A última flor, James Thurber

A ÚLTIMA FLOR

A décima segunda guerra mundial, como todos sabem, trouxe o colapso da civilização.
Vilas, aldeias e cidades desapareceram da terra.
Todos os jardins e todas as florestas foram destruídas. E todas as obras de arte.

Homens, mulheres e crianças tomaram-se inferiores aos animais mais inferiores. Desanimados e desiludidos, os cães abandonaram os donos decaídos.
Encorajados pela pesarosa condição dos antigos senhores do mundo, os coelhos caíram sobre eles.
Livros, pinturas e música desapareceram da terra e os seres humanos ficavam sem fazer nada, olhando no vazio. Anos e anos se passaram.
Os poucos sobreviventes militares tinham esquecido o que a última guerra havia decidido.

Os rapazes e as moças apenas se olhavam indiferentemente, pois o amor abandonara a terra.
Um dia uma jovem, que nunca tinha visto uma flor, encontrou por acaso a última que havia no mundo.
Ela contou aos outros seres humanos que a última flor estava morrendo.
O único que prestou atenção foi um rapaz que ela encontrou andando por ali.

Juntos, os dois alimentaram a flor e ela começou a viver novamente.
Um dia uma abelha visitou a flor. E um colibri.

E logo havia duas flores, e logo quatro, e logo uma porção de flores.
Os jardins e as florestas cresceram novamente. A moça começou a se interessar pela própria aparência.

O rapaz descobriu que era muito agradável passar a mão na moça.
E o amor renasceu para o mundo.

Os seus filhos cresceram saudáveis e fortes e aprenderam a rir e brincar.
Os cães retornaram do exílio.
Colocando uma pedra em cima de outra pedra, o jovem descobriu como fazer um abrigo.

E imediatamente todos começaram a construir abrigos. Vilas, aldeias e cidades surgiram em toda parte. E a canção voltou para o mundo.
Surgiram trovadores e malabaristas alfaiates e sapateiros
pintores e poetas

escultores e ferreiros
e soldados
e soldados
e soldados
e soldados
e soldados

e tenentes e capitães
e coronéis e generais
e líderes!

Algumas pessoas tinham ido viver num lugar, outras em outro. Mas logo as que tinham ido viver na planície desejavam ter ido viver na montanha.
E os que tinham escolhido a montanha preferiam a planície. Os líderes, sob a inspiração de Deus, puseram fogo ao descontentamento.
E assim o mundo estava novamente em guerra.
Desta vez a destruição foi tão completa
Que absolutamente nada restou no mundo.
Exceto um homem
Uma mulher
E uma flor.

James Thurber (tradução Millôr Fernandes)

Vídeo: Canal Rousseau

Reclusão, introspecção, reflexão

Dez dicas para enfrentar a reclusão em tempos de pandemia
Frei Betto

Estive recluso sob a ditadura militar. Nos quatro anos de prisão trancaram-me em celas solitárias nos DOPS de Porto Alegre e da capital paulista, e também, no estado de São Paulo, no quartel-general da PM, no Batalhão da ROTA, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau.
Partilho, portanto, 10 dicas para suportar melhor esse período de reclusão forçada pela pandemia:

1. Mantenha corpo e cabeça juntos. Estar com o corpo confinado em casa e a mente focada lá fora pode causar depressão.

2. Crie rotina. Não fique de pijama o dia todo, como se estivesse doente. Imponha-se uma agenda de atividades: exercícios físicos, em especial aeróbicos (para estimular o aparelho respiratório), leitura, arrumação de armários, limpeza de cômodos, cozinhar, pesquisar na internet etc.

3. Não fique o dia todo diante da TV ou do computador. Diversifique suas ocupações. Não banque o passageiro que permanece o dia todo na estação sem a menor ideia do horário do trem.

4. Use o telefone para falar com parentes e amigos, em especial com os mais velhos, os vulneráveis e os que vivem só. Entretê-los fará bem a eles e a você.

