A décima segunda guerra mundial, como todos sabem, trouxe o colapso da civilização. Vilas, aldeias e cidades desapareceram da terra. Todos os jardins e todas as florestas foram destruídas. E todas as obras de arte. Homens, mulheres e crianças tomaram-se inferiores aos animais mais inferiores. Desanimados e desiludidos, os cães abandonaram os donos decaídos. Encorajados pela pesarosa condição dos antigos senhores do mundo, os coelhos caíram sobre eles. Livros, pinturas e música desapareceram da terra e os seres humanos ficavam sem fazer nada, olhando no vazio. Anos e anos se passaram. Os poucos sobreviventes militares tinham esquecido o que a última guerra havia decidido. Os rapazes e as moças apenas se olhavam indiferentemente, pois o amor abandonara a terra. Um dia uma jovem, que nunca tinha visto uma flor, encontrou por acaso a última que havia no mundo. Ela contou aos outros seres humanos que a última flor estava morrendo. O único que prestou atenção foi um rapaz que ela encontrou andando por ali. Juntos, os dois alimentaram a flor e ela começou a viver novamente. Um dia uma abelha visitou a flor. E um colibri. E logo havia duas flores, e logo quatro, e logo uma porção de flores. Os jardins e as florestas cresceram novamente. A moça começou a se interessar pela própria aparência. O rapaz descobriu que era muito agradável passar a mão na moça. E o amor renasceu para o mundo. Os seus filhos cresceram saudáveis e fortes e aprenderam a rir e brincar. Os cães retornaram do exílio. Colocando uma pedra em cima de outra pedra, o jovem descobriu como fazer um abrigo. E imediatamente todos começaram a construir abrigos. Vilas, aldeias e cidades surgiram em toda parte. E a canção voltou para o mundo. Surgiram trovadores e malabaristas alfaiates e sapateiros pintores e poetas escultores e ferreiros e soldados e soldados e soldados e soldados e soldados e tenentes e capitães e coronéis e generais e líderes! Algumas pessoas tinham ido viver num lugar, outras em outro. Mas logo as que tinham ido viver na planície desejavam ter ido viver na montanha. E os que tinham escolhido a montanha preferiam a planície. Os líderes, sob a inspiração de Deus, puseram fogo ao descontentamento. E assim o mundo estava novamente em guerra. Desta vez a destruição foi tão completa Que absolutamente nada restou no mundo. Exceto um homem Uma mulher E uma flor.
Dez dicas para enfrentar a reclusão em tempos de pandemia Frei Betto
Estive recluso sob a ditadura militar. Nos quatro anos de prisão trancaram-me em celas solitárias nos DOPS de Porto Alegre e da capital paulista, e também, no estado de São Paulo, no quartel-general da PM, no Batalhão da ROTA, na Penitenciária do Estado, no Carandiru e na Penitenciária de Presidente Venceslau. Partilho, portanto, 10 dicas para suportar melhor esse período de reclusão forçada pela pandemia:
1. Mantenha corpo e cabeça juntos. Estar com o corpo confinado em casa e a mente focada lá fora pode causar depressão.
2. Crie rotina. Não fique de pijama o dia todo, como se estivesse doente. Imponha-se uma agenda de atividades: exercícios físicos, em especial aeróbicos (para estimular o aparelho respiratório), leitura, arrumação de armários, limpeza de cômodos, cozinhar, pesquisar na internet etc.
3. Não fique o dia todo diante da TV ou do computador. Diversifique suas ocupações. Não banque o passageiro que permanece o dia todo na estação sem a menor ideia do horário do trem.
4. Use o telefone para falar com parentes e amigos, em especial com os mais velhos, os vulneráveis e os que vivem só. Entretê-los fará bem a eles e a você.
5. Dedique-se a um trabalho manual: consertar equipamentos, montar quebra-cabeças, costurar, cozinhar etc.
6. Ocupe-se com jogos. Se está em companhia de outras pessoas, estabeleçam um período do dia para jogar xadrez, damas, baralho etc.
