Somos todos iguais nessa noite

Os tempos vão e depois retornam. Como dizia minha tia Neyde, já falecida, “O tempo de Deus é diferente, Doni”. Difícil mesmo – com toda a experiência de vida – é esperar pelo tempo de Deus, tia, falíveis, inconstantes e imperfeitos como somos. Difícil.

Conheci Ivan Lins, pessoalmente, em 1977, em Santos, depois do show em um clube pequeno na orla da praia. Aos 23 pra 24 anos, eu já conhecia todas as suas letras e amava. Aquela mocinha de saião hippie, de tamancos em couro cru, com cabelos encaracolados e revoltos até os ombros, delirou cantando tudo dele no show. Ao final, conversamos um pouco. Eu o achava um gato – e, confesso, quase traí meu amor pelo Chico, quase – mas me lembro bem de seu jeito de olhar meio tímido, sob as lentes dos óculos. Em 2018, fui ao Rio assistir a um show dele com MPB4 e Toquinho, levando meu irmão Odecio comigo para se encantar. Ah, Ivan, quando vocês compuseram NOVO TEMPO, tenho certeza de que não acreditavam ainda estar vivos para verem o que temos vivido nesses tempos. Em frente!

Texto: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Ivan Lins – Topic

2- Canal Leon Campana

Felicidade: aprendizagens

FELICIDADE PARA QUEM?

Dona Antônia, Antonha, vinha fazer faxina na cidade de São Paulo todas as manhãs. Da cidade dormitório onde vivia com marido, filha e netos, calçava botas de sete léguas, aguardava no ponto de ônibus, ainda escuro da madrugada, o lotação que a levaria à estação de trens, depois lá, tomaria outro lotação, caminharia a pé, e só então estaria na casa das patroas. Sempre chegando bem mais cedo que as outras. Era assim.

Dona Antônia não lia nem escrevia, vinda das Alagoas, das fazendas da família mais poderosa por lá, trabalhara desde os 8 anos. Tinha mãos grossas e uma honestidade e um senso de justiça exemplares. Ria de lado, chegando a colocar a mão na boca, como se a ela não fosse permitido sorrir de algo. Era miúda, lépida, afetiva e trabalhadeira. Gostava de cães. E muito.

Certa vez, em 2004, narrou a sua FELICIDADE. Acabara de comprar “uma TV de plasma, dessas bem grandes, sabe, vão entregar hoje. A gente já não tem nada, só a nossa casinha pequena, se não tiver uma TV boa e grande, nem vale a pena.

Abandonando todas as explicações e as teorias acumuladas por leituras, ensaios, reflexões e dialéticas, via-se nos olhos dela, rindo, o que era FELICIDADE.

Quisera eu, Odonir, aprender, assim sinceramente,  a FELICIDADE.

FELICIDADE

Há algo tão maravilhoso

quanto o canto dos pássaros?

Não sei.

Sei que gosto

de ficar entre o verde

ter o cheiro das laranjas

perto de mim.

Sei que gosto

do barulho do vento

das folhas que caem.

Sei que gosto.

Gosto muito de verde,

é a minha cor favorita

há muitos anos,

portanto,

“felicidade é aquilo que a gente encontra em horinhas de descuido”,

não é, velho Guima?

Texto e poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Instituto Piano Brasileiro

Dentro do mar tem rio

O LEVA E TRAZ DAS ÁGUAS

O rio traz

O rio leva

O rio entorna

O rio carrega

O rio traz

O rio entorna.

Estar ao pé do rio

é estar ao pé de si mesmo.

O rio traz

O rio leva.

Perto de Muita Água tudo é Feliz’. Maria Bethânia faz deste trecho de Guimarães Rosa a máxima de, ‘Dentro do Mar Tem Rio – Ao Vivo’, registro do show homônimo – gravado no Citibank Hall, em São Paulo – aplaudido por platéias emocionadas no Brasil, América Latina e Europa em um ano de turnê. O espetáculo que dá origem a esse dvd é fruto dos dois discos lançados simultaneamente pela cantora em 2006: em Mar de Sophia, Bethânia canta o mar e seus símbolos a partir da poesia de Sophia de Mello Breyner. Já em Pirata, ela viaja pelo universo folclórico e afetivo das águas dos rios do interior do Brasil. Em ‘Dentro do Mar Tem Rio’, o dvd, dirigido por Andrucha Waddington, Bethânia celebra as águas que banham os sentimentos mais profundos: dos amores e desamores, da relação com a terra e tudo que dela emana, do enlace entre o sagrado e o humano, da reverência às próprias referências. As águas aqui funcionam como uma ilustração do Brasil captado e cantado por Bethânia, o que faz dela uma cronista do seu tempo e da sua gente.“- Canal Biscoito Fino