5. Dedique-se a um trabalho manual: consertar equipamentos, montar quebra-cabeças, costurar, cozinhar etc.

6. Ocupe-se com jogos. Se está em companhia de outras pessoas, estabeleçam um período do dia para jogar xadrez, damas, baralho etc.

7. Escreva um diário da quarentena. Ainda que sem nenhuma intenção de que outros leiam, faça-o para si mesmo. Colocar no papel ou no computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico.

8. Se há crianças ou outros adultos em casa, divida com eles as tarefas domésticas. Estabeleça um programa de atividades, e momentos de convívio e momentos de cada um ficar na sua.

9. Medite. Ainda que você não seja religioso, aprenda a meditar, pois isso esvazia a mente, retém a imaginação, evita ansiedade e alivia tensões. Dedique ao menos 30 minutos do dia à meditação.

10. Não se convença de que a pandemia cessará logo ou durará tantos meses. Aja como se o período de reclusão fosse durar muito tempo. Na prisão, nada pior do que advogado que garante ao cliente que ele recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses. Isso desencadeia uma expectativa desgastante. Assim, prepare-se para uma longa viagem dentro da própria casa.

[* Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros.]

Vídeo: Canal Webb Family Music

Amorosidades

Homenagem aos blogueiros

Quem me dera

Que mais tem de acontecer no mundo
Para inverter o teu coração pra mim
Que quantidade de lágrimas devo deixar cair
Que Flor tem que nascer
para ganhar o teu amor

Por esse amor meu Deus
Eu faço tudo
Declamo os poemas mais lindos do universo
A ver se te convenço
Que a minha alma nasceu para ti

Será preciso um milagre
Para que o meu coração se alegre
Juro não vou desistir
Faça chuva faça sol
Porque eu preciso de ti para seguir

Quem me dera
Abraçar-te no outono verão e primavera
Quiçá viver além uma quimera
Herdar a sorte e ganhar teu coração

Será preciso uma tempestade
Para perceberes que o meu amor é de verdade
Te procuro nos outdoors da cidade, nas luzes dos faróis
Nos meros mortais como nós
O meu amor é puro é tão grande e resistente como embondeiro
Por ti eu vou onde nunca iria
Por ti eu sou o que nunca seria

Eu preciso de um milagre
Para que o meu coração se alegre
Juro não vou desistir
Faça chuva faça sol
Porque eu preciso de ti para viver

Quem me dera
Abraçar-te no outono verão e primavera
Quiçá viver além uma quimera
Herdar a sorte e ganhar teu coração.

PERTINÊNCIA: Nesses tempos cada vez mais sombrios, de desinformação, abuso de ingenuidades de pessoas, de ingenuidade de cidadãos, de maldades políticas, sociais, emocionais … o blogueiro Fabio Ottolini fez seu post exatamente com essa canção. Eu não a conhecia. Obrigada, os contos e os cantos ainda me emocionam.

Aqui: https://agorababou.com/2020/03/24/quem-me-dera-interpretada-por-mariza/

E da querida Cristileine Leão, na fria Alemanha, aqui:

https://depressaocompoesia.com/convite-para-reflexao/

E do mineiro barbacenense Estevam Matiazzi, aqui:

40RENTENA: TEMPO DECISIVO!

Vídeo: Canal Mariza

Saúde, sexagenários !

CONFINAMENTOS

Tinham que ter confinado
Isso só acontece com os velhos
Pra que tudo isso?
Separa os velhos e pronto.

Seu corpo depende do meu lastro
Sua pele depende do meu conhecimento
Sua história depende da minha história.

Bem, não sei como era na sua geração
mas hoje não é assim.
Eu até entendo
mas hoje é bem diferente.

Você sabe pouco.
Você sente pouco.
Você aspira a bem pouco.

Sexagenários, uni-vos !
As tomografias
as endoscopias
os eco- os cardio-os eletro-
no soma, o físico é o mesmo
na polis o pathos está doente.