7. Escreva um diário da quarentena. Ainda que sem nenhuma intenção de que outros leiam, faça-o para si mesmo. Colocar no papel ou no computador ideias e sentimentos é profundamente terapêutico.
8. Se há crianças ou outros adultos em casa, divida com eles as tarefas domésticas. Estabeleça um programa de atividades, e momentos de convívio e momentos de cada um ficar na sua.
9. Medite. Ainda que você não seja religioso, aprenda a meditar, pois isso esvazia a mente, retém a imaginação, evita ansiedade e alivia tensões. Dedique ao menos 30 minutos do dia à meditação.
10. Não se convença de que a pandemia cessará logo ou durará tantos meses. Aja como se o período de reclusão fosse durar muito tempo. Na prisão, nada pior do que advogado que garante ao cliente que ele recuperará a liberdade dentro de dois ou três meses. Isso desencadeia uma expectativa desgastante. Assim, prepare-se para uma longa viagem dentro da própria casa.
[* Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da prisão” (Companhia das Letras), entre outros livros.]
Que mais tem de acontecer no mundo Para inverter o teu coração pra mim Que quantidade de lágrimas devo deixar cair Que Flor tem que nascer para ganhar o teu amor
Por esse amor meu Deus Eu faço tudo Declamo os poemas mais lindos do universo A ver se te convenço Que a minha alma nasceu para ti
Será preciso um milagre Para que o meu coração se alegre Juro não vou desistir Faça chuva faça sol Porque eu preciso de ti para seguir
Quem me dera Abraçar-te no outono verão e primavera Quiçá viver além uma quimera Herdar a sorte e ganhar teu coração
Será preciso uma tempestade Para perceberes que o meu amor é de verdade Te procuro nos outdoors da cidade, nas luzes dos faróis Nos meros mortais como nós O meu amor é puro é tão grande e resistente como embondeiro Por ti eu vou onde nunca iria Por ti eu sou o que nunca seria
Eu preciso de um milagre Para que o meu coração se alegre Juro não vou desistir Faça chuva faça sol Porque eu preciso de ti para viver
Quem me dera Abraçar-te no outono verão e primavera Quiçá viver além uma quimera Herdar a sorte e ganhar teu coração.
PERTINÊNCIA: Nesses tempos cada vez mais sombrios, de desinformação, abuso de ingenuidades de pessoas, de ingenuidade de cidadãos, de maldades políticas, sociais, emocionais … o blogueiro Fabio Ottolini fez seu post exatamente com essa canção. Eu não a conhecia. Obrigada, os contos e os cantos ainda me emocionam.
Tinham que ter confinado Isso só acontece com os velhos Pra que tudo isso? Separa os velhos e pronto.
Seu corpo depende do meu lastro Sua pele depende do meu conhecimento Sua história depende da minha história.
Bem, não sei como era na sua geração mas hoje não é assim. Eu até entendo mas hoje é bem diferente.
Você sabe pouco. Você sente pouco. Você aspira a bem pouco.
Sexagenários, uni-vos ! As tomografias as endoscopias os eco- os cardio-os eletro- no soma, o físico é o mesmo na polis o pathos está doente.
PENUMBRA
laços lassos pelos pelos ondas umas ondas outras céu e terra voo e marcha aninhar no ninho alisar o dorso alisar o fogo alisar o firmamento janela lançamento janela embarque janela pouso porta entrada porta estrada porta espada corpo esponja corpo porto
TEM QUE SER LEVE
Não traga bagagem ria sempre seja leve Não traga história, dores e mágoas Seja meu oásis, meu bálsamo, minha eterna juventude Não me exija nada Não me cobre nada Não me peça nada Não mendigue nada Traga o álcool Traga os orifícios às minhas permanências sempre quentes, sempre lisos, sempre leves. Não me questione não me atormente não me penetre. Fique por quanto eu quiser Fique por quanto eu beber Fique por quanto eu me embriagar Fique por quanto eu quiser. Não seja. Apenas esteja.
