Maria da Conceição-terapeuta de casais-III

Escolhas amorosas

Porquinho-da-Índia


Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas . . .

— O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada.

(Manuel Bandeira, Libertinagem, 1930)

AMOR CAUSAL OU AMOR CASUAL?

Clara sonhara com o Amor, mas tão vivo que parecia não ter sido um sonho, parecia mesmo ter sido tocada por ele. Elementos de familiares, situações tão reais, que não eram as de um sonho. Aquilo estava em uma dimensão temporal extra, algo em outro espectro…

Saiu, caminhou pela cidade repleta de gente e se viu repleta de recordações. Foi visitar seu amigo gay, um terapeuta e tanto. Ouviu-a com atenção, sem julgar, sem retalhar, sem analisar fatos e feitos daquele passado.

-Kaká, ontem me aconteceu um fato estranho. Não saberia compreender, só sentir. Sabe quando dei a chave do meu apartamento pro Richard, naquela caixinha de joia e escrevi um bilhetinho pra ele? Então, fiz isso porque já tenho 24 anos, sei o que quero, e ele é o homem da minha vida. Esperar por ele, me faz bem demais. Suas mãos ternas me fazem bem demais. Rir com ele… ah, tantas coisas, Kaká!

-Sei bem.

-Ontem às nove da noite, saindo do curso, caminhava pela orla da praia, quando aquele carro que sempre me acompanha, pelo calçadão, foi indo devagar, falando comigo, educadamente, elogiando minha postura de nunca ter “dado bola” pra sua insistência etc. Ri daquilo e, sem pensar muito, resolvi lhe dizer que fôssemos até um barzinho ali perto pra conversar. Continuei caminhando, sobre meus tamanquinhos em couro cru, com o vento do mar no meu saião florido característico, e vez ou outra, ajeitando meus cabelos a la Gal, despenteados pelos ventos do mar. Ele foi seguindo dentro de seu carro. Paramos, entramos.

-Foi bom falar com ele, afinal?

-Foi. Um engenheiro civil, forte, bonito o suficiente, engraçado e, talvez, com um jeito triste. Quis saber por que insistia naquele caminho nas noites ao meu redor etc. Respondeu que essas coisas não se explicavam, simplesmente eram. Julguei ser um pouco mais velho que eu, pelo menos mais amadurecido. Bebemos umas caipirinhas, comi uma casquinha de siri e, ao me levar até a frente do prédio, nos beijamos. Bastante. Sinto que gostei de seus beijos. Não perguntei se era casado, noivo, nada. Nem ele me perguntou nada. Disse que deveríamos nos encontrar de novo, talvez ir ao El Faro etc.

-O que te fez achar estranha então?

-Amo Richard, dei a ele a chave do meu apartamento, da minha vida, tenho 24 anos, sou independente, sei o que escolher… por que segui meu faro e aceitei aquele engenheiro civil na minha mesa de bar?

-Talvez porque tenha preferência por engenheiros, civil, elétrico…não gosta de arquitetos? São mais amplos, ecléticos, criativos… será?

-Não faça piada, Kaká, é sério, caramba. Porque cheguei em casa, abri a porta e caiu da maçaneta um bilhete do Richard, que havia estado lá, me esperado e depois ido embora. Leia.

Cla, estive aqui, esperei por você, bebi um Campari, assisti O Astro, li, e descobri que eu te amo muito. Beijo você, Richard

-Interessante. São experiências, Clara. Vivê-las é importante.

-Caetano e Gil que as versejem, né, Kaká. Que estranho.

Lembranças cheias de clareza, depois do sonho da última madrugada.

Texto: Odonir Oliveira

Foto: Facebook da amiga Regina Morgado

Vídeos:

1- Canal Maria Bethânia – Tema

2- Canal Biscoito Fino

Frente a frente com o soldado amarelo

O TEMÍVEL SOLDADO AMARELO

Seu José era homem de peito cheio de injustiças, engolia por décadas as humilhações e sujeições de ser de categoria servil, subalterno, que devia obedecer sempre. As revoltas no peito magro, e a boca ruminando respostas internas. “Tá falando o quê, seu José?”. “Nada não, nada não” Temia se envolver em brigas com os valentões lá do fim de mundo onde morava. Não queria apanhar. Acatava deboches, acintes, aceitava mudo e revoltoso em fibras internas. Ia colecionando desfeitas, disfarces dos outros, respostas mentirosas. Não queria apanhar.