(E com meu ex-aluno querido Edu Salvitti na batera. Mete o pau, garoto)

PENUMBRA

laços lassos
pelos pelos
ondas umas ondas outras
céu e terra
voo e marcha
aninhar no ninho
alisar o dorso
alisar o fogo
alisar o firmamento
janela lançamento
janela embarque
janela pouso
porta entrada
porta estrada
porta espada
corpo esponja
corpo porto

TEM QUE SER LEVE

Não traga bagagem
ria sempre
seja leve
Não traga história, dores e mágoas
Seja meu oásis, meu bálsamo, minha eterna juventude
Não me exija nada
Não me cobre nada
Não me peça nada
Não mendigue nada
Traga o álcool
Traga os orifícios às minhas permanências
sempre quentes, sempre lisos, sempre leves.
Não me questione
não me atormente
não me penetre.
Fique por quanto eu quiser
Fique por quanto eu beber
Fique por quanto eu me embriagar
Fique por quanto eu quiser.
Não seja.
Apenas esteja.

TEM QUE SER JOVEM

Não envelheça
Tinja os cabelos de loiro
Faça ginástica
Faça corridas
Frequente academias
Use biquínis
use tangas
use fios dentais
use shorts
mostre as pernas
esteja bronzeada sempre
ria mostrando dentes claros
gargalhe regada a cervejas
tempere-se de pimenta sensual
siga as receitas
equivalha-se
equipare-se
brigue nas comparações.
Vença.

Poesias: Odonir Oliveira

Imagens da Internet

Vídeos:

1-2- Canal Biscoito Fino

3- Canal cuidardoser

4- Canal Alejandro Fuvald

Dia da poesia, 21 de março

Hoje pode ser um ”dia de poesia”. Há aqueles que veem a vida com poesia, todos os dias. Hoje tem lua cheia? Haverá os que nem se darão conta disso. Mas quem vive em poesia a estará namorando, fará dela fotos e até … poemas.

”Atiro garrafas ao mar”, podem conter alentos ao seu viver.

Versos do poema ”Motivo”, de Cecília Meireles

Poesias: Odonir Oliveira

Vídeos:

1- Canal FagnerVEVO

2-3-4-5- Canal Odonir Oliveira

“Dona Nair”

Paraisópolis/ Morumbi- SP

UBUNTU

Se ando e enxergo, maravilho-me
Se paro e contemplo, pulso
Se ardo em sensações, vivo.
Se estou numa fala num gesto num sorriso, continuo.
Se toco a dor humana, emano
Se acarinho a terra vermelha, sou.
Se tenho compaixão, ajo.
Se tenho ainda a emoção, levito.
Se ando e enxergo, maravilho-me

DONA NAIR

Cai a temperatura. Chove. Tocam a campainha. Fim de tarde. Tocam a campainha. Surjo na sacada de minha casa. Lá embaixo Dona Nair, uma mulher franzina, sozinha na rua, sussurra sob uma sombrinha desengonçada. Pede um edredom, um lençol, qualquer coisa pra uma senhorinha bem pobre que mora lá longe, onde ela mora também.

Três anos antes conheci Dona Nair, já com mais de 80 anos, em casa de uma tia, agora falecida. Dona Nair – mais velha que minha tia – limpava sua casa, uma vez por mês. Conversei com ela – trocava o serviço por uns agasalhos, um dinheirinho pouco. Para a condução? Não. Atravessava a cidade a pé. Vinha da zona rural e voltava. A pé.

Tempos depois, a encontro por lá. Dona Nair atravessa a cidade lavando roupa para as patroas, anda sempre a pé. Converso com ela sobre isso na casa da tia, por que não parava de trabalhar, por que ainda fazia isso, andando a cidade toda a pé. Sempre me ouvia e dizia que uma sobrinha e filhos dependiam dela etc. Questiono se as patroas não dispõem de máquinas de lavar … Descubro que conseguira há poucos dias sua aposentadoria rural. Dou-lhe os parabéns e insisto para que ela descanse, fique mais tranquila, sem trabalhar tanto. Ri e diz que vai ver.

