Ser e parecer ser

SER OU NÃO SER
o jeito parece ser
o ser engana
a fala parece ser
o ser engana
o meio parece ser
o ser engana
a moldura parece ser
o ser engana
o retrato parece ser
o ser engana
a aparência parece ser
o ser engana
a essência parece ser
o ser engana
o território parece ser
o ser engana
caipira parece ser
o ser engana

AVARANDADO
A taça de Dioniso me impele.
Não estou aqui.
Vou. Vou. Vou.
Olho, olho, olho.
Sinto, sinto, sinto.
Não tiro poesias das coisas.
Amo as coisas e elas tornam-se poesia.
Amo formigas e formigueiros, imagine.
Amo casas e telhados coloniais.
Amo cães e flores de todas as variedades.
Amo cachoeiras, rios, cascatas e chuva.
Amo sol, lua e estrelas.
Amo trens e estações vazias.
Amo música sem palavras e silêncio.
Amo risos de crianças e perfumes de amor.
Talvez por isso seja tão confessional e comum o que escrevo
porque as coisas sobre as quais versejo
estão prosaicamente aqui, ali, em qualquer lugar.
Não tiro poesia das coisas.
Amo as coisas e elas tornam-se poesia.

LÍNGUA E LINGUAGEM

Na década de 1980 começaram a chegar às escolas – com atraso de pelo menos uma década – os estudos de sociolinguística, as variantes linguísticas, o respeito aos falares etc. Até então, nas aulas de Português – disciplina -ensinava-se muito mais a gramática: as construções sintáticas e morfológicas do português escrito e em norma culta, o aceito socialmente etc. Sabe-se que ”o português” são muitos (já ensinava Drummond com “o português são dois’‘, em seu poema ”Aula de Português”). Esse ensino de NORMAS gramaticais, segundo a história da educação, advinha do ensino religioso que primava por pregar padrões clássicos de leituras, de condutas etc. Tudo seguindo norma única. Os colégios jesuítas disseminaram em terras brasileiras esses ensinamentos. Era o ensino para OS ESCOLHIDOS, para alguns. Os outros … continuariam analfabetos, serviçais, braçais etc.

Quando a universalização do ensino se deu (como ainda acontece hoje no Brasil inteiro) predominaram as ESCOLAS PÚBLICAS. Ainda assim, destinavam-se a poucos. Era mais fácil se ensinar a decorar regras gramaticais da norma culta a quem já as usava em casa. Alunos vinham de famílias com livros em seus lares, com experiência de cultura formal etc. Só iam para ESCOLAS PARTICULARES aqueles cujos pais preferiam o ensino religioso ou os que não ”conseguiam acompanhar” o ENSINO PÚBLICO – porque eram reprovados por anos seguidos. As ESCOLAS PARTICULARES, não-religiosas, ditas leigas, abraçavam ”alunos de classe média e média alta considerados ”problemas” para escolas públicas (por vezes, sendo até expulsos/jubilados dessas instituições).

Em um quadro, de universalização das ESCOLAS PÚBLICAS, seriam evidentes as diferenças entre as línguas orais e escritas dos alunos. Ensinar uma gramática de normas e regras cultas tornou-se desafio enorme – quase como colocar um pé 40 num sapato 36, um canhoto escrever com a mão direita, um pato voar bem alto etc. Passou-se a ter de entender a linguagem que traziam, as culturas que traziam e a respeitar-se tudo isso. Era preciso ensinar a ”ser poliglota na sua língua”, conhecer para saber usá-la em situações que solicitavam certo código linguístico – para isso seria necessário que os professores também se adequassem, mudassem paradigmas. (Resistências enormes: ”Tenho que desaprender’, já vi, né’, ”Então é pra baixar o nível, né?”) – Na verdade, medo do ”novo”, de ter de estudar, de ter de se confrontar com a realidade social do país, de ter de SER PROFESSOR (A)/ EDUCADOR (A).

É imprescindível trabalhar-se com a oralidade dos alunos em sala de aula. A mescla é saudável. Aprendi muito com meus ”meninos”. Nunca me esqueço de quando era professora de Sala de Leitura, em SP, numa aula noturna, com alunos de supletivo – hoje EJA – e comecei uma aula com a música do Chico ”Pivete”. Foram ouvindo, fui tirando deles o que achavam, do que o poeta falava etc. (Tinha acabado de acontecer o massacre do Carandiru) – a escola ficava na periferia da zona oeste da cidade, com gente bem humilde no bairro.