Cheirava rapé, enquanto carpia terrenos alheios, falava sozinho, resmungava pra si mesmo. Mineiro franzino, de pouco estudo e de muitas bolhas e calos nas mãos. Não respondia, não questionava, não arranjava querelas. Não queria apanhar.

Acreditava que não adiantava lutar: uns tinham tudo; outros, nada. Ouvia os acontecimentos e deles não fazia juízo; fazia, mas nem comentava. Aceitava. Não queria apanhar.

Morreu de repente.

[…] Desembaraçou o cabresto, puxou o facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que interrompiam a passagem.
Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas espinhosas. Deteve-se, percebendo rumor de garranchos, voltou-se e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o levara à cadeia, onde ele aguentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o quengo rachado. […]

O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam. […]
Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe pareceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na cidade? Não pisava os pés dos matutos, na feira? Não botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino.

Irritou-se. Por que seria que aquele safado batia os dentes como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se? Não via? Fechou a cara. A ideia do perigo ia-se sumindo. Que perigo? Contra aquilo nem precisava fação, bastavam as unhas. Agitando os chocalhos e os látegos, chegou a mão esquerda, grossa e cabeluda, à cara do polícia, que recuou e se encostou a uma catingueira, o infeliz teria caído.

Fabiano pregou nele os olhos ensanguentados, meteu o facão na bainha. Podia mata-lo com as unhas. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se, medonho, mais feio que um focinho. Hem? Estava certo? Bulir com as pessoas que não fazem mal a ninguém. Por quê? Sufocava-se, as rugas na testa aprofundavam-se, os pequenos olhos abriam-se, escondia-se por trás da árvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. […] Durante um minuto, a cólera que sentia por se considerar impotente foi tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo.

A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se – e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo amolecido.
Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura de saúde e muque, estava certo. Enfim, apanhar do governo não é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da aventura. Mas aquilo… Soltou uns grunhidos. Por que motivo o governo aproveitava gente assim? Só se tinha receio de empregar tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão ruim se andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e dar pancada neles? Não iria. […]
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força.
Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminh
o ao soldado amarelo.

Graciliano Ramos. Vidas secas. São Paulo:
Record, 1982, p. 99-107.

O soldado amarelo” é o nome de um capítulo de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Tenho conhecido tantos que se confrontam com a figura do “soldado amarelo”, que parece que tal capítulo da obra fotografa aqueles que conheci.

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Instituto Piano Brasileiro

Gatilhos

Os gatilhos mentais são agentes externos capazes de provocar uma reação nas pessoas e tirá-las da zona de conforto. Em outras palavras, são estímulos que agem diretamente no cérebro. Mas não se trata de hipnose ou algo do tipo, pois a base dos gatilhos mentais está na psicologia.“- ead.ucs.br

1 – RECIPROCIDADE

2 – ESCASSEZ

3 – NOVIDADE

4 – PROVA SOCIAL

5 – SEGURANÇA

6 – COMPROMISSO

7 – CONFIANÇA

GATILHO: SEIOS FARTOS

A menina-moça tinha seios fartos; ele, pernas frouxas. Desejou-a desde o primeiro momento, quis tocar em seus seios, beijar-lhe a boca, sentir seu cheiro. Tinham 13 anos.

A mocinha não quis grudar-se nele, não era cravo e canela como ele desejava; era, camomila, alfazema, gostava de toques doces, de aromas de algodão e gosto de nuvem na boca. Rejeitou-o porque sentiu que eram muito, muito diferentes, embora bastante diferenciados.

O rapazinho guardou em suas mãos o vazio daqueles seios fartos e o compromisso de não amar mais, dali pra frente só gozo e prazer, com qualquer uma, de preferência com as de seios fartos.

GATILHO: SOU TÃO BOM QUANTO ELES

-Mas por que não me aceitam aqui? Tenho bom curriculum, experiência. Tenho 18 anos, mas sempre estudei e trabalhei. Sejam francos, sou negro e pobre é isso? Sou arrimo de família e isso me prejudica?

Nada fazia Luiz Fernando aceitar tantas negativas. Nada o desabonava, nada o desqualificava, por quê, então?