Um ano depois, toca a campainha me pedindo roupas de cama, cobertor, agasalhos. Faço uma boa seleção, encho as sacolas e ela vai embora agradecida. Nas vizinhas, procede da mesma forma. Eu a ajudo, outros, também.

Cai a temperatura. Chove. Tocam a campainha. Fim de tarde. Tocam a campainha. Surjo na sacada de minha casa. Lá embaixo Dona Nair, uma mulher franzina, sozinha na rua, sussurra sob uma sombrinha desengonçada. Pede um edredom, um lençol, qualquer coisa pra uma senhorinha bem pobre que mora lá longe, onde ela mora também. Digo-lhe que dessa vez não tinha mais o que me pedia.

Explico a ela que está frio, chovendo. Falo do coronavírus, dos riscos, que fosse para casa e ficasse por lá.

Olha pra mim como se estivesse falando algo incompreensível pra ela. Não sabe nem entende do que falo. A informação não chega a ela. E quando chega é sob a forma de desinformação.

Coitada da ”Dona Nair”.

DOAÇÃO

doa-ação
não se doa
doe ação
faça, aconteça, integre-se
junte-se, misture-se, reparta-se
mire, olhe, enxergue

seja um
seja dez
seja mil
seja um
sejam dez
sejam mil

doar não é dar
doar é ser
HUMANO

CARAVANAS

Olho por dentro
desertos
vazios íntimos
moradia oca
abismo antropofágico.
Invado em mim as revoltas
Invado em mim todas as injustiças
Invado em mim todas as exclusões
Invado em mim todos os descartes
Cuspo escarro vomito
Abro portas janelas horizontes
Evado de mim a dor
Evado de mim as dores
Evado de mim predileções vãs
por mistérios magias imantações chãs.
Olho para fora
Fora estará o alívio ou a consternação
Fora estará o apanágio ou o desespero
Fora estará a suavidade ou a consumição.
Estradas
Caminhos
Veredas
Invernadas
Caravanas, reflexão.

Leia também:

Favelas serão as grandes vítimas do coronavírus no Brasil, diz líder de Paraisópolis

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51954958

Para combater coronavírus tem que lavar bem as mãos. Mas, como? ‘No Morro do Alemão faz 12 dias que falta água’

https://blogdomello.blogspot.com/2020/03/pra-combater-coronavirus-tem-que-lavar-bem-as-maos-mas-como.html

‘Lavamos as mãos nas poças quando chove’: a população de rua e a pandemia

No Brasil, coronavírus vai ser um genocídio, diz ex-ministra

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Rico Jazz

2- Canal Mônica Padilha

”Foi um rio que passou em minha vida …”

Sou uma mulher apaixonada por rios. O movimento deles é bem diferente do movimento do mar. Prefiro os rios ao mar. Sou caipira e não caiçara. Meu ritmo é lento, arrastado, recolho os verdes, os tocos, as flores. Como os rios, não tenho cor definida em mim mesma. Reflito a cor dos céus, absorvo o oxigênio que me oferecem e sigo. Rios rumam, rios rimam …

NASCENTES

Do que nasce o homem?
De terra, água, pedra, céu, fogo?
Do que nasce o homem, meu Deus?
Por degraus de pedras percorrem-se imensidões.
Somos o perfume da macela e do alecrim
Somos a alfazema da estrada de terra.
Somos o riso da menina-moça que nos observa e conta, conta …
Somos o nascer e o por-do-sol no mato
na revoada de asas.
Somos a noite de estrelas
cada uma delas conversando e nos sorrindo em particular.
Somos a voz do matuto que explica as maiores e mais complexas filosofias
a desafiar nossas reflexões.
Somos pedras, pedras, pedras
Movimentos de músculos, jogos de quadris, arremessos de olhares e risos
Somos risos de frases ingênuas, como anjos caídos de um céu daqueles,
mirando-nos,
mineiramente desconfiado.