Poesia: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Odonir Oliveira

2- Canal Biscoito Fino

A máquina do tempo

UM TREM AO LONGE
Faz séculos que me encontro nesse refúgio
há nele sons e imagens
ponho-me a ouvir o atrito do trem
na minha pele
no meu devaneio
no meu delírio
faz séculos que me encontro nesse refúgio
entorno meu olhar por trilhos
absorvo seu perfume de vento
na minha pele
no meu devaneio
no meu delírio
faz séculos que me encontro nesse refúgio
identifico suas idas e vindas etéreas
na minha pele
no meu devaneio
no meu delírio
Faz séculos que me encontro nesse refúgio.

PERDER O TREM
a moça é moça à beira dos trilhos
a moça acompanha o sussurro dos trilhos
o coração palpita
a moça se agita
o trem apita
a moça viaja todas as tardes
no trem
a moça delira
ri para a chegada do trem
o coração palpita
a moça se agita

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo:Canal PartimpimVEVO

Homem apaixonado

CORPO DE VIOLÃO

Tomou de improviso o violão

escorregou nele dedos

dedilhou suas cordas

acariciou-lhe as curvas

aquietou-se

Nada conseguindo criar

retomou as notas ativas

sentiu os acordes simples

tateou-lhe nos acordes múltiplos

criou melodia

criou canção

criou fascínio.

Parabéns, querido amigo Antonio Carlos, pelos seus anos vividos – e bem vividos – nessas quase oito décadas de existência. Apaixonado por viver. Saúde! Beijo.

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Carlos Lyra – Tema

Cotidiano prosaico

Dentre as coisas que mais gosto está o meu cotidiano prosaico; enquanto todos dormem ou assistem TV, eu me delicio com o corriqueiro, o trivialzinho diário. E em silêncios.

NAMORO DE MARITACAS

O céu faz moldura

para o namoro das maritacas

carinhos…

Escondo-me discreta

falam numa linguagem íntima

se tocam

se enrodilham

se bicam

em beijos enamorados.

Retiro-me discreta.

Amores serão sempre

assim.

AS AVES QUE AQUI GORJEIAM

Bebo vozes de pássaro canoro incomum

lavo a terra das mãos com água de bica de bambu,

aro versos sob o sol e a lua,

enxerto vida com verdes, azuis, amarelos, vermelhos,

na tela cinematográfica de minha imaginação

fundo musical urbano

Criar mel mais que abelhas e armazená-lo

Criar perfume mais que rosas e envelopá-lo

Criar mãos mais que o possível e aveludá-las ao porvir.

QUISERA SER PASSARINHO

Quisera ser passarinho
e deixar os ninhos
ao alcance dos céus
Quisera ser passarinho
para ir e voltar
assim que quisesse
assim que precisasse.
Quisera ser um pássaro
mãe, pai, repleto de filhotinhos
a guiar meus voos
a incentivar meus voos
a deixar-me voar.

Pois então, shoppings, praias assediadas em feriados e férias nunca fizeram dueto comigo. Sou de baixa voltagem, baixa amperagem… sou lusco-fusco e silêncios.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Odonir Oliveira

7 anos de mãos estendidas por aqui

Feliz aniversário com o WordPress.com!

Você registrou-se no WordPress.com há 7 anos!

Obrigado por nos escolher. Continue assim!

AS PORTAS QUE SE FECHAM E OS HORIZONTES QUE SE ABREM POR JANELAS

Era o ano de 2015. Naquelas rasteiras que a vida nos dá, naqueles tapetes que nos puxam sem oportunidade de explicações, naquelas guilhotinadas que pedem nossas cabeças, com atos e invencionices cruéis e dissimuladas, conhecidos de mais de 20 anos foram conduzidos a me retirarem a possibilidade de me expressar livremente em um blog que possuía, forçaram que eu fosse censurada, submetida à moderação… e só depois disso, publicada – fato que jamais esquecerei porque ouviram apenas um lado da argumentação – escrachada, “oblíqua e dissimulada”, como bem escreveu Machado de Assis.