Percebi que interagiam pouco, meio tímidos. Interrompi a canção, perguntei o que gostavam de ouvir. Resposta unânime: RAP. Os MCs eram seus ídolos. Pedi que trouxessem as letras, cantaríamos e eles me ensinariam aquilo tudo, porque eu conhecia pouco. ”Eu tiro as cópias, professora, lá no Xerox que eu trabalho”. ”Eu trago os CDs.” ”Eu também”. Animação total.

Na semana seguinte – as aulas na Sala de Leitura eram semanais, com empréstimos etc. – me apresentaram o RAP, os campeonatos, dançaram HIP HOP, e eu fiz ”do limão muita limonada”, comparando com ‘Pivete”, e ”O meu Guri” do Chico, a diferença entre as linguagens etc. Depois fomos para a ”pixação”, o graffiti, primeiro no papel kraft, com desenho de tijolos e com os graffitis em giz de cera sobre os tijolos. Depois, ah, depois, eles grafitaram coisas belíssimas nos muros da escola – com a sedução da diretora à causa. E num sábado, à luz do sol: participativos, vibrantes, criativos e conhecedores de seus direitos, de seus deveres … e de Chico Buarque também. Daí para as poesias de autores populares, regionais, leitura dos regionalistas etc. foi ”sopa no mel”. E dá-lhe RAP.

Observação do mestre Graciliano Ramos que, ao se referir à arte de Cândido Portinari, dizia que ela morava dentro dele próprio. “Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos.”

PERTINÊNCIA: Havia escrito esse post alguns dias atrás e hoje assisti a uma live no 247, com o Zé Miguel Wisnik , meu ex-professor na USP. Coincidentemente, falávamos das mesmas coisas.

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Felipe José

2- Canal Caetano Veloso

3- Canal Elza Soares

Homem nu

RAÍZES DE HOMENS
Há certos homens que têm caules vigorosos.
São eles que semeiam a terra
afagam sementes
exalam perfumes de flores
recolhem os frutos doces.
Há certos homens que encostam as mãos na terra
a fortificam com seus dedos ásperos
a revolvem com palmas ardentes
a fertilizam com braços seguros.
Há certos homens que têm raízes em lugar de pés,
fincam-se inexoravelmente.

HOMEM DE PALHA
Como uma vela
era manobrado com facilidade por ventos quentes
Como uma biruta
era moldado com facilidade por ventos novos
Como uma pipa
era conduzido com facilidade por ventos de ocasião
Como paina
era assoprado com facilidade por bocas de pimenta
Porque de palha
cedia ao rumo que lhe impusessem.
Um dia pegou fogo.
Não era mais um homem, então.

HOMEM NU
Há em ti um medo insofismável de ser
Há em ti um esconderijo de tempos espaços externos e iluminados
Há em ti um entranhar-se em ti, como caverna de um Platão inédito
Há em ti espaços impenetráveis até por ti mesmo.
Há em ti um tom fúnebre de vazio existencial
Há em ti um carpe diem funesto e não libertador
Há em ti enigmas segredos secularmente indecifráveis
Há em ti um fugere urbem que se pretende equacionador
Há em ti uma rebelião dos valores estamentais sociais religiosos
Há em ti um sagrado íntimo trancado em celas-cárceres-degredos
Há em ti um código de valores herdado e mantido a ferrolhos
Há em ti um reflexo que não é o de ti
mas o de um outro que a ti intentas impor.

O HOMEM CHORA
Esse homem chora de dor pelas águas
chora de dor pelos peixes
chora de dor pelo hoje
que não é mais o ontem
nem será mais o amanhã.
Esse homem chora porque tem a pele das águas
a alma de lagoa e os olhos de ver
Tem flores do campo,
orquídeas selvagens no dorso,
conversa com deuses da aquarela
Esse homem chora
porque é menino que levita.