Cada um de nós conversa com a estrela escolhida,
ainda que tão-tão distantes.
Estrelas ouvem, bem sei que ouvem.

Poesias e fotos: Odonir Oliveira

Vídeo: Canal Odonir Oliveira

Mário de Andrade, amar verbo intransitivo

Em 1975, fui à pré-estreia do filme Lição de Amor, de Eduardo Escorel, baseado no romance Amar verbo intransitivo, no Cine Belas Artes, na Av. Consolação, sessão da meia-noite. Mário merecia. Já assisti muitas e muitas vezes. Assista também.

MOÇA LINDA BEM TRATADA

Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.

Grã-fino do despudor,
Esporte, ignorância e sexo,
Burro como uma porta:
Um coió.

Mulher gordaça, filó,
De ouro por todos os poros
Burra como uma porta:
Paciência…

Plutocrata sem consciência,
Nada porta, terremoto
Que a porta de pobre arromba:
Uma bomba.

ETERNA PRESENÇA

Este feliz desejo de abraçar-te,
Pois que tão longe tu de mim estás,
Faz com que te imagine em toda a parte
Visão, trazendo-me ventura e paz.

Vejo-te em sonho, sonho de beijar-te;
Vejo-te sombra, vou correndo atrás;
Vejo-te nua, oh branco lírio de arte,
Corando-me a existência de rapaz…

E com ver-te e sonhar-te, esta lembrança
Geratriz, esta mágica saudade,
Dá-me a ilusão de que chegaste enfim;

Sinto alegrias de quem pede e alcança
E a enganadora força de, em verdade,
Ter-te, longe de mim, juntinho a mim.

SONETO

Tanta lágrima hei já, senhora minha,
Derramado dos olhos sofredores,
Que se foram com elas meus ardores
E ânsia de amar que de teus dons me vinha.

Todo o pranto chorei. Todo o que eu tinha,
caiu-me ao peito cheio de esplendores,
E em vez de aí formar terras melhores,
Tornou minha alma sáfara e maninha.

E foi tal o chorar por mim vertido,
E tais as dores, tantas as tristezas
Que me arrancou do peito vossa graça,

Que de muito perder, tudo hei perdido !
Não vejo mais surpresas nas surpresas
E nem chorar sei mais, por mor desgraça !

Tela de Tarsila do Amaral (com quem Mário privou muitas intimidades até porque nutriam admiração mútua)

MÁRIO DE ANDRADE E EU

O amor me moveu a ler mais. Assim foi com Sartre, de quem li toda a trilogia, depois seus contos e tantos escritos. Mário de Andrade (e por contraposição, ou extensão, Oswald de Andrade) também me chegou em meio a beijos, abraços, afagos e prelúdios com meu namorado na USP, nos anos 70. Como conhecia ainda bem pouco da cidade de São Paulo, me mudara há menos de 3 anos do Rio para lá, Mário e meu namorado, claro, foram me seduzindo a amar a ”pauliceia desvairada”. Adoro seus poemas, ainda parnasianos, como esses que postei; depois toda a sua lírica crítica e até mesmo avassaladora sobre a sociedade bandeirante. Tenho todos os seus livros, inclusive os de crítica literária, os de música e sobre o folclore brasileiro. Há livros dos quais não me desfaço. São a minha história. Abro um, encontro observações, trechos sublinhados, minhas exclamações e interrogações nas laterais, enfim, faço uma viagem em diversas dimensões: intra-texto e extra-texto mesmo – onde comprei o livro, quando, com quem estava, como o entendi, quando o li, como o entendo hoje. Creio que seja um aprendizado, metáforas da vida também.

Fui conduzida à residência de Mário de Andrade, agora já restaurada e transformada em Oficina da Palavra. Como se deu isso?

