Tempo, cúmplice parceiro

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Meninos do Clubinho da Leitura em Barbacena

“… rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando aberto para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é.”

Raduan Nassar, in: Lavoura arcaica, 1975

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TEMPOS

A brevidade das manhãs concorrendo com as vesperais de gritos
nas brincadeiras coletivas,
nos sorrisos
no descompromisso de ser,
na preciosidade de apenas estar.
Compasso régua transferidor desenhando uma geometria
doce suave risonha.
O tormentoso entardecer contemplando o sangue quente de gritos
na explosão das paixões saborizadas,
nas picadas das abelhas de mel único inesquecível.
Bocas braços pernas contornos enfeitando uma paisagem
forte quente incontrolável.
O inquieto anoitecer desfazendo ramais e caminhos traçados.
Gritos,
em espaços e tempos redesenhados
em figuras sobrepostas em vãos
em retas e curvas deslizes e reviravoltas.
Tempo,
parceiro,
cúmplice …
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SEMEAR

Entrego à terra todas as minhas sementes
de flores frutos e dores.
Aguardo os tempos
recolho as ervas daninhas
rego galhos novos e folhas
adubo de lágrimas e risos a terra-mãe.
Aguardo tempos
aguardo luas
aguardo estações
aguardo anos.
Tempo,
anjo algoz de minhas esperas.
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COLHER

Deu-se a polinização
Encantou-se a terra com a água
o ar trouxe o beija-flor
depois o bem-te-vi
depois a cotovia.
romeus e julietas dos espíritos
acudiram afrodites cupidos
anjos e delírios
bacos e dionisos
arlequins, colombinas, pierrôs
otelos e desdêmonas
socorreram
 aspergindo pólens e pólens e pólens.
De esperas gritos e contemplações
de gineceus e androceus,
Tempo,
suserano vassalo.
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“[…] o tempo, o tempo, esse algoz às vezes suave, às vezes mais terrível, demônio absoluto conferindo qualidade a todas as coisas, é ele ainda hoje e sempre quem decide e por isso a quem me curvo cheio de medo e erguido em suspense me perguntando qual o momento preciso da transposição? Que instante, que instante terrível é esse que marca o salto? Que massa de vento, que fundo de espaço concorrem para levar ao limite?”

“[…] toda palavra, sim, é uma semente; entre as coisas humanas que podemos nos assombrar, vem a força do verbo em primeiro lugar; precedido o uso das mãos, está no fundamento de toda prática, vinga e se expande, e perpetua, desde que seja justo.”

Raduan Nassar, in: Lavoura arcaica. 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982 p. 85-86- 160 

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 Poesias: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal
1º Vídeo: Canal Marcelo Marinho
2º Vídeo: Canal Cris Balla
3º Vídeo: Canal Salete Chechin
4º Vídeo: Canal Rui Velocci

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Janelas de Minas, janelas de mim

FUGAS E CAMINHOS

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FUGA

Não são jardins,
não têm fragrâncias
as flores que se exibem aqui.
 
Não há cores,
não têm do dia os tons do laranja
nem da noite o perfume das damas
magnólias rosas cravos e jasmins.
 
Fuga dos exílios de mim.
Fuga dos exílios de peles gotas sementes.
Fuga do desterro opressor de décadas.
  
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NA CONTEMPLAÇÃO DO BELO, ADENTRAR O NOVO NÃO-NOVO

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JANELA

Era sol
Era água
Era lago, lagoa, rio.
 
Era amanhecer
Era entardecer
Era anoitecer
 
Era madrugada em sintonia
Era madrugada em sinfonias.
 
Era gelosia centenária
Era veneziana secular
Era peitoral histórico.
Era janela dos olhos.
 
Era explosão do sentir.
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DAS DORES

Das Dores
pinga dores lágrimas e lamentos.
Das Dores
verte sangue pus fedores.
 
Das Dores
amarga manhãs tardes noites
na clausura de subidas e descidas
em companhia solene de anjos, serafins e querubins.
 
Das Dores
entrega sua lira aos deuses
na esperança de que pousem em sua janela,
devolvendo-lhe luz, cor e o perfume dos dias.
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RETÁBULOS

Sagrados aros
altares expostos
falares repostos
ouvires devotos.
 