NARCISO
Quem é você Narciso
que encontro na vereda da minha salvação
atropeladamente
bruscamente
impactantemente?
Quem é você Narciso
que abraço nas águas como se fora um sertão
embriagadamente
ingenuamente
instantaneamente?
Quem é você Narciso
que me entontece de intrigas
em um torvelinho de dores flores amores
tropegamente
bastardamente
inominadamente?
Quem é você Narciso
que me acaricia e me chicoteia com o mesmo rigor
nas manhãs tardes noites e madrugadas
em meus lagos rios e cachoeiras?
Revele-se
Quem é você Narciso?

ORÁCULO GREGO
Meninos de todas as idades
Mãe pai irmãos
A contação de histórias na hora de dormir
A sanfona a viola
O pai a mãe os irmãos
A comida no fogão sempre quente
O bule no fogão sempre quente
A mãe o pai os irmãos
O dia a tragédia o ir-se
O irmão mais velho agora sendo o pai
de repente
A mãe sucumbe entontece delira
Perda
Mais tarde outra perda
O dia a tragédia o ir-se
A sina, a sanha, a saga
Os filhos os irmãos
Os parentes os amigos
A união mais forte na dor
A união mais forte nos braços
A união mais forte nos traços
A união mais forte nos abraços
A união ainda mais forte
nos louros
Mãe e irmãos num só lume
Mãe e irmãos num só barco
Mãe e irmãos num só compasso
Mãe e irmãos
num só
laço.

CERTO MENINO
Media-se por competições
Estimava-se por reflexo em espelhos
Divertia-se com os desafios
Era um, mas era bem outro
Gostava de duelar
Gostava de vencer os duelos
Adorava exibir os troféus
Seduzia-se por ser sempre o vencedor.
Era um homem, mas era apenas um menino.

CENA PITORESCA
Ao molhar as plantas da sacada, um beija-flor pequenino de penas verdes ”fluorescentes” veio beijar cada uma das lavandas. Não resisto, me afasto e percebo que ele beija TODAS, sem repetição. Inacreditável. Depois voa para o fio de luz e fica esperando eu sair.
Entro, venho pegar o celular. Volto, ele está beijando todas as outras lavandas do vaso ao lado. Sem repetir nenhuma também. Fiquei distante. Não tive coragem de interromper o namoro dele com elas.
Beijou todas e se foi.
Beija-flor mineiríssimo !

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de aquivo pessoal

Vídeos: Canal Willie Nelson

Raízes

RAÍZES
limpo a terra
lavo as raízes
descarto as apodrecidas
seleciono as vivas
fixo as miúdas
facilito sua aderência
ajudo-as com cascas firmes
sustento-as com caules rijos
crio moradas para viverem
acondiciono-as no colo do afeto
acarinho-as com a cor das esperas
falo com elas
acompanho seu ciclo
seu brotar
seu florescer
seu rebrotar
enamoro-me delas
cuido
aconchego
beijo-abraço de flores

DE PÉ

Está fincada na terra,
na terra profunda.
Está agarrada ao chão de húmus,
sulcos,
por mitose espalha-se,
pelos absorventes
suga
sustenta.

De pé.

SOBREVIVÊNCIA

Pressionada
encurralada
luta.

Esparrama-se.
Tem estofo
tem lastro
tem estrutura
tem garras,
luta.

Permanece,
sobrevive.

AQUELA FIGUEIRA
Na vereda
encontrei aquela figueira.
Fiquei ali.
Copa magnífica.
Dos verdes, todos.
De denso, o tronco.
De lastro, histórias
De expressão, singular.
Estáticas, ambas.
Incomum.
Raízes para sempre em mim.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1 e 2 – Canal Música de Interior (Excelente Canal, com simplicidade e sofisticação)

3- Canal Odonir Oliveira

Travessias

”Quem escolheu a busca não pode recusar a travessia”

“Todo caminho da gente é resvaloso.
Mas também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!…
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza…”- Guimarães Rosa

Vídeos:

1- Canal Orange Poem

2- Canal Mateus Aleluia – Tema

Fotos de arquivo pessoal: São Paulo, SP

Arte poética

A LÍRICA
A música caipira adoça as mãos
chuvinha de canela sobre os dedos
versos puros
rimas pobres
almas ricas
corre o domingo
coro de bem-te-vis
não se deixam fotografar
batem asas para outros galhos
o sol aquece o corpo
ao meio-dia queima
o espírito levita
as mãos sentem as cores
cacos coloridos de lirismo
desenhos de histórias nas canções
raízes de árvores etéreas
a sombra vem temperar o corpo
as formas e as cores
enternecer a tarde
reinventar formas
reciclar os móveis móveis
a lírica das mãos
a lírica da criação