Casa da rua Lopes Chaves, onde viveu de 1921 a 1945, quando faleceu.
Oficina da Palavra

No início dos anos 2000, na gestão de Marcos Mendonça, como Secretário de Estado da Cultura, fui convidada a ministrar encontros na Oficina da Palavra. Não seria curso nem oficina de literatura, mas leitura, degustação de textos de gêneros diversos, encontros estes abertos à comunidade. Quem quer que se inscrevesse poderia ali estar. Isso implicava ser bastante simples e favorecer a fruição das leituras a pessoas de idades e de formação escolar diferentes.

Mário de Andrade, leitor de Freud, criador do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, idealizador dos Parques Infantis, que depois deram origem aos Jardins de Infância (hoje as EMEI, Escola Municipal de Educação Infantil), em São Paulo, era ”poli-cultural”, um estudioso das brasilidades de forma integral. Aconteceriam na sua casa os tais encontros. Cada cômodo dispunha de cadeiras universitárias, lousa, retroprojetor, aparelho de som – tudo aquilo que facilitasse a delícia de ler.

A emoção que eu sentia, pisando no assoalho de Mário, na sala dele, na saleta dele – onde estudava piano – entrando pelo seu jardim, pela sua porta, subindo ao seu quarto, nossa, era muito forte. Chegava mais cedo só pra saborear aquela energia, tão transgressora, de meu amigo escritor. Sentia-me como um Macunaíma, como algum de seus personagens nos Contos Novos e bebendo seu lirismo em versos. Cheguei a levar meu livro Poesias Completas e ficar ali, em seu quarto, lendo para suas paredes os seus poemas. Acho que até sei por quê.

FRASES DE MÁRIO DE ANDRADE

Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.”
“O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir.”
“Que coisa misteriosa o sono!… Só aproxima a gente da morte para nos estabelecer melhor dentro da vida…”
“Minha obra toda badala assim: Brasileiros, chegou a hora de realizar o Brasil.”
“Devo confessar preliminarmente, que eu não sei o que é belo e nem sei o que é arte.”

1930 – Mário de Andrade na inauguração da casa modernista do arquiteto Gregori Warchavchik

Leia também sobre Mário de Andrade aqui nesse blog:

“Há uma gota de sangue em cada poema”

https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/03/10/ha-uma-gota-de-sangue-em-cada-poema/

O poço, Mário de Andrade

O poço, Mário de Andrade

Ode ao burguês

Ode ao burguês

Texto: Odonir Oliveira

Fotos retiradas da Internet

Vídeos:

1- Canal TV Cultura

2- Canal Flip- Festa Literária Internacional de Paraty

3- Canal Jorge L. Santos

Destino: Lapa, São Paulo

NA ROTA, UM PORTO

Chapéu de aba larga florido
vestido de fustão e renda
botas de cadarços
luvas brancas de seda.

Colo branco, rosto pálido, boca rósea
Olhar distante
jardim florido de rosas, rosas, rosas …
Pés de amoras, pitangas, goiabas
Perfume de lenha pão bolo café
Cavalos nas calçadas,
homens de chapéus bengalas,
meninos em calças curtas
Olhar distante
Horizontes perdidos em espaço e tempo.

PERFUMARIA GENÉTICA

aqui tem padaria
inspiro
me inspiro
perfume de pão assando
está próxima, está nesse rumo
perfume de pão assando
aqui, é aqui
encontrei
agora é fragrância de chocolate
o bairro aspirando chocolate
os biscoitos da fábrica derramam chocolate em nós
delícias paulistanas
viver por aromas
saber dos aromas
sabor dos aromas
reconhecer os aromas
prazeres inigualáveis

PROFESSORA, ESSA MULHER

Como um presságio, seu mestre mandou:
“Toda mulher deveria ser professora para poder ajudar na educação dos filhos mais tarde”
Faremos tudo que seu mestre mandar.
Até a página dois, querido mestre.