Minas serras
Minas terras
Minas entranhas
Minas estradas
Minas, mineiros guardiões.
Minas, mineiros paixões.
 
Um dedo, um sonho, um medo
Uma rebelião.
Uma porta
Uma retorta
Um arco
Uma janela composta
Um olhar distante
Montanhas em tela.
 
Inspiração
Entrega
Expiação.
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VIZINHOS

Cheiro de taioba talhada
Refogada com alho pilado.
Angu molinho
Fubá banco, amarelo
Couve picada fininha
Feijão fresquinho
Quiabo com galinha
Doce de leite ambrosia e queijo fresco molhado
Desejos
Sabores senhores
Vassalagem amorosa de corpos e peles de Minas.
 
Num vento brejeiro,
com uma lua amante de estrelas,
um gozo de céu e terra,
um grito de entrega e refrega,
ao som de vozes fantasmas mineiras,
 
Drummond, Drummond , Drummond, Drummond,
me carrega que sou tua.
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NO MEIO DO CAMINHO, QUALQUER CAMINHO

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: Tiradentes- Barbacena- 2016

Vídeos:

1- Canal fusabue

2- Canal Swetydu972M

3- Canal gusarquiteto

4- Canal imoreirasalles

Com as estrelas … vieste

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo,
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto. […] Olavo Bilac

DA ESTRELA

Noite escura,
opacidade imensidão esperas
diáfanos ventos brisas sopram sonatas
O sono impele ao sonho contumaz.
Impacto,
brilho luz cor movimento
suaves alimentos sopram lirismo
O sonho seduz ao lume da estrela.
De tantas ali ora expostas
Só ela incita àquela descoberta fugaz.

CONVERSA COM ESTRELAS

Só, somente assim ser.
Acalanto de sossegos ninando aspirações.
Respostas ternas para enigmas ocultados.
Confissões em cantos únicos
súplicas, apelos, inquietações.
Aquiescendo dores inconfessáveis
segredos indizíveis
amores inexplicáveis.
Oráculos de almas em conflito.
Estrelas,
dos mistérios
à luz.

SORRISO DE ESTRELA

É quando no desespero de mim,
que encontro a ti
sorrindo repetidas vezes
com passos ouvidos
em reflexos mínimos
em espaços imprevisíveis
em momentos inesperados.
É quando miro estrelas
que encontro
teu lume no delas
tua silhueta na delas
teu dorso incomum no brilho delas.
É quando escurece
que estrelas em ramalhetes
te trazem a mim,
e em ti permaneço
pousada no céu.

A CULPA É DAS ESTRELAS

Você lua
rua
nua
noite
dança,
Baco.
Eu estrela
dupla
culpa
multa
luta,
Dioniso
Lua nua
Estrela nua.

ÀS ESTRELAS, OS PORQUÊS

Não sei o que dizer
quando ela quer saber do meu amor.
Não sei se digo que a amo.
Não sei se digo que não sei se é amor.
Não sei se sei, antes de ter o que lhe dizer.
Sei um pouco do que sinto
E tudo o que sinto é pouco
Perto do pouco que vivi com ela.
Não sei o que dizer com palavras de sentido claro e único
porque o que sinto por ela não é claro e único também.
Assim prefiro imagens repletas de polissemias a cada linha
porque garantem que ela, por si mesma,
terá que desocultá-las.
Não sei ser mais claro do que tenho tentado ser
porque também eu sou incomum, estrangeiro, invulgar.

Poesias: Odonir Oliveira

1º Vídeo: Canal Nacionais Anos 80
2º Vídeo: Canal Zoe Tsolaki
3º Vídeo: Canal Odonir Oliveira
4º Vídeo: Canal Gabriel Piva
5º Vídeo: Canal Neide Gama

Romantismo, quem não quer?

SER ROMÂNTICO É SER DERRAMADO POR DENTRO E POR FORA.

Dores de amores viram escaras e depois feridas. Às vezes, cicatrizam , mas deixam queloides, aquelas que de se olhar para elas, dói tudo de novo, por dentro.