Das poucas noites mal dormidas, fez cursinho popular e entrou na Universidade Federal. Logo engenharia? Estudou, destacou-se na Universidade. Tornou-se modelo de aprovação social, resgate, resiliência e obteve distinção entre outros engenheiros e em empresas de construção civil importantes no país.

Casou-se muito tarde, não teve filhos. Sua principal meta e dedicação sempre foi aos estudos, à profissão, a ser tão bom quanto eles.

O marketing avança e analisa 10 gatilhos, para que se aproveitem deles e vendam seus produtos, pois os gatilhos mentais são excelentes recursos para estimular as pessoas a tomarem uma decisão.

  1. Relação Prazer x Dor
  2. Escassez
  3. Urgência
  4. Exclusividade 
  5. Novidade
  6. Prova social
  7. Reciprocidade
  8. Storytelling
  9. Comunidade
  10. Porquê

Minicontos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal André Fernandes

2-Canal Kleiton & Kledir – Tema

Os cabelos brancos

A atriz norte americana Andie MacDowell, 65 anos, parou de pintar o cabelo durante a pandemia e revelou que desde então abraçou a idade.
Recentemente numa entrevista comentou que “algo acontece no nosso cérebro quando as pessoas pensam em mulheres com cabelos brancos. Dá-me vontade de rir quando alguém me diz que pareço mais velha por assumir os meus grisalhos.
Já não me importam estes comentários. Quero ser velha. Estou cansada de tentar parecer jovem. Não quero ser jovem. Já fui jovem. E ser uma pessoa mais velha a tentar parecer jovem, é um enorme esforço. Simplesmente não consigo manter a farsa… não consigo! A vida é feita de escolhas. Quero abraçar a idade que estou a viver.”

RESPEITEM MEUS CABELOS BRANCOS

-Que gato você está com esses cabelos brancos, Ricardo. Algo me atrai neles, saiba.

Prazer crescente ao vislumbrar o marido dali a alguns anos, grisalho, paulatinamente, envelhecendo juntos. Agora aos 30, apenas os dele estão ficando brancos. Está lindo assim…

-Vai tingir os cabelos, Maria da Graça – até meu marido não está me aguentando mais assim cheia de cabelos brancos, vim pintar, pode ser hoje, por favor?

Horas depois a sessentona sente-se nova, remoçada, atraente ao marido, totalmente grisalho, com cabelos ralos, barriga de cerveja… entre outros qualificadores mais íntimos.

-Menina, se não me cuidar, me troca. Essas unhas coloridas de porcelana, nem ele percebe que são compradas. Cada mês tinjo o cabelo e renovo o corte, sem falar na atualização depilatória, antes cera quente, agora laser, sabe como é, a mulherada novinha dá em cima, se bobear, eles vão embora com elas. E tem a academia diária, glúteos, coxas, abdômen…

Poema de canção sobre a esperança
I

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.

II

Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser…
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!

17-6-1929
Álvaro de Campos – Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. – 106.