Ando encantada com mandalas. Sem geometrismos, apenas ao som das líricas e reciclando os materiais e os não-materiais que ainda possuo por aqui

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: trabalhos e flores ”criados” por mim

Vídeo: Canal TRISCH II

Silêncios

SILÊNCIOS
O relógio de corda
bate três horas
o relógio acorda o tempo
a máquina desperta a noite escura
fria
o vento assopra as mãos
o choro chora na madrugada cúmplice
o relógio de corda
bate quatro horas
o trem buzina nos longes
vem assobiando na serra
o vento assopra as mãos
o trem desliza na madrugada
o som do silêncio assobia
parceria com o relógio de corda
o choro de novo
de novo
de novo
o relógio de corda
bate cinco horas
o trem passou

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Biscoito Fino

Um copo vazio

”Para além das redes sociais repletas de vidas perfeitas existe a realidade de várias mulheres que são silenciadas. Vivemos falando sobre como a era digital acaba criando expectativas irreais e adoecendo as pessoas. É bom gritar o real, expor os fatos, viver a verdade. Quando se faz isso, além de se libertar, estendemos a mão a outras mulheres’‘ (Margareth Canotilho )

DELEGACIA DE MULHERES

Drª Tânia Dias, formada em Universidade Federal, feminista, engajada na luta em defesa das mulheres, faz plantão, como voluntária, na delegacia de mulheres na região de Cerqueira César, na capital paulista. A cada dia pelo menos 10 histórias diferentes narram abusos cometidos contra mulheres. Vão desde ameaças e humilhações verbais a coações, subjugamentos, maus tratos físicos e traições sexuais.

A Drª as ouve atentamente, as instrui a perceberem as primeiras manifestações de abusos de quaisquer naturezas. Além disso as aconselha a agir, a gritar de diversas formas, a não se intimidar com o peso do poder masculino, porque juntas são fortes. Dá a elas os endereços para pedirem socorro no momento em que precisarem. Elas estarão ali para ajudar.

Cada mulher sai dali segura, empoderada pelo discurso das plantonistas, conhecendo um pouco de leis, muito mais sobre seus direitos de cidadã etc. Sentem-se acolhidas por verdades, por exemplos, por sororidade.

Drª Tânia corre que já é quinta-feira, tem que se apressar para chegar ao aeroporto na hora do voo para BH, lá encontrará seu amado-amante, que vive em outro estado. Ele não se dispõe a ir a seu encontro em SP, e ela é que corre para seus braços nos fins de semana. Lá, torna-se a mulherzinha que ele adora, afável, doce, carinhosa, a ”senhora meretriz” e politizada, feminista, discursando até na hora de se deitarem, olhando a lua e as estrelas. Não é bonita apenas. É uma pessoa boa.

Na segunda-feira corre para o aeroporto. A luta continua.

VIOLÊNCIA , AOS COSTUMES

Nas noites …
reprime a fala
maltrata o sentir
encosta o açoite sutil da moeda
encosta o açoite do domínio sexual
encosta o açoite do poder físico
cala as mãos, os pés, o olhar
cala a partida
cala , amedronta, ameaça.

Marisa engole
Marisa sufoca
Marisa implode

Maísa bebe
Maísa enlouquece
Maísa explode
Maísa se suicida.

Maria grita
Maria berra
Maria enfrenta
Maria desacata
Maria chora
Maria enxerga as pedras
Maria enxerga a luta

Maria faz jardins
Maria faz poesia.

MEDO

Elas tinham medos
medo de se dar
medo de sofrer
medo de rejeição
medo de solidão.
Ofertavam-se por medo.
Ofertavam-se por umas rimas, umas melodias, umas palavras doces.
Ofertavam-se
Entregavam-se às ilusões.

MÃOS DUPLAS

ferida, inflamação
dor
desprezo, humilhação, descarte
desespero, incompreensão, ruptura
silêncio estrangeiro, comum, vulgar
mecanismos
simples troca
dupla troca
vereda de mão dupla
ramais e caminhos de mãos duplas
sonolência, dormência, imobilismo

dor
embriaguez
vinho

SEXY

Dinorah era sexy.