Eu gosto muito de gente assim, dolorida, retorcida e depois COLORIDA.

De homem assim, então… UMA DELICIOSA DELÍCIA.

‘Se eu faço unicamente o meu

E tu o teu

Corremos o risco de perdermos uma ao outro e a nós mesmos

Não estou neste mundo para preencher tuas expectativas

Mas estou no mundo para me confirmar a ti.

Como um ser humano único para ser confirmado por ti.

Somos plenamente nós mesmos somente em relação um ao outro

Eu não te encontro por acaso te encontro mediante uma vida atenta em lugar de permitir que as coisas me aconteçam passivamente

Posso agir intencionalmente para que aconteçam

Devo começar comigo mesmo, verdade, mas não devo terminar aí a verdade começa a dois.”

Em: AME e DÊ VEXAME, de Roberto Freire, Ed. Guanabara, 1990, RJ

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ESTRADA

Odonir Oliveira

Não havia mais jeito. Fim de linha. Era essa viagem e depois cada um pro seu lado.E isso agora de ter de contar aos pais, tios e avós já era demais.

Casamento acabando, dez anos de alegrias e tropeços, sem filhos. Fim. Nada segurava mais aquilo. Fim do romantismo, fim do erotismo, fim do companheirismo, fim de tudo. Carmem pensava enquanto o marido Raul dirigia por aquela estrada cheia de remendos e de chuva fininha, sabão para acidentes.

Motorista, só sirvo pra isso. Bem que ela podia guiar um pouco, não considera nem minha dor nas costas, não se oferece, nada. Horas nesse volante. Fim de tudo. Acabou esse jogo, fim da parceria, ainda bem que não tem filho no meio. Menos pensão, menos discussão, só separação e pronto.

Silêncio absurdo como o de uma sala de cirurgia delicada. Delicadíssima. Nenhum lamento, nenhum xingamento ou conexão. Mudez recíproca, que cada palavra dita era prenúncio de deboche, desdém, menosprezo. Fim.

Tropeço na estrada. Engasgo do carro. Esforço de alcançarem uma luzinha acesa à frente. Chuva aumentando. Chegaram. Ele saiu. Chuva. Olhou o motor. Nada. Perguntou a alguém no balcão se ainda haveria alguma oficina nas redondezas que pudesse socorrê-lo. Só amanhã- foi a resposta.

Ela no carro. Lembrou do auxílio da seguradora, mas ali o telefone não funcionava. Fora de área.

Sugestão do homem em pé no balcão: Amanhã, amanhã consertam o seu carro.

O do balcão sugeriu que pernoitassem lá. Nos fundos havia uns quartinhos com banheiro, chuveiro.

Essa música é de onde? – quis saber Raul. Do bailinho aqui ao lado. Toda quarta, sexta e sábado tem. Tem? Tem.

Banhos tomados. Roupas trocadas. Lanches quentes na chapa. Raul, uma pinguinha. Uma batida pra ela. Duas batidas, três batidas. Raul mais umas pingas. Perdeu a conta. Foram até o tal lado porque ouviram a primeira, a segunda, a terceira e eram todas músicas com histórico na etiqueta. Tinham viajado com elas por anos de namoro etc. etc. Dançaram. Ficaram mudos e totalmente sozinhos. Ninguém dos outros pares foi sequer notado pelos dois. Colados de rosto e pele, foram ficando mais e mais colados de rosto e pele, por mais de uma hora.

Chega. Cama. Romantismo. Erotismo. Beijos, toques e prazeres.

Na manhã seguinte o carro ficou pronto.Um sorriso de cumplicidade neles.

Estrada.

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MENINOS ROMÂNTICOS

Odonir Oliveira

Em Santos, nos anos sessenta, Ricardo e seu primo Renato iam tentar conquistar umas garotas de São Paulo que lá estavam passando o verão.

Marcaram na praia, no final da tarde, e, ambos com 14 anos pouco sabiam de amar, embora desejassem aprender. Assim o primo encontrou-se com as meninas, levou uma delas pra caminhar na praia e a outra ficou aos cuidados de Ricardo.