TEM QUE SER JOVEM
Não envelheça Tinja os cabelos de loiro Faça ginástica Faça corridas Frequente academias Use biquínis use tangas use fios dentais use shorts mostre as pernas esteja bronzeada sempre ria mostrando dentes claros gargalhe regada a cervejas tempere-se de pimenta sensual siga as receitas equivalha-se equipare-se brigue nas comparações. Vença.
Hoje pode ser um ”dia de poesia”. Há aqueles que veem a vida com poesia, todos os dias. Hoje tem lua cheia? Haverá os que nem se darão conta disso. Mas quem vive em poesia a estará namorando, fará dela fotos e até … poemas.
”Atiro garrafas ao mar”, podem conter alentos ao seu viver.
Se ando e enxergo, maravilho-me Se paro e contemplo, pulso Se ardo em sensações, vivo. Se estou numa fala num gesto num sorriso, continuo. Se toco a dor humana, emano Se acarinho a terra vermelha, sou. Se tenho compaixão, ajo. Se tenho ainda a emoção, levito. Se ando e enxergo, maravilho-me
”DONA NAIR”
Cai a temperatura. Chove. Tocam a campainha. Fim de tarde. Tocam a campainha. Surjo na sacada de minha casa. Lá embaixo Dona Nair, uma mulher franzina, sozinha na rua, sussurra sob uma sombrinha desengonçada. Pede um edredom, um lençol, qualquer coisa pra uma senhorinha bem pobre que mora lá longe, onde ela mora também.
Três anos antes conheci Dona Nair, já com mais de 80 anos, em casa de uma tia, agora falecida. Dona Nair – mais velha que minha tia – limpava sua casa, uma vez por mês. Conversei com ela – trocava o serviço por uns agasalhos, um dinheirinho pouco. Para a condução? Não. Atravessava a cidade a pé. Vinha da zona rural e voltava. A pé.
Tempos depois, a encontro por lá. Dona Nair atravessa a cidade lavando roupa para as patroas, anda sempre a pé. Converso com ela sobre isso na casa da tia, por que não parava de trabalhar, por que ainda fazia isso, andando a cidade toda a pé. Sempre me ouvia e dizia que uma sobrinha e filhos dependiam dela etc. Questiono se as patroas não dispõem de máquinas de lavar … Descubro que conseguira há poucos dias sua aposentadoria rural. Dou-lhe os parabéns e insisto para que ela descanse, fique mais tranquila, sem trabalhar tanto. Ri e diz que vai ver.
Um ano depois, toca a campainha me pedindo roupas de cama, cobertor, agasalhos. Faço uma boa seleção, encho as sacolas e ela vai embora agradecida. Nas vizinhas, procede da mesma forma. Eu a ajudo, outros, também.
Cai a temperatura. Chove. Tocam a campainha. Fim de tarde. Tocam a campainha. Surjo na sacada de minha casa. Lá embaixo Dona Nair, uma mulher franzina, sozinha na rua, sussurra sob uma sombrinha desengonçada. Pede um edredom, um lençol, qualquer coisa pra uma senhorinha bem pobre que mora lá longe, onde ela mora também. Digo-lhe que dessa vez não tinha mais o que me pedia.
Explico a ela que está frio, chovendo. Falo do coronavírus, dos riscos, que fosse para casa e ficasse por lá.
Olha pra mim como se estivesse falando algo incompreensível pra ela. Não sabe nem entende do que falo. A informação não chega a ela. E quando chega é sob a forma de desinformação.
Coitada da ”Dona Nair”.