Meu filho, estando aqui em Minas comigo para as festas de fim de ano, abismado, leu tudo que eu tinha registrado sobre o acontecido, viu vídeos cabotinos e hipócritas de quem exigiu minha censura e, inconformado com os que hospedavam meu blog – pois nos conheciam por décadas – e, com a vitalidade e a impetuosidade dos jovens, enunciou “Esquece isso, mãe. O tempo passa e uma hora ou outra as verdades são esfregadas na cara de quem agiu de forma leviana. Eu faço agora um blog pra você. Só me diz o que você quer que o blog agregue, suporte etc. E vou fazer com comentários a serem moderados por você, tá. Na Internet é preciso ser assim. Você só publica comentários que considere pertinentes. Quem não for blogueiro vai ter que lhe mandar comentário por e-mail, tá bom? Concordei imediatamente, posto que nunca vendi nada do que escrevo, nem desejei publicar livros físicos, por qualquer tipo de vaidade intelectual, de fama, de reconhecimentos etc. Escrevo porque gosto de me comunicar. E assim foi. E assim vem sendo.

São exatos 7 anos de muitas letras, sílabas, frases, versos, estrofes, poemas, crônicas, contos, imagens e canções. 1.737 posts.

Em 2016, um amiguinho, bem jovem, criou meu canal no YouTube, com imagens, leituras de meus versos e canções permitidas pelo próprio canal, visto que não tenho interesse em monetização, em autorizações etc.

Depois, em 2021, comecei a fazer, eu mesma, meus vídeos com versos escritos nos ares, sem criação prévia. Ainda não sei editar vídeos, com programa de edição etc. Faço tudo ao mesmo tempo e nos meus tempos. Por quê? Porque meu objetivo é criar a palavra, comunicar a palavra, compartilhar ideias e sentimentos, ações e situações cotidianas, tanto as minhas, quanto as de outras pessoas. Acho que tenho feito isso, sem me desviar dos meus propósitos.

Dessa forma, nesses 7 anos, tenho concluído que poucos querem ler, gostam de shorts do YouTube, gostam de imagens do Instagram etc. Os celulares, pequeninos e infiéis aos escritores, são bastante responsáveis por esses comportamentos de hoje, acredito eu. (Como se pode apreciar um filme, um longa, por celular, meu Deus)

Aos meus leitores reais (e são muitos, e NÃO são blogueiros, nem meus familiares) continuem lendo, sejam textos de autores consagrados ou de autores que apenas escrevem. Ler faz muito bem. Abraço parceiro da Odonir.

Canal no YouTube: Odonir Oliveira – @odoniroliveira – https://www.youtube.com/channel/UCjD6ZiLlJOgDu5-lupIiWGwInstagram: https://www.instagram.com/odoniraraujode/ #odoniroliveira

Texto: Odonir Oliveira

Vídeo: Canal Odonir Oliveira

Natal de 2022

Feliz Natal a todos os meus leitores, em todos os países. Alegrias e reflexões repletas de luzinhas coloridas a vocês. Com o carinho da Odonir

Os bonequinhos de argila do vídeo foram construídos pela própria dupla.

Presépios
Há um presépio festivo
que acolhe alegrias
Há um presépio vivo
que acolhe encantamentos.
Há um presépio vivo
dentro de cada um de nós.
Há um presépio eterno
em nós

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Música de Interior

O peru de Natal, Mário de Andrade

TRADIÇÃO NA CEIA DE NATAL

Minha mãe mineira não gostava de peru, aliás detestava. Lá em casa tradicionalmente compareciam as rabanadas, um bom pedaço de pernil assado, farofa, arroz mineiro (que tem tomate no refogado, não é branco, branco, portanto), bacalhoada, frutas fresquinhas do quintal e uvas (que meu pai comprava dentro de um caixotinho), um pouco de nozes, avelãs, passas e castanhas portuguesas (pertences de uma cesta de Natal distribuída aos funcionários da Fábrica Nacional de Motores, onde trabalhava meu pai). Ah, e torrones – que eu amava. Na sobremesa, salada de frutas e manjar branco.

Antonio Cândido, meu professor na Letras da USP, no curso de Teoria Literária, deu-nos para analisar O peru de Natal, de Mário de Andrade. Sugeriu-nos ler Totem e Tabu, de Freud (1913). Eu, meninota mesmo, bobinha de tudo, achei aquilo um desafio, posto que não tinha leituras acumuladas etc. E 20 anos. Uma amiga professora retirou pra mim a obra de Freud de uma biblioteca municipal, e eu a devorei com a compreensão de uma meninota de 20 anos apenas. Apresentei meu seminário à classe. Ao final, creio que pelo didatismo do material apresentado etc. Antonio Cândido me perguntou “Você é professora?”. Disse-lhe que me formara há cerca de 2 anos e lecionava para crianças. Meu grupo tirou nota 9. Gostei muito e me lembrei disso hoje.