Com pouca grana, pouquíssima aliás, resolveu comprar uma cocada grande para irem caminhando, passeando e comendo. A mocinha, calada, Ricardo, calado, a cocada era a salvação. E como nada dissessem, a cocada ia sumindo na boca da menina, sem ter ele dado uma bocadinha sequer no delicioso doce. Ícones eternos.

Pararam, ela já quase sem ter mais o que comer, e ele sem ter assunto que falar, vê que a mocinha parada se encosta em um murinho. Surpresa. Era o último pedacinho de cocada que se ia, sem o rapazinho ter provado nem um tiquinho  dela !

Nada restava a ele, a hora passava, nada do primo voltar com a amiga de seu par.

Foi aí que teve, não se sabe de onde, a sacada maior : virou-se para a garota encostada no murinho, chegou bem perto dela, num enlevo revelador  e, perguntou, de súbito:

–  Qual a sua religião ?

A menina começou a caminhar de volta ao ponto de onde haviam saído, apressando o passo, sem mesmo olhar para Ricardo mais atrás.

Ele, meio ao lado, meio atrás, sem cocada, sem mais nada, perdera aquele beijo de murinho.

Dia seguinte, mentiu ao primo.

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VERTIGEM

Odonir Oliveira

Acordara bem cedo. A noite havia sido curta. Encontrara-se pela madrugada de uma, duas ou três maneiras com ele. Em uma delas perdera a respiração, como que engasgada, e numa apneia orgástica, sufocara.

Água fria, não gelada para não espantar de todo o companheiro de viagem que a cama ainda estava quente.

Computador, músicas, leituras, versos, notícias. Vontade de dormir a continuação daquele sonho anterior. Não daria, que Virgínia era exigente pra cacete. Em sua boca só palavras de alto calão. Em sonhos… em sonhos…outras palavras.

Voltou pra cama em olhos fechados e imagens distorcidas.

Tudo lhe vinha misturado agora; muitas figuras, muitas vozes, de Dioniso um aviso, acorda, acorda. De Morfeu outra, dorme, dorme . Afrodite ainda, fica, fica, espera, espera, chove, chove, chove, fica.

Confusão etílica de vinho tinto bom. Queijos, pouco aprovados que desejava apenas a companhia de seus deuses hoje, ontem, amanhã.

De pé de novo, escreve. Escreve não, pois que psicografa dez poemas, uma crônica, uma ode, dois recados e uma apelo. Era uma romântica.

Exílios, ainda sem forma e estilo. Psicografa.

Exílios voluntários; exílio de coxas quentes; exílio de costas largas; exílio de pés enormes; exílio de mãos atrevidas; exílio de ventre berço; exílio de braços laços; exílio de membro aderente; exílio de pescoço salgado;exílio de orelhas atraentes; exílio de olhos mudos; exílio de cabelos outros; exílio de língua sonora; exílio de lábios profanos; exílio de boca sagrada; exílio de corpos nus; exílio de corpos nós; exílio de medos; exílio de gozo; exílio de tantos.

Não consegue mais dormir. Precisa dormir. Não sabe mais a quem ouvir se a Safo, a Baco, a Dioniso, a Afrodite ou até mesmo a Zeus, ó pai.

Tem visões alucinadas de estradas, automóveis, flores, barcos, trens, vozes surdas, convites vagos, interpretações múltiplas. Estaria Virgínia enlouquecendo com aquele jogo de dá e toma dos deuses, com aquelas gestalts interrompidas todas. Muito mais do que falar, a ensandecida  adormecida queria ouvir. Impossível. Estava dentro de um sonho, repleto de imagens fugazes, inefáveis, pouco táteis. Era uma romântica.

Decidida a se levantar, fossem que horas fossem. Pegou o carro, entrou num bar, havia ali  três ou quatro caras acompanhados, e mais um, de rosto moreno, braços fortes no balcão.

Sentou lá ao lado dele. Ele perguntou seu nome. Ela disse. Bebeu pinga. Ele pagou.

Saíram dali para casa dele.

Surpresa.

O cara sabia dos desejos de uma mulher. Falou nada.

Talvez um oferecimento de um isso ou de um aquilo. E só.