Não havia como definir, era sexy.

Tinha um jeito displicente de olhar, um andar rebolado tão natural, mas tão natural … que sexy.

Por ser assim talvez, despertava nos homens um desejo quase que incontrolável de tocar nela, beijar ela, comer ela.

Tudo isso lhe passava meio despercebido, porque Dinorah não tinha atração física por homens, em geral. Nem por mulheres. Gostava da sensualidade insinuada, da sedução persistente, do banho-maria em degraus. Gostava mesmo era de preparar a festa.

Dinorah era doceira, confeiteira. Começara adocicando em casa, depois da falência de uma vida a dois, com um companheiro banana que a única coisa que fazia bem era sexo. E isso não sustentava o teto. Pelo menos para ela não. Adoçando uma festa lá outra cá, montou seu próprio negócio. Com ele ganhava a vida. E bem. Não dava para as encomendas.

Não dava para tanta encomenda de olhares, de piscadelas insinuantes. Parecia uma Gabriela de Jorge, sem o mar de Ilhéus, contudo. E, assim, na entrega dos doces, bolos e trejeitos, vez por outra quase sucumbia a olhares mais cobiçadores dos donos da festa, ao assinarem os cheques, ao passarem o cartão. Sabe como é, adocicou tem que rezar, pensavam. E eram sempre os maridos que tinham que pagar a conta. Eita mulherada dependente, concluía Dinorah.

Certa vez apaixonou-se não por um corpo, mas por uma voz. Enquanto cozinhava, quase sempre em carreira solo, ouvia na rádio FM de sua cidade um locutor. O tal tinha três horários na rádio. De manhã ocupava seu espaço com música sertaneja de raiz e declamava versos. Ao meio-dia, um programa de nostalgia, a saudade não tinha idade e lia crônicas, poemas, versos esparsos, pequenos comentários, nunca de sua lavra, mas a encantavam. Bem de noitinha, depois das sete, programava músicas americanas, sempre contextualizadas a poemas e intenções; Dinorah captava as mensagens e entendia que o locutor dedicava a ela aquelas melodiosas seduções. Enganando-se porque cada um empresta a sua própria vida os olhares que deseja ou precisa emprestar.

Apaixonou-se num tanto, que acreditou ser amada por ele. Assim, não mais olhou ao redor, aos homens interessantes, que sempre há pela cidade.

Certa noite, lambendo a colher de pau que acabara de mexer brigadeiros, ouviu no rádio uma música de mensagem claramente erótica; excitada desejou ligar para o programa – coisa que nunca fizera antes – e falar com ele. Era como se isso concretizasse o ato sexual que imaginava partilhar todas as noites. Estava perdidamente apaixonada. Apaixonada pela voz, pelas palavras lidas, pelas melodias que a tocavam. Não conseguiu falar com ele. O telefone só dava ocupado na rádio. Tinha ensaiado um discurso para quando ele chegasse ao telefone. Tinha até rascunhado umas frases para dizer a ele e, principalmente, lhe entregaria doces mãos, braços polvilhados de açúcares, seios em ponto de suspiro, ventre em ponto de bala.

Não conseguiu. Pensou que não era para ser. Tinha em si esse fatalismo feminino, quase cabalístico da negação amorosa.

Nos dias que se seguiram, entregas de doces. Andares, assinaturas de cheques, quereres.

Doces delírios repetidos, repetidos, repetidos …

LOBOTOMIAS COTIDIANAS

“Para com isso, sua louca”

acalma
obedece
não se altera
abaixa a cabeça

obedece
não se revolta
cala
aceita

obedece
aquiesce adoça entontece
sangra
esfola-se
maltrata-se

obedece
acata
embobece

Assim.

TODAS AS NOITES

Há um rude homem que chega
há um deboche no riso do homem que chega
há um desperdício de uma gargalhada
há um sino que toca intermitentemente
há um trem que apita intermitentemente
há um vulto que adentra o espaço
há um aroma que perfuma o espaço
há um rasgo que penetra o corpo
Ali,
todas as noites.