Mini textos: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal

Vídeo: Canal SilvioCaldasVEVO

Carnaval, carnavais

CLARICE ME DISSE
“Quero contar sobre meu amor por um primo. Nunca consegui esquecer aquilo, sabe” – contou.
Viveram sempre em cidades diferentes, desde crianças. Passavam férias de verão no mesmo lugar.
Ali, sempre amiguinhos, descobriram-se adolescentes e apaixonados.
Álvaro – dizia ela –  lindos olhos verdes, tímido, um poço dos afetos todos com a prima. Tanto afeto que, uma vez quando ela quebrara a perna, tinham os dois doze anos, cuidara as férias inteirinhas dela, dando-lhe preparação de água, esquentando-a, colocando em outro recipiente água gelada para que ela banhasse várias vezes ao dia a perna e o calcanhar ainda inchados – depois do gesso retirado. Era de uma gentileza que beirava à submissão – contava isso quase sem fôlego.
Ah, mas quem nunca brincou de médico com primas! Eles, não. Cuidava dela como de uma flor do campo, frágil, mimosa. Para ela buscava o que fosse necessário, mesmo sem que pedisse. Lembrava Peri e Ceci em O Guarani, tamanha adoração.
Mesmo sozinhos, com todos os hormônios em ebulição, jamais efervesceram paixões neles mesmos. Nem um beijo roubado sequer. Eram primos. Filho de pai, irmão da mãe dela. Jamais poderiam ficar juntos e se casassem e tivessem filhos, como seria?
Que casar nada. Doze anos. Ouvindo o Lobo bobo de João Gilberto, disco do primo mais velho, jogando pedrinhas, seis marias, e batalha naval. Férias.
Tempos e tempos se passaram
Ela se casara com seu engenheiro. Ele, com sua vizinha, tendo com esta uma filha. Separara-se, casara-se de novo tenho aí mais dois meninos.
Ela soubera pouco de Álvaro por mais de duas décadas. Até que voltaram a frequentar os mesmos lugares. O olhar dele sempre o mesmo por ela. Divorciada, livre, sequer demonstrava qualquer intenção para com ele, homem casado, pai de dois filhos então.
Os olhares dele, no entanto, encandearam-se em palavras mais adocicadas, mais atenciosas. Uma balançada geral nela.
Tempos e meses depois, tudo é carnaval na praça principal, onde sempre passavam as férias. Praça da Matriz.
Na barraquinha em que se vendiam bebidas, os dois se esbarraram. Ela já estava ali, bebendo cerveja com parentes e amigos há horas. Ele, pescando. Chegou depois, bem depois de as escolas de samba e blocos terem desfilado.
Sozinho, olhou para ela, que meio ali meio lá na casa dele, recuou.
Anos e anos de tesão reprimido, agora o sabiam mesmo – explicava a mim.
Por que não beijar na boca, rir muito e relembrar o quão tontos sempre haviam sido. Lembrou-se de Mário de Andrade apaixonado por sua impossível prima Luísa e resolveu aceitar aquele desafio por décadas adiado.
Lendo seus pensamentos, Álvaro puxou-a pelo braço, naquela música “me dá um dinheiro aí”, levou-a para uma calçadinha com jardim e, na frente de quem quisesse ver, beijou-a com três décadas de atraso.
Dali foram se amar como se jamais tivessem se conhecido, mas com uma intimidade tal, que pareciam ter estado juntos por todos aqueles trinta anos  também.
“Depois só rezando na Igreja da Matriz uns três padres-nossos e umas três ave-marias, a pedir perdão a Deus pelo sacrilégio cometido. Mas teria sido sacrilégio, o senhor acha?”

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal MPB :: As Melhores!

“Mãos que eu afaguei”

MÃOS QUE EU AFAGUEI

Início da quaresma, período sempre melancólico para Clarice. As quaresmeiras das ruas do bairro enfeitiçavam olhares e ela, mais do que ninguém, se perdia em recordações. Era quando conferia a lista de itens de sua memória. Começava regando as flores da fachada, sempre cultivadas por eles dois. Depois, ia ler um pouco, ao som das canções tão ouvidas por eles juntos. Lembrava palavras, piadas dele, recortes de tiradas inteligentes do homem amado. Pulava os capítulos de tristezas, de ciúmes, de angústias, de abandono. Ia lendo, ouvindo as canções… preferia os LPs e os CDs, pois eram esses os que ouviam em par.

Em seguida, ia preparar o que comeriam, abrindo a cristaleira, separando copos, pratos, taças de vinho. Abria um vinho, agora em garrafinha pequena, e bebia aos poucos, como se fosse a boca do homem amado. Lentamente, em seu tempo, em seu gozo, em seu prazer.

Mesa sempre para dois. A massinha leve, a salada leve, o prazer leve. Olhares e elogios aos temperos, aos molhos, aos queijos e à mulher amada. Eram ecos naquelas paredes claras. Sorvia tudo como se com ele ainda.

Por testemunha, o São Francisco de Assis, presente dele, quando estivera naquela feira na Espanha.

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1-Canal Instituto Piano Brasileiro

2- Canal Odonir Oliveira

Se queres compreender…

AO VOLANTE

Cruza as ruas da cidade. Domingo faz as portas encostadas e as janelas semiabertas. Há um perfume de macarrão pelas calçadas. Há aroma de churrasco e música alta. Atravessa a estrada de ferro. Seguiria na paralela ou pegaria a autoestrada. No momento certo, decidiria. Foi indo, ouvindo o que a rádio local adocicava. Mudou a estação e seguiu. Na decisão, o volante pediu estrada.

Um gosto de amargura nos lábios, um cheiro de irrealização na língua. Blasfemaria aos quatro cantos o não ter sido. Acalmou-se.