Página 95

O Peru de Natal

Mário de Andrade

O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas. Mas, devido principalmente à natureza cinzenta de meu pai, ser desprovido de qualquer lirismo, de uma exemplaridade incapaz, acolchoado no medíocre, sempre nos faltara aquele aproveitamento da vida, aquele gosto pelas felicidades materiais, um vinho bom, uma estação de águas, aquisição de geladeira, coisas assim. Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-sangue dos desmancha-prazeres.

Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugerira à mamãe a ideia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.

Foi decerto por isto que me nasceu, esta sim, espontaneamente, a ideia de fazer uma das minhas chamadas “loucuras”. Essa fora aliás, e desde muito cedo, a minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. Desde cedinho, desde os tempos de ginásio, em que arranjava regularmente uma reprovação todos os anos; desde o beijo às escondidas, numa prima, aos dez anos, descoberto por Tia Velha, uma detestável de tia; e principalmente desde as lições que dei ou recebi, não sei, de uma criada de parentes: eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”. “É doido, coitado!” falavam. Meus pais falavam com certa tristeza condescendente, o resto da parentagem buscando exemplo para os filhos e provavelmente com aquele prazer dos que se convencem de alguma superioridade. Não tinham doidos entre os filhos. Pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e o meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, porque eu era doido, coitado. Resultou disso uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Era costume sempre, na família, a ceia de Natal. Ceia reles, já se imagina: ceia tipo meu pai, castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo. Empanturrados de amêndoas e nozes (quanto discutimos os três manos por causa dos quebra-nozes…), empanturrados de castanhas e monotonias, a gente se abraçava e ia pra cama. Foi lembrando isso que arrebentei com uma das minhas “loucuras”:

– Bom, no Natal, quero comer peru.

Houve um desses espantos que ninguém não imagina. Logo minha tia solteirona e santa, que morava conosco, advertiu que não podíamos convidar ninguém por causa do luto.

– Mas quem falou de convidar ninguém! essa mania… Quando é que a gente já comeu peru em nossa vida! Peru aqui em casa é prato de festa, vem toda essa parentada do diabo…

– Meu filho, não fale assim…

– Pois falo, pronto!

E descarreguei minha gelada indiferença pela nossa parentagem infinita, diz-que vinda de bandeirantes, que bem me importa! Era mesmo o momento pra desenvolver minha teoria de doido, coitado, não perdi a ocasião. Me deu de sopetão uma ternura imensa por mamãe e titia, minhas duas mães, três com minha irmã, as três mães que sempre me divinizaram a vida. Era sempre aquilo: vinha aniversário de alguém e só então faziam peru naquela casa. Peru era prato de festa: uma imundície de parentes já preparados pela tradição, invadiam a casa por causa do peru, das empadinhas e dos doces. Minhas três mães, três dias antes já não sabiam da vida senão trabalhar, trabalhar no preparo de doces e frios finíssimos de bem feitos, a parentagem devorava tudo e ainda levava embrulhinhos pros que não tinham podido vir. As minhas três mães mal podiam de exaustas. Do peru, só no enterro dos ossos, no dia seguinte, é que mamãe com titia ainda provavam num naco de perna, vago, escuro, perdido no arroz alvo. E isso mesmo era mamãe quem servia, catava tudo pro velho e pros filhos. Na verdade ninguém sabia de fato o que era peru em nossa casa, peru resto de festa.

Não, não se convidava ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha, com bastante manteiga. Queria o papo recheado só com a farofa gorda, em que havíamos de ajuntar ameixa preta, nozes e um cálice de xerez, como aprendera na casa da Rose, muito minha companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso assoprado, se não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É certo que com meus “gostos”, já bastante afinados fora do lar, pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.

Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. Bem que sabiam, era loucura sim, mas todos se faziam imaginar que eu sozinho é que estava desejando muito aquilo e havia jeito fácil de empurrarem pra cima de mim a… culpa de seus desejos enormes. Sorriam se entreolhando, tímidos como pombas desgarradas, até que minha irmã resolveu o consentimento geral:

– É louco mesmo!…

Comprou-se o peru, fez-se o peru, etc. E depois de uma Missa do Galo bem mal rezada, se deu o nosso mais maravilhoso Natal. Fora engraçado: assim que me lembrara de que finalmente ia fazer mamãe comer peru, não fizera outra coisa aqueles dias que pensar nela, sentir ternura por ela, amar minha velhinha adorada. E meus manos também, estavam no mesmo ritmo violento de amor, todos dominados pela felicidade nova que o peru vinha imprimindo na família. De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

– Não senhora, corte inteiro! Só eu como tudo isso!

