olhe, enxergue
seja um seja dez seja mil seja um sejam dez sejam mil
doar não é dar doar é ser HUMANO
OFERTÓRIO
ora com as mãos mãos que sentem mãos de afeto embrulha enlaça o laço da fartura semeia livros semeia cores age reparte retribui ora com as mãos então, faz