DOAÇÃO
doa-ação não se doa doe ação faça, aconteça, integre-se junte-se, misture-se, reparta-se mire, olhe, enxergue
seja um seja dez seja mil seja um sejam dez sejam mil
doar não é dar doar é ser HUMANO
CARAVANAS
Olho por dentro desertos vazios íntimos moradia oca abismo antropofágico. Invado em mim as revoltas Invado em mim todas as injustiças Invado em mim todas as exclusões Invado em mim todos os descartes Cuspo escarro vomito Abro portas janelas horizontes Evado de mim a dor Evado de mim as dores Evado de mim predileções vãs por mistérios magias imantações chãs. Olho para fora Fora estará o alívio ou a consternação Fora estará o apanágio ou o desespero Fora estará a suavidade ou a consumição. Estradas Caminhos Veredas Invernadas Caravanas, reflexão.
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Sou uma mulher apaixonada por rios. O movimento deles é bem diferente do movimento do mar. Prefiro os rios ao mar. Sou caipira e não caiçara. Meu ritmo é lento, arrastado, recolho os verdes, os tocos, as flores. Como os rios, não tenho cor definida em mim mesma. Reflito a cor dos céus, absorvo o oxigênio que me oferecem e sigo. Rios rumam, rios rimam …
NASCENTES
Do que nasce o homem? De terra, água, pedra, céu, fogo? Do que nasce o homem, meu Deus? Por degraus de pedras percorrem-se imensidões. Somos o perfume da macela e do alecrim Somos a alfazema da estrada de terra. Somos o riso da menina-moça que nos observa e conta, conta … Somos o nascer e o por-do-sol no mato na revoada de asas. Somos a noite de estrelas cada uma delas conversando e nos sorrindo em particular. Somos a voz do matuto que explica as maiores e mais complexas filosofias a desafiar nossas reflexões. Somos pedras, pedras, pedras Movimentos de músculos, jogos de quadris, arremessos de olhares e risos Somos risos de frases ingênuas, como anjos caídos de um céu daqueles, mirando-nos, mineiramente desconfiado.
Cada um de nós conversa com a estrela escolhida, ainda que tão-tão distantes. Estrelas ouvem, bem sei que ouvem.
Em 1975, fui à pré-estreia do filme Lição de Amor, de Eduardo Escorel, baseado no romance Amar verbo intransitivo, no Cine Belas Artes, na Av. Consolação, sessão da meia-noite. Mário merecia. Já assisti muitas e muitas vezes. Assista também.
MOÇA LINDA BEM TRATADA
Moça linda bem tratada, Três séculos de família, Burra como uma porta: Um amor.
Grã-fino do despudor, Esporte, ignorância e sexo, Burro como uma porta: Um coió.
Mulher gordaça, filó, De ouro por todos os poros Burra como uma porta: Paciência…
Plutocrata sem consciência, Nada porta, terremoto Que a porta de pobre arromba: Uma bomba.
ETERNA PRESENÇA
Este feliz desejo de abraçar-te, Pois que tão longe tu de mim estás, Faz com que te imagine em toda a parte Visão, trazendo-me ventura e paz.
Vejo-te em sonho, sonho de beijar-te; Vejo-te sombra, vou correndo atrás; Vejo-te nua, oh branco lírio de arte, Corando-me a existência de rapaz…
E com ver-te e sonhar-te, esta lembrança Geratriz, esta mágica saudade, Dá-me a ilusão de que chegaste enfim;
Sinto alegrias de quem pede e alcança E a enganadora força de, em verdade, Ter-te, longe de mim, juntinho a mim.
SONETO
Tanta lágrima hei já, senhora minha, Derramado dos olhos sofredores, Que se foram com elas meus ardores E ânsia de amar que de teus dons me vinha.
Todo o pranto chorei. Todo o que eu tinha, caiu-me ao peito cheio de esplendores, E em vez de aí formar terras melhores, Tornou minha alma sáfara e maninha.
E foi tal o chorar por mim vertido, E tais as dores, tantas as tristezas Que me arrancou do peito vossa graça,
Que de muito perder, tudo hei perdido ! Não vejo mais surpresas nas surpresas E nem chorar sei mais, por mor desgraça !