Era mentira. O amor familiar estava por tal forma incandescente em mim, que até era capaz de comer pouco, só-pra que os outros quatro comessem demais. E o diapasão dos outros era o mesmo. Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. Deus me perdoe mas estou pensando em Jesus… Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. O peito do peru ficou inteiramente reduzido a fatias amplas.

– Eu que sirvo!

“É louco, mesmo” pois por que havia de servir, se sempre mamãe servira naquela casa! Entre risos, os grandes pratos cheios foram passados pra mim e principiei uma distribuição heroica, enquanto mandava meu mano servir a cerveja. Tomei conta logo de um pedaço admirável da “casca”, cheio de gordura e pus no prato. E depois vastas fatias brancas. A voz severizada de mamãe cortou o espaço angustiado com que todos aspiravam pela sua parte no peru:

– Se lembre de seus manos, Juca!

Quando que ela havia de imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer! O prato ficou sublime.

– Mamãe, este é o da senhora! Não! não passe não!

Foi quando ela não pode mais com tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também, tinha dezenove anos… Diabo de família besta que via peru e chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas agora é que a alegria se tornara impossível. É que o pranto evocara por associação a imagem indesejável de meu pai morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal, fiquei danado.

Bom, principiou-se a comer em silêncio, lutuosos, e o peru estava perfeito. A carne mansa, de um tecido muito tênue boiava fagueira entre os sabores das farofas e do presunto, de vez em quando ferida, inquietada e redesejada, pela intervenção mais violenta da ameixa preta e o estorvo petulante dos pedacinhos de noz. Mas papai sentado ali, gigantesco, incompleto, uma censura, uma chaga, uma incapacidade. E o peru, estava tão gostoso, mamãe por fim sabendo que peru era manjar mesmo digno do Jesusinho nascido.

Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru que a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora.

– Só falta seu pai…

Eu nem comia, nem podia mais gostar daquele peru perfeito, tanto que me interessava aquela luta entre os dois mortos. Cheguei a odiar papai. E nem sei que inspiração genial, de repente me tornou hipócrita e político. Naquele instante que hoje me parece decisivo da nossa família, tomei aparentemente o partido de meu pai. Fingi, triste:

– É mesmo… Mas papai, que queria tanto bem a gente, que morreu de tanto trabalhar pra nós, papai lá no céu há de estar contente… (hesitei, mas resolvi não mencionar mais o peru) contente de ver nós todos reunidos em família.

E todos principiaram muito calmos, falando de papai. A imagem dele foi diminuindo, diminuindo e virou uma estrelinha brilhante do céu. Agora todos comiam o peru com sensualidade, porque papai fora muito bom, sempre se sacrificara tanto por nós, fora um santo que “vocês, meus filhos, nunca poderão pagar o que devem a seu pai”, um santo. Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestorvável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém, puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o peru, dominador, completamente vitorioso.

Minha mãe, minha tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever “felicidade gustativa”, mas não era só isso não. Era uma felicidade maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros parentescos distraidores do grande amor familiar. E foi, sei que foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista, alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa me é impossível conceber.

Mamãe comeu tanto peru que um momento imaginei, aquilo podia lhe fazer mal. Mas logo pensei: ah, que faça! mesmo que ela morra, mas pelo menos que uma vez na vida coma peru de verdade!

A tamanha falta de egoísmo me transportara o nosso infinito amor… Depois vieram umas uvas leves e uns doces, que lá na minha terra levam o nome de “bem-casados”. Mas nem mesmo este nome perigoso se associou à lembrança de meu pai, que o peru já convertera em dignidade, em coisa certa, em culto puro de contemplação.

Levantamos. Eram quase duas horas, todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja. Todos iam deitar, dormir ou mexer na cama, pouco importa, porque é bom uma insônia feliz. O diabo é que a Rose, católica antes de ser Rose, prometera me esperar com uma champanha. Pra poder sair, menti, falei que ia a uma festa de amigo, beijei mamãe e pisquei pra ela, modo de contar onde é que ia e fazê-la sofrer seu bocado. As outras duas mulheres beijei sem piscar. E agora, Rose!…

Texto: Odonir Oliveira

Fotos do meu livro de Mário de Andrade, com anotações de estudo

Vídeo: Canal Bobby Helms – Tema