VERSEJAR SEM LÁGRIMAS

Capaz de rir
capaz de gozar
capaz de flutuar
capaz de ouvir e ser ouvida
capaz de beber vinho e rir muito
capaz de ver o mar em noite calma
capaz de sentir vento quente nos cabelos
capaz de ver a linda lua cheia de inverno
capaz de sentir o fascínio do olhar varão
capaz de ser feliz.

PERTINÊNCIA: Além da atualidade do tema, principalmente em tempos de quarentena e de ”carentena”, noticiadas amplamente pelos veículos de comunicação, esse post foi motivado pela citação na epígrafe – postada no Facebook, por minha ex-aluna querida, Margareth Canotilho, hoje psicóloga clínica. Salve, menina-mulher ”ardida como pimenta”.

Leia sobre o tema, aqui no blog:

Violências

Violências

Textos e poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Biscoito Fino

2- Jéssica Lourenço

Loucos por viver

O Louco
Khalil Gibran

Perguntais-me como me tornei louco. Aconteceu assim:

Um dia, muito tempo antes de muitos deuses terem nascido, despertei de um sono profundo e notei que todas as minhas máscaras tinham sido roubadas – as sete máscaras que eu havia confeccionado e usado em sete vidas – e corri sem máscara pelas ruas cheias de gente gritando:

Ladrões, ladrões, malditos ladrões!”

Homens e mulheres riram de mim e alguns correram para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça do mercado, um rapaz no cimo do telhado de uma casa gritou:

“É um louco!” Olhei para cima, para vê-lo.

O sol beijou pela primeira vez a minha face nua.

Pela primeira vez, o sol beijava a minha face nua, e a minha alma inflamou-se de amor pelo sol, e não desejei mais as minhas máscaras.

E, como num transe, gritei:

“Benditos, benditos os ladrões que roubaram as minhas máscaras!”

Assim tornei-me louco.

E encontrei tanta liberdade como segurança na minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.


(Do blog do amigo Fabio Ottolini)

Quisera ser um tocador de oboé e despertar isso, que nessa cena assistimos em ”A Missão”

DEDICATÓRIA: Ao amigo blogueiro Fabio Ottolini – que publicou esse lindo texto de Khalil Gibran , em seu blog. (Já havia programado outros versos meus, mas esse profeta me seduz há décadas e esse texto eu nem conhecia). Postei no Facebook, muitos se encantaram e me agradeceram. Ao outro amigo blogueiro Sandro Ernesto que postou seu texto ”Deus Salve os Blogueiros”. https://panografias.com.br/deus-salve-os-blogueiros/. Ao ler, senti como fosse uma bênção a quem escreve, assim como nós, que escrevemos e entregamos tudo de mãos estendidas a quem nos lê. Fiquei muito agradecida a ambos. Abração.

Vídeo: Canal invreview

Fim de noite

ROAD MOVIE II

Meu “Paris, Texas”
em verde-amarelo
é “Central do Brasil”;
No meu “Easy Rider”
tem montanhas e pedras
é “Bye, Bye, Brasil”.

Meu momento pérola na concha
é “Cinema, Aspirina e Urubus”.
Minha descoberta eu lírico
é “On the road” com Kerouac
Meu ensaio político com veias abertas de latinidade
é “Diários de Motocicleta”.

Minha libertação feminina
é “Thelma e Louise”
Minha liberação em intensidade
é “E sua mãe também“.
Buscas encontros procuras entregas
Nas estradas…

Minha “Pequena Miss Sunshine”
na pureza, no reconhecimento da particularidade.
No meu amor por vinhos,
“Sideway“.
No meu amor por meu amor
Uma estrada.

VERTIGEM

Acordara bem cedo. A noite havia sido curta. Encontrara-se pela madrugada de uma, duas ou três maneiras com ele. Em uma delas perdera a respiração, como que engasgada, e numa apneia orgástica, sufocara.

Água fria, não gelada para não espantar de todo o companheiro de viagem que a cama ainda estava quente.

Computador, músicas, leituras, versos, notícias. Vontade de dormir a continuação daquele sonho anterior. Não daria, que Virgínia era exigente pra cacete. Em sua boca só palavras de alto calão. Em sonhos… em sonhos…outras palavras.

Voltou pra cama em olhos fechados e imagens distorcidas.