MÁRIO DE ANDRADE E EU
O amor me moveu a ler mais. Assim foi com Sartre, de quem li toda a trilogia, depois seus contos e tantos escritos. Mário de Andrade (e por contraposição, ou extensão, Oswald de Andrade) também me chegou em meio a beijos, abraços, afagos e prelúdios com meu namorado na USP, nos anos 70. Como conhecia ainda bem pouco da cidade de São Paulo, me mudara há menos de 3 anos do Rio para lá, Mário e meu namorado, claro, foram me seduzindo a amar a ”pauliceia desvairada”. Adoro seus poemas, ainda parnasianos, como esses que postei; depois toda a sua lírica crítica e até mesmo avassaladora sobre a sociedade bandeirante. Tenho todos os seus livros, inclusive os de crítica literária, os de música e sobre o folclore brasileiro. Há livros dos quais não me desfaço. São a minha história. Abro um, encontro observações, trechos sublinhados, minhas exclamações e interrogações nas laterais, enfim, faço uma viagem em diversas dimensões: intra-texto e extra-texto mesmo – onde comprei o livro, quando, com quem estava, como o entendi, quando o li, como o entendo hoje. Creio que seja um aprendizado, metáforas da vida também.
Fui conduzida à residência de Mário de Andrade, agora já restaurada e transformada em Oficina da Palavra. Como se deu isso?
No início dos anos 2000, na gestão de Marcos Mendonça, como Secretário de Estado da Cultura, fui convidada a ministrar encontros na Oficina da Palavra. Não seria curso nem oficina de literatura, mas leitura, degustação de textos de gêneros diversos, encontros estes abertos à comunidade. Quem quer que se inscrevesse poderia ali estar. Isso implicava ser bastante simples e favorecer a fruição das leituras a pessoas de idades e de formação escolar diferentes.
Mário de Andrade, leitor de Freud, criador do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, idealizador dos Parques Infantis, que depois deram origem aos Jardins de Infância (hoje as EMEI, Escola Municipal de Educação Infantil), em São Paulo, era ”poli-cultural”, um estudioso das brasilidades de forma integral. Aconteceriam na sua casa os tais encontros. Cada cômodo dispunha de cadeiras universitárias, lousa, retroprojetor, aparelho de som – tudo aquilo que facilitasse a delícia de ler.
A emoção que eu sentia, pisando no assoalho de Mário, na sala dele, na saleta dele – onde estudava piano – entrando pelo seu jardim, pela sua porta, subindo ao seu quarto, nossa, era muito forte. Chegava mais cedo só pra saborear aquela energia, tão transgressora, de meu amigo escritor. Sentia-me como um Macunaíma, como algum de seus personagens nos Contos Novos e bebendo seu lirismo em versos. Cheguei a levar meu livro Poesias Completas e ficar ali, em seu quarto, lendo para suas paredes os seus poemas. Acho que até sei por quê.
FRASES DE MÁRIO DE ANDRADE
“Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição.” “O passado é lição para se meditar, não para se reproduzir.” “Que coisa misteriosa o sono!… Só aproxima a gente da morte para nos estabelecer melhor dentro da vida…” “Minha obra toda badala assim: Brasileiros, chegou a hora de realizar o Brasil.” “Devo confessar preliminarmente, que eu não sei o que é belo e nem sei o que é arte.”
Leia também sobre Mário de Andrade aqui nesse blog:
Chapéu de aba larga florido vestido de fustão e renda botas de cadarços luvas brancas de seda.
Colo branco, rosto pálido, boca rósea Olhar distante jardim florido de rosas, rosas, rosas … Pés de amoras, pitangas, goiabas Perfume de lenha pão bolo café Cavalos nas calçadas, homens de chapéus bengalas, meninos em calças curtas Olhar distante Horizontes perdidos em espaço e tempo.