Trabalhadora, trabalhadeira,
segue a mulher no caminho das escolas, dos alunos,
com sua varinha de condão.
Magias retiradas de tapetes mágicos e cartolas de coelhos sábios,
cantarolando melodias de bruxas do bem,
disparando saberes e sabores de seus mestres gregos,
qual um desses seres brotados das páginas
de seus ensinadores livros encantados.

Corre por avenidas, estradas, sobe ladeiras, escadas
entrega mensagens de anjos, serafins e querubins aos infantes meninos
que bebem suas artes, palavras e mágicas
como fossem verdades únicas,
quando não passam de pequeninas estrelas
a brilhar, algum dia, nos céus.

TRAVESSIA: DESTINO LAPA

Com uma barriga enorme cheia de um menino de quase 4 quilos, de mãos dadas com minha filhota com olhinhos cheios de verde, duas cadelas e uma gatinha prenhe, chego à Lapa. Vinha indicada pela Secretaria de Educação, para a Escola Estadual Experimental Dr.Edmundo de Carvalho – o ”Experimental” – um ”braço” dos antigos ginásios vocacionais, extintos, pela ditadura militar. Nenhum professor era titular de cargo no Experimental, mas sim em suas escolas de origem, ali estávamos para estudar, inovar, trabalhar em equipe, melhorar a educação de nossos alunos e alunas e irradiar nossos progressos para toda Rede Estadual de Ensino. Era o ano de 1989. Criava-se ali o (2º) CEFAM- Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (um curso de magistério em período integral e com bolsa de um salário mínimo às alunas).

O bairro da Lapa é um dos mais tradicionais da cidade de São Paulo. A área da Vila Romana, onde estava a nossa casa, um sobrado ensolarado com quintal e garagem, era cheia de árvores, uva japonesa, amoreiras, além dos manacás e de tantas outras. Pertinho, a dois quarteirões, a fábrica de massas Petybon, das indústrias Matarazzo, era cheirinho de biscoito o dia todo. Vendiam biscoitos no varejo, fresquinhos, e mais baratos também. Depois, vendida, tornou-se a Parmalat , a dos bichinhos de pelúcia de brinde.

Caminhava com meu bebê, tempos depois, no carrinho, de mãos dadas com minha filhota e íamos namorando o nosso bairro: a sede do Palmeiras, do qual somos sócios até hoje, açougues e padarias, onde a gente encontrava o pessoal da escola, os novos vizinhos. Comecei a fazer trabalhos para a Editora Melhoramentos, a 3 quarteirões de casa. E fomos conhecendo a Lapa.

Quando a Prefeita Luiza Erundina assumiu, sua Secretária de Cultura era Marilena Chauí, com quem tive prazer de conviver um pouco, tendo como projeto da gestão fazer com que moradores voltassem a se apropriar dos espaços públicos. Para isso era imprescindível que se criassem Centros de Cultura, bairro a bairro, onde a história de cada um deles fosse estudada, exposta em espetáculos de teatro, dança, música com a comunidade, com os moradores e para os moradores. Só se pode defender aquilo que se conhece, aquilo de que se tem pertencimento. Eu adorava e aprendi muito sobre meu querido bairro, repleto de nomes de ruas de imperadores romanos, gregos célebres etc. Minha rua quis o destino nessa travessia que se chamasse Rua Espártaco. Inacreditável, tendo em vista a minha formação em grego clássico etc.

Sinto saudades dos anos de 1990 e da primeira década dos anos 2000, quando vivi na Lapa. Depois mais outros 5 na Pompeia. Sempre naquela região, frequentando o Sesc Pompeia, o Palmeiras, os cinemas da região, as feiras-livres, caminhando com meus filhos pequenos, depois com minhas cadelas. Sinto saudades sim.

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Imagens da Internet

Vídeos:

1-Canal aquatrovozes

2-Canal Jeferson Russel

Ode ao burguês

Ode ao burguês
Mário de Andrade

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês !
A digestão bem-feita de São Paulo !
O homem-curva! o homem-nádegas !
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco !

Eu insulto as aristocracias cautelosas !
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros !
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os “Printemps” com as unhas !

Eu insulto o burguês-funesto !
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições !
Fora os que algarismam os amanhãs !
Olha a vida dos nossos setembros !
Fará Sol? Choverá? Arlequinal !
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol !

Morte à gordura !
Morte às adiposidades cerebrais !
Morte ao burguês-mensal !
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi !
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano !
“Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
Um colar… Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome !”

Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma !
Oh! purée de batatas morais !
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas !
Ódio aos temperamentos regulares !
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia !
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados !
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais !
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia !
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio !
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus !
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico !
Ódio fundamento, sem perdão !

Fora! Fu! Fora o bom burguês !…
1922

Tela de Tarsila do Amaral

ODE À ESTUPIDEZ

Eu desprezo
sua distinção de pele
sua diferenciação de saldo
sua canalhice com seus empregados
sua incapacidade de altruísmo
suas viagens a resorts
sua Itacaré, sua Moreré, sua Noronha

Eu desprezo seu prazer indistinto
sua pele pública
seu tesão comezinho
seu chamou-levou
seu pagou-levou
seu lavou-tá-novo
suas selfies na nuvem
seu nojo de gente de verdade

Eu desprezo sua forma de viver
seus posts no Face, no Insta, no Twitter
sabendo que ele
não tem, não vê, não sabe

Eu desprezo sua revolta de fachada
seu movimento de manada
suas idas aos protestos
suas fotos nos protestos
sua ira empoderada
seus memes, seus gestos vulgares
sua falta de coragem de ação
sua reprovação alheia com memes e pilhérias

Eu desprezo homens que curtam mulheres assim
Eu desprezo mulheres que curtam homens assim.

Eu desprezo a humilhação à outra
Eu desprezo a humilhação ao outro.
Eu desprezo seu corpo jovem eterno.
Eu desprezo seus pelos imberbes
Eu desprezo seus peitos falsos.
Eu desprezo sua carne tostada
Eu desprezo gente como você.

Fora, fora !
Todos vocês !

HIPÓCRITAS, INJUSTOS

morrer na véspera
verter até a última gota de sangue
seu merda
seus merdas
tenho punhos erguidos
tenho braços erguidos
não cedi
não cedo
não me calarão
não me derrubarão
hipocrisias a rodo
testemunhos falsos
pistas falsas
disfarces, máscaras, ludibrios
quanta vileza travestida de exatidão
quanta farsa ao espalhar as migalhas de pão
não me neutralize
não me arrefeça
não me adoce
sou farejadora de canalhas
sou farejadora de mascarados
sou farejadora de cúmplices
sou unhas na pele
sou boca e dentes na pele
sou loba esfaimada
não me atenuem fomes legítimas
não me acarinhem com cantigas de ninar
não sou feromônios apenas
nunca fui feromônios apenas
nunca serei feromônios apenas
sou fêmea parida e belicosa
verdadeira
não visto peles enganosas
quero justiça
quero justiça
quero justiça
até a última gota de sangue

cuspo em suas máscaras, hipócritas
escarro sobre seu território podre
vomito em cima de vocês
tenho nojo de suas couraças
seu merda
seus merdas.

INTOLERÂNCIAS

Não tolero mais
hipocrisias, cabotinismos
Não tolero mais
injustiças, descartes, desmontes
Não tolero mais
rapapés, tapinhas nas costas
Não tolero mais
escapismos, fugas, realinhamentos
Não tolero mais
nenhum tipo de disfarce no jogo social
Não tolero mais
o discurso do falso desconhecimento
Não tolero mais
o efeito manada
a manipulação generalizada
Não tolero mais
o que tolerava
quando mais jovem
quando mais ingênua
quando mais crédula.

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”Há uma gota de sangue em cada poema”

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