Tudo lhe vinha misturado agora; muitas figuras, muitas vozes, de Dioniso um aviso, acorda, acorda. De Morfeu outra, dorme, dorme . Afrodite ainda, fica, fica, espera, espera, chove, chove, chove, fica.

Confusão etílica de vinho tinto bom. Queijos, pouco aprovados que desejava apenas a companhia de seus deuses hoje, ontem, amanhã.

De pé de novo, escreve. Escreve não, pois que psicografa dez poemas, uma crônica, uma ode, dois recados e uma apelo. Era uma romântica.

Exílios, ainda sem forma e estilo. Psicografa.

Exílios voluntários; exílio de coxas quentes; exílio de costas largas; exílio de pés enormes; exílio de mãos atrevidas; exílio de ventre berço; exílio de braços laços; exílio de membro aderente; exílio de pescoço salgado;exílio de orelhas atraentes; exílio de olhos mudos; exílio de cabelos outros; exílio de língua sonora; exílio de lábios profanos; exílio de boca sagrada; exílio de corpos nus; exílio de corpos nós; exílio de medos; exílio de gozo; exílio de tantos.

Não consegue mais dormir. Precisa dormir. Não sabe mais a quem ouvir se a Safo, a Baco, a Dioniso, a Afrodite ou até mesmo a Zeus, ó pai.

Tem visões alucinadas de estradas, automóveis, flores, barcos, trens, vozes surdas, convites vagos, interpretações múltiplas. Estaria Virgínia enlouquecendo com aquele jogo de dá e toma dos deuses, com aquelas gestalts interrompidas todas. Muito mais do que falar, a ensandecida  adormecida queria ouvir. Impossível. Estava dentro de um sonho, repleto de imagens fugazes, inefáveis, pouco táteis. Era uma romântica.

Decidida a se levantar, fossem que horas fossem. Pegou o carro, entrou num bar, havia ali  três ou quatro caras acompanhados, e mais um, de rosto moreno, braços fortes no balcão.

Sentou lá ao lado dele. Ele perguntou seu nome. Ela disse. Bebeu pinga. Ele pagou.

Saíram dali para casa dele.

Surpresa.

O cara sabia dos desejos de uma mulher. Falou nada.

Talvez um oferecimento de um isso ou de um aquilo. E só.

Vertigem. Em poucas palavras.

Estranhou ela tudo aquilo e que tivesse alcançado tanto prazer naquele encontro casual.

Sentiu falta de um Vinícius, de um Drummond, de um Caetano, de um Pessoa, de um Baleiro, talvez. Mas nem tudo pode ser perfeito,  não é.

Era uma romântica.

MULHER FÁCIL

Não sou fácil,
saiba disso.
Não sou fácil de saboreio nas coxas
não sou fácil de conversas paralelas
não sou fácil de verbos banais
não sou fácil de meios termos meias entradas,
rápidas saídas
não sou fácil de sair da dança do samba do tango.
Não sou fácil de entregar pacotes prontos
embalados em papel de seda de maçãs.
Não sou fácil de ler de ver de ter de me ter
assim separado, ou junto.
Não sou fácil sem hora senhora,
sou sem ouros e pedras falsas
sou de moles e duros de meios e fins.
Não sou fácil em ventre e membros
Não sou fácil de peles e gostos
Não sou fácil de descascar cortar chupar e engolir.
Sou de digestão difícil
Sou ácida nas bases
Sou base nos doces.
Sou sal nas unhas.
Não sou fácil
Saiba disso.
Rejeito fáceis, fósseis e fôssemos.

BUSCAS

Sigo na direção
é sim é não.
Transformação.
Janelas abertas
vento pelos ouvidos
esperas na pele
torneios entre razão e emoção.
Uma canção
Duelos constantes
é sim e não.
Rotas sinuosas
casas de menina
cores de menina.
Encontro de mulher.

MERGULHO

Sentada, a luz de Narciso me suga
Interpreto o mais e o menos
Mergulho no líquido
Mergulho no sólido
E é etéreo e gasoso.
De pé, caminho sobre tábuas
de mandamentos pagãos.
Tudo em frente, tudo ali
E é etéreo e gasoso.
Mergulho entregue
Sem nadadeiras
Sem asas
Nem redes de proteção.
Mergulho no risco de Narciso, então.

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal musicavitor