PERFUMARIA GENÉTICA
aqui tem padaria inspiro me inspiro perfume de pão assando está próxima, está nesse rumo perfume de pão assando aqui, é aqui encontrei agora é fragrância de chocolate o bairro aspirando chocolate os biscoitos da fábrica derramam chocolate em nós delícias paulistanas viver por aromas saber dos aromas sabor dos aromas reconhecer os aromas prazeres inigualáveis
PROFESSORA, ESSA MULHER
Como um presságio, seu mestre mandou: “Toda mulher deveria ser professora para poder ajudar na educação dos filhos mais tarde” Faremos tudo que seu mestre mandar. Até a página dois, querido mestre.
Trabalhadora, trabalhadeira, segue a mulher no caminho das escolas, dos alunos, com sua varinha de condão. Magias retiradas de tapetes mágicos e cartolas de coelhos sábios, cantarolando melodias de bruxas do bem, disparando saberes e sabores de seus mestres gregos, qual um desses seres brotados das páginas de seus ensinadores livros encantados.
Corre por avenidas, estradas, sobe ladeiras, escadas entrega mensagens de anjos, serafins e querubins aos infantes meninos que bebem suas artes, palavras e mágicas como fossem verdades únicas, quando não passam de pequeninas estrelas a brilhar, algum dia, nos céus.
TRAVESSIA: DESTINO LAPA
Com uma barriga enorme cheia de um menino de quase 4 quilos, de mãos dadas com minha filhota com olhinhos cheios de verde, duas cadelas e uma gatinha prenhe, chego à Lapa. Vinha indicada pela Secretaria de Educação, para a Escola Estadual Experimental Dr.Edmundo de Carvalho – o ”Experimental” – um ”braço” dos antigos ginásios vocacionais, extintos, pela ditadura militar. Nenhum professor era titular de cargo no Experimental, mas sim em suas escolas de origem, ali estávamos para estudar, inovar, trabalhar em equipe, melhorar a educação de nossos alunos e alunas e irradiar nossos progressos para toda Rede Estadual de Ensino. Era o ano de 1989. Criava-se ali o (2º) CEFAM- Centro de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (um curso de magistério em período integral e com bolsa de um salário mínimo às alunas).
O bairro da Lapa é um dos mais tradicionais da cidade de São Paulo. A área da Vila Romana, onde estava a nossa casa, um sobrado ensolarado com quintal e garagem, era cheia de árvores, uva japonesa, amoreiras, além dos manacás e de tantas outras. Pertinho, a dois quarteirões, a fábrica de massas Petybon, das indústrias Matarazzo, era cheirinho de biscoito o dia todo. Vendiam biscoitos no varejo, fresquinhos, e mais baratos também. Depois, vendida, tornou-se a Parmalat , a dos bichinhos de pelúcia de brinde.
Caminhava com meu bebê, tempos depois, no carrinho, de mãos dadas com minha filhota e íamos namorando o nosso bairro: a sede do Palmeiras, do qual somos sócios até hoje, açougues e padarias, onde a gente encontrava o pessoal da escola, os novos vizinhos. Comecei a fazer trabalhos para a Editora Melhoramentos, a 3 quarteirões de casa. E fomos conhecendo a Lapa.
Quando a Prefeita Luiza Erundina assumiu, sua Secretária de Cultura era Marilena Chauí, com quem tive prazer de conviver um pouco, tendo como projeto da gestão fazer com que moradores voltassem a se apropriar dos espaços públicos. Para isso era imprescindível que se criassem Centros de Cultura, bairro a bairro, onde a história de cada um deles fosse estudada, exposta em espetáculos de teatro, dança, música com a comunidade, com os moradores e para os moradores. Só se pode defender aquilo que se conhece, aquilo de que se tem pertencimento. Eu adorava e aprendi muito sobre meu querido bairro, repleto de nomes de ruas de imperadores romanos, gregos célebres etc. Minha rua quis o destino nessa travessia que se chamasse Rua Espártaco. Inacreditável, tendo em vista a minha formação em grego clássico etc.
Sinto saudades dos anos de 1990 e da primeira década dos anos 2000, quando vivi na Lapa. Depois mais outros 5 na Pompeia. Sempre naquela região, frequentando o Sesc Pompeia, o Palmeiras, os cinemas da região, as feiras-livres, caminhando com meus filhos pequenos, depois com minhas cadelas. Sinto saudades sim.
