SER OU NÃO SER
o jeito parece ser
o ser engana
a fala parece ser
o ser engana
o meio parece ser
o ser engana
a moldura parece ser
o ser engana
o retrato parece ser
o ser engana
a aparência parece ser
o ser engana
a essência parece ser
o ser engana
o território parece ser
o ser engana
caipira parece ser
o ser engana
AVARANDADO
A taça de Dioniso me impele.
Não estou aqui.
Vou. Vou. Vou.
Olho, olho, olho.
Sinto, sinto, sinto.
Não tiro poesias das coisas.
Amo as coisas e elas tornam-se poesia.
Amo formigas e formigueiros, imagine.
Amo casas e telhados coloniais.
Amo cães e flores de todas as variedades.
Amo cachoeiras, rios, cascatas e chuva.
Amo sol, lua e estrelas.
Amo trens e estações vazias.
Amo música sem palavras e silêncio.
Amo risos de crianças e perfumes de amor.
Talvez por isso seja tão confessional e comum o que escrevo
porque as coisas sobre as quais versejo
estão prosaicamente aqui, ali, em qualquer lugar.
Não tiro poesia das coisas.
Amo as coisas e elas tornam-se poesia.
LÍNGUA E LINGUAGEM
Na década de 1980 começaram a chegar às escolas – com atraso de pelo menos uma década – os estudos de sociolinguística, as variantes linguísticas, o respeito aos falares etc. Até então, nas aulas de Português – disciplina -ensinava-se muito mais a gramática: as construções sintáticas e morfológicas do português escrito e em norma culta, o aceito socialmente etc. Sabe-se que ”o português” são muitos (já ensinava Drummond com “o português são dois’‘, em seu poema ”Aula de Português”). Esse ensino de NORMAS gramaticais, segundo a história da educação, advinha do ensino religioso que primava por pregar padrões clássicos de leituras, de condutas etc. Tudo seguindo norma única. Os colégios jesuítas disseminaram em terras brasileiras esses ensinamentos. Era o ensino para OS ESCOLHIDOS, para alguns. Os outros … continuariam analfabetos, serviçais, braçais etc.
Quando a universalização do ensino se deu (como ainda acontece hoje no Brasil inteiro) predominaram as ESCOLAS PÚBLICAS. Ainda assim, destinavam-se a poucos. Era mais fácil se ensinar a decorar regras gramaticais da norma culta a quem já as usava em casa. Alunos vinham de famílias com livros em seus lares, com experiência de cultura formal etc. Só iam para ESCOLAS PARTICULARES aqueles cujos pais preferiam o ensino religioso ou os que não ”conseguiam acompanhar” o ENSINO PÚBLICO – porque eram reprovados por anos seguidos. As ESCOLAS PARTICULARES, não-religiosas, ditas leigas, abraçavam ”alunos de classe média e média alta considerados ”problemas” para escolas públicas (por vezes, sendo até expulsos/jubilados dessas instituições).
Em um quadro, de universalização das ESCOLAS PÚBLICAS, seriam evidentes as diferenças entre as línguas orais e escritas dos alunos. Ensinar uma gramática de normas e regras cultas tornou-se desafio enorme – quase como colocar um pé 40 num sapato 36, um canhoto escrever com a mão direita, um pato voar bem alto etc. Passou-se a ter de entender a linguagem que traziam, as culturas que traziam e a respeitar-se tudo isso. Era preciso ensinar a ”ser poliglota na sua língua”, conhecer para saber usá-la em situações que solicitavam certo código linguístico – para isso seria necessário que os professores também se adequassem, mudassem paradigmas. (Resistências enormes: ”Tenho que desaprender’, já vi, né’, ”Então é pra baixar o nível, né?”) – Na verdade, medo do ”novo”, de ter de estudar, de ter de se confrontar com a realidade social do país, de ter de SER PROFESSOR (A)/ EDUCADOR (A).
É imprescindível trabalhar-se com a oralidade dos alunos em sala de aula. A mescla é saudável. Aprendi muito com meus ”meninos”. Nunca me esqueço de quando era professora de Sala de Leitura, em SP, numa aula noturna, com alunos de supletivo – hoje EJA – e comecei uma aula com a música do Chico ”Pivete”. Foram ouvindo, fui tirando deles o que achavam, do que o poeta falava etc. (Tinha acabado de acontecer o massacre do Carandiru) – a escola ficava na periferia da zona oeste da cidade, com gente bem humilde no bairro.
Percebi que interagiam pouco, meio tímidos. Interrompi a canção, perguntei o que gostavam de ouvir. Resposta unânime: RAP. Os MCs eram seus ídolos. Pedi que trouxessem as letras, cantaríamos e eles me ensinariam aquilo tudo, porque eu conhecia pouco. ”Eu tiro as cópias, professora, lá no Xerox que eu trabalho”. ”Eu trago os CDs.” ”Eu também”. Animação total.
Na semana seguinte – as aulas na Sala de Leitura eram semanais, com empréstimos etc. – me apresentaram o RAP, os campeonatos, dançaram HIP HOP, e eu fiz ”do limão muita limonada”, comparando com ‘‘Pivete”, e ”O meu Guri” do Chico, a diferença entre as linguagens etc. Depois fomos para a ”pixação”, o graffiti, primeiro no papel kraft, com desenho de tijolos e com os graffitis em giz de cera sobre os tijolos. Depois, ah, depois, eles grafitaram coisas belíssimas nos muros da escola – com a sedução da diretora à causa. E num sábado, à luz do sol: participativos, vibrantes, criativos e conhecedores de seus direitos, de seus deveres … e de Chico Buarque também. Daí para as poesias de autores populares, regionais, leitura dos regionalistas etc. foi ”sopa no mel”. E dá-lhe RAP.
Observação do mestre Graciliano Ramos que, ao se referir à arte de Cândido Portinari, dizia que ela morava dentro dele próprio. “Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos.”
PERTINÊNCIA: Havia escrito esse post alguns dias atrás e hoje assisti a uma live no 247, com o Zé Miguel Wisnik , meu ex-professor na USP. Coincidentemente, falávamos das mesmas coisas.
Poesia e texto: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal
Vídeos:
1- Canal Felipe José
2- Canal Caetano Veloso
3- Canal Elza Soares