Vertigem. Em poucas palavras.

Estranhou ela tudo aquilo e que tivesse alcançado tanto prazer naquele encontro casual.

Sentiu falta de um Vinícius, de um Drummond, de um Caetano, de um Pessoa, de um Baleiro, talvez. Mas nem tudo pode ser perfeito,  não é.

Era uma romântica.

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DOMINGO DE MANHÃ

Odonir Oliveira 

Domingo era dia de lirismo. Era um lirismo de corpos. Acordavam tarde, porque rolavam da cama ao chão, do chão à chuva do chuveiro e depois ao secador de corpos natural- ao sol.

Nus gostavam de se deixar assim, naquela praia deserta de Salvador.

Doces anos aqueles em que praias eram desertas em Salvador.

Ele vinha, ela vinha. Encontravam-se ali, quase que sem palavras. Era rude o amor de seus interiores. Era rude. Arrependia-se de suas rudezas, mas era tarde. Palavras batiam nela como palmatórias e tapas em boca suja de criança.

Para ela, pouco importavam aqueles desprezos dele. Era mulher casada. Bem casada dizia sempre. Estava ali à vontade, por vontade, com vontade e assim seguia dando acolhida a seu corpo dentro do dele, homem rude, bem diferente do esposo, homem fino, de vocabulário comedido – um almofadinha gaulês. Era fino, que se diga logo. Incapaz de uma posição estranha, de um toque mais rude. Em todas as situações: em pé ou não.

Serafine queria mais. Gostava de conquistar, de arrebatar, de sentir que conseguira mais um troféu. Romantismo a serviço.

Não era má. Ao contrário, não fazia mal a ninguém, nem pelo signo, nem pelo discurso, sempre doce e gentil. Quase uma fadinha de contos da carochinha. Mas era assim, digamos, insaciável.

Ser insaciável é qualidade, não é defeito nem senão.

Seu prazer maior residia nesses domingos, quando podia encontrar com seu rude homem e, nus, viverem um mundo à parte.

Talvez, porque bem jovem tivesse sido apascentada com a Belle de Jour, com O Último Tango em Paris, e com outros roteiros de queijos e vinhos finos. Tudo isso fazia dela uma insaciável de corpos.

Serafine era branquinha, cabelos negros, magra e fada. Tinha uma varinha de condão específica. Ia e voltava , ia e voltava. Em várias situações.

O marido fino não suspeitava dessas idas e vindas. Mas talvez se soubesse, aceitasse, porque a varinha mágica o encantava também. E muitos são os mistérios que existem nos corpos encantados de cores e sabores.

Ali, nus, se secando ao sol, começaram a se lembrar de vezes outras. Dores surgiram. Mas o que são dores para quem bebe mel em gotas, várias e várias vezes?

Das dores de dentro, preferiam as de fora: o ralar dos joelhos, a boca mordida, o edema no pescoço… ouvindo aqueles boleros viris e aquelas cançonetas de antanho.

Serafine era mulher de tratos e truques, e, os homens … com ela se encantavam.

De femme fatale não poderia ser acusada jamais. Não era. Era fada, era Fedra, era festa, a Serafine!

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O PROFESSOR

 Odonir Oliveira

Era um garoto daqueles de perder qualquer mulher, experiente ou não. Cabelos cinza, 17 anos, baterista de banda de rock, inglês perfeito, meio sardento, pele clara, nascido na Argentina, criado na Alemanha e morando naquela época no Brasil. Um sorriso de covinhas, com calça jeans esburacada num tempo em que isso não era pedigree ainda. Por ele todas as adolescentes eram apaixonadas. Aquelas brincadeiras todas de me pega e me deixa acontecendo na entrada das aulas, nos intervalos, na hora da saída. Ele, doce, de lábios doces, sorriso doce, pele clarinha. Doce.

Aula de artes, construção do corpo, dimensões, recriação de modelos estéticos, leituras, interpretações, visitas a mostras. Tudo que um adolescente criativo, vivo, vibrante gosta de fazer.

A aula acontecendo, a professora Rosana de saia curta, de pernas grossas senta-se na mesa