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês ! A digestão bem-feita de São Paulo ! O homem-curva! o homem-nádegas ! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco !
Eu insulto as aristocracias cautelosas ! Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros ! que vivem dentro de muros sem pulos; e gemem sangues de alguns mil-réis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam os “Printemps” com as unhas !
Eu insulto o burguês-funesto ! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições ! Fora os que algarismam os amanhãs ! Olha a vida dos nossos setembros ! Fará Sol? Choverá? Arlequinal ! Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol !
Morte à gordura ! Morte às adiposidades cerebrais ! Morte ao burguês-mensal ! ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi ! Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano ! “Ai, filha, que te darei pelos teus anos? Um colar… Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome !”
Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma ! Oh! purée de batatas morais ! Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas ! Ódio aos temperamentos regulares ! Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia ! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados ! Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, sempiternamente as mesmices convencionais ! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia ! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Todos para a Central do meu rancor inebriante Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio ! Morte ao burguês de giolhos, cheirando religião e que não crê em Deus ! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico ! Ódio fundamento, sem perdão !
Fora! Fu! Fora o bom burguês !… 1922
ODE À ESTUPIDEZ
Eu desprezo sua distinção de pele sua diferenciação de saldo sua canalhice com seus empregados sua incapacidade de altruísmo suas viagens a resorts sua Itacaré, sua Moreré, sua Noronha
Eu desprezo seu prazer indistinto sua pele pública seu tesão comezinho seu chamou-levou seu pagou-levou seu lavou-tá-novo suas selfies na nuvem seu nojo de gente de verdade
Eu desprezo sua forma de viver seus posts no Face, no Insta, no Twitter sabendo que ele não tem, não vê, não sabe
Eu desprezo sua revolta de fachada seu movimento de manada suas idas aos protestos suas fotos nos protestos sua ira empoderada seus memes, seus gestos vulgares sua falta de coragem de ação sua reprovação alheia com memes e pilhérias
Eu desprezo homens que curtam mulheres assim Eu desprezo mulheres que curtam homens assim.
Eu desprezo a humilhação à outra Eu desprezo a humilhação ao outro. Eu desprezo seu corpo jovem eterno. Eu desprezo seus pelos imberbes Eu desprezo seus peitos falsos. Eu desprezo sua carne tostada Eu desprezo gente como você.
Fora, fora ! Todos vocês !
HIPÓCRITAS, INJUSTOS
morrer na véspera verter até a última gota de sangue seu merda seus merdas tenho punhos erguidos tenho braços erguidos não cedi não cedo não me calarão não me derrubarão hipocrisias a rodo testemunhos falsos pistas falsas disfarces, máscaras, ludibrios quanta vileza travestida de exatidão quanta farsa ao espalhar as migalhas de pão não me neutralize não me arrefeça não me adoce sou farejadora de canalhas sou farejadora de mascarados sou farejadora de cúmplices sou unhas na pele sou boca e dentes na pele sou loba esfaimada não me atenuem fomes legítimas não me acarinhem com cantigas de ninar não sou feromônios apenas nunca fui feromônios apenas nunca serei feromônios apenas sou fêmea parida e belicosa verdadeira não visto peles enganosas quero justiça quero justiça quero justiça até a última gota de sangue
cuspo em suas máscaras, hipócritas escarro sobre seu território podre vomito em cima de vocês tenho nojo de suas couraças seu merda seus merdas.
INTOLERÂNCIAS
Não tolero mais hipocrisias, cabotinismos Não tolero mais injustiças, descartes, desmontes Não tolero mais rapapés, tapinhas nas costas Não tolero mais escapismos, fugas, realinhamentos Não tolero mais nenhum tipo de disfarce no jogo social Não tolero mais o discurso do falso desconhecimento Não tolero mais o efeito manada a manipulação generalizada Não tolero mais o que tolerava quando mais jovem quando mais ingênua quando mais crédula.