Entendeu que aprendera a ler semáforos de vida. De vidas. Aprendeu a reconhecer livramentos, exclusões imprescindíveis, sinais antecipatórios.

Seguiu a via, pela pista de baixa velocidade, gostava de fazer paradas guiadas pelas emoções do visto, fosse por sua curiosidade em conhecer, fosse pela beleza do que visse. Rumo incerto nos domingos por si.

Texto/ Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal MPB – Música Popular Brasileira

Bonecos infláveis

Todo poeta, escritor de ficção… escreve construindo uma massa consistente daquilo que viu, com aquilo que observou acontecendo a outros e amalgamando tudo isso à sua imaginação. Caso contrário, seria linguagem objetiva e não metafórica, seria notícia, reportagem, com fatos e dados reais: nomes, datas, lugares. Todo escritor tem liberdade para criar. E é isso o mais difícil. Apenas reportar acontecimentos é bem mais simples, basta reunir dados e provas concretas e estará feita a reportagem. Ainda assim, haverá jornalistas que saberão fazer isso melhor do que outros. Questão de talento.

A FESTA DO POVO

Isaías ria dos parceiros que sofriam por dores de amores. Debochava mesmo. Mulher tem muitas – repetia e ria, acompanhado da branquinha da mió qualidade, sempre pingando a do santo antes de se embriagar em seu mundo inventado; depois cuspia de lado e seguia. Quando queria carinho de fêmeas, macho que era, sabia enrolar a língua nuns verso de sei lá quem, talvez fosse a branquinha que o fizesse enrolar a língua e as mãos no corpo das fêmeas. E sempre pagava por aquilo tudo. De verdade, sua fragilidade e sua insegurança masculinas de comparecer com excelência o faziam recitar discursos e narrativas para elas e para eles, quando em balcões de botequins. Era um ser inflável, com odor de cachaça nos poros e nos dentes. Repetia, repetia Mulher tem muitas.

AS VOLTAS QUE O MUNDO DÁ

Josias crescera ouvindo proezas dos caipiras da roça onde vivia. Gostava. Queria seguir o rumo daquelas prosas. Queria. Era a cara da mãe. O pai… ah o pai desaparecera, assim que avisado da gravidez da mãe. Coube ao avô e à avó fortalecerem aquela suposta família.

Josias crescia. A mãe ia fazendo coisa ou outra pra conseguir umas moedas e ajudar os avós em sua criação. Até que conheceu naquela praia, bem distante, em férias, o provedor ideal, o que daria conta da família que desejava formar. O provedor, fascinado pela jovialidade da mãe de Josias, levou-a consigo.

Primeiro, tentou hospedá-la em casa de parentes. Recusa explícita. Teúda e manteúda aqui, não. Depois a manteve exclusiva e escondida, em um sítio distante. Nas fomes dos fins de semana, encontrava casa limpa, cama de alvenaria limpa e cozinha com comida na boca do fogão. Até quando? Precisava trazê-la pra mais perto, mas ela o serviria sempre? Não, apenas em finais de semana, num feriado… Era casado? Não, gostava assim. Quando quisesse, viajaria com uma ou outra, faria das noites e madrugadas, cardápios de festa.

Mato dentro, mato fora, a mãe de Josias, obcecada pelo provedor, acreditava que era muito amada, pois o homem a enchia de presentes e para o Josias sempre chegavam carinhos também.

Josias cresceu. Homem já, de mais de 20 anos, segue modelos, copia exemplos. Segue. Mato dentro, mato fora.

Sobre esse hábito/ costume de que “a mulher tem de SERVIR o marido porque foi pra isso que ele se casou com ela”, leia: O que é estupro maritalhttps://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2023/02/05/o-que-e-estupro-marital.htm

Textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Renato Teixeira

Vida, vida, vida…

Todo poeta, escritor de ficção… escreve construindo uma massa consistente daquilo que viu, com aquilo que observou acontecendo a outros e amalgamando tudo isso à sua imaginação. Caso contrário, seria linguagem objetiva e não metafórica, seria notícia, reportagem, com fatos e dados reais: nomes, datas, lugares. Todo escritor tem liberdade para criar. E é isso o mais difícil. Apenas reportar acontecimentos é bem mais simples, basta reunir dados e provas concretas e estará feita a reportagem. Ainda assim, haverá jornalistas que saberão fazer isso melhor do que outros. Questão de talento.

TEREZA, UMA CABOCLA ROMÂNTICA 

“Viver é muito perigoso” (G. Rosa)

Era Tereza a morena cabocla mais feminina da região. Gostava de ouvir as modas nas rodas de noites, sentados irmãos, a parentada e os violeiros rasgando dores e saudades das amadas, das terras distantes, das esperanças perdidas, das traições de amigos, de mulheres … Tereza apreciava cada moda daquelas e era alimento pras suas carências e prazeres.

Deu que ali entre todos os que paravam na venda do seu Neco, agradou em demasia de um quase índio quase negro, meio assim de olhar matreiro e risada alta, voz de cantador. Tocava pouco da viola, menos ainda da rabeca, mas cantava. E inventava. Era bão de invencionices o tal. Pedia acompanhamento, “um dó maior”, “um si menor”, como se de muito entendesse ou tivesse estudado de cancionices. Era matreiro. Matreiro e bonito. Bonito e encantador de olhares também. Agradou de Tereza como nem. Agradou de suas pernas grossas, desde meninota eram assim. Agradou de seus seios fartos e empinados. Agradou de seu cabelo ondulado castanho-escuro e do seu olhar romântico pros versos que cantava nas noites de varanda, lá  no seu Neco.

Fez que fez, dedicou que dedicou, com olhares e sorrisos, versos a ela, que Tereza entregou-se. Foi dele e de mais nenhum outro que vinha por aquelas bandas a se entornar viola pra ela. Disse pra cada amiga que tinha dono agora. Ele era seu. Nome não sabia, que todos o chamavam de Goiano apenas. Imaginava que fosse das bandas de Goiás então.

Passou a esperar por ele. Passou a gostar dele num tanto, que quem via achava que já houvera lhe dado os beijos, os abraços, os seios, as coxas e o ventre pra serem degustados a dois. Nonada. A Tereza era de matutar num tanto e esperou que ele se entregasse, falasse cara a cara o que dela queria, como é que seriam, pra onde é que iriam, se tudo ficaria daquele jeito mesmo – que bão era um tanto tamém. Aguardou.

Goiano, sempre  pelas currutelas e querências da vida, num vinha nem ia, empacava. Tereza querendo ir e vir, ir e vir,  Goiano preferindo as casas de tolerância das vielas de vento forte, se abrigando em bocas alheias, cantando modas e tocando um nada de viola. Ora num cabaré, ora num lupanar, outra hora num bordel mais perfumado, dançando boleros e cochichando safadezas nas orelhas das mulheres amaciadas pelas estradas. Não havia uma zona dos entremeios onde Goiano nunca tivesse deitado em colcha de cetim grená. Era doido por pinga de qualidade, por boleros e permanências curtas. Gostava da alta rotatividade das picadas, das veredas e dos caminhos esquerdos da bandidagem parceira.

De costume assim enfileirado, o homem moreno acaboclado sentia falta por alguma vez de rever Tereza, de dedicar certo olhar religioso a ela, mas nunca deixava claras suas intenções, fossem quais. Não dava a torcer nem braço, nem mão, nem boca, nem corpo pra Tereza se afeiçoar. Media distância, como se a moça fosse reservada pra um seiquê qualquer de pouco esclarecimento na sua cachola e no seu apaixonamento insistente.

Foi assim que foi.

Foi que Tereza amava aqueles braços de poesia e invencionices de rir e de chorar também.

Foi mesmo assim que um dia, levou Tereza pra dijunto dele, mas separado, de certeza.

Abandonava Tereza e ficava dias sem aparecer nem pra dar conta de um angu com feijão e couve, nem pra uma noite de suor com ela, nem mais pra uma viola, daquelas que tinham endoidecido Tereza antesmente. Foi ficando Tereza e seus doces olhos castanhos. Restando, restando.

Numa noite, chegou Goiano, sem notícia dada antes.

Pegou Tereza e um cavaleiro tocando viola na sala pra ela. Era como se estivessem grudados de imã no olhar.

Matou.

(E mais não conto que conheci a cabocla Tereza e sei que sucedeu mesmo assim essa história.)

Texto escrito em julho de 2017 e publicado aqui no blog: A cabocla Terezahttps://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/07/31/a-cabocla-tereza/

Texto: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Antônio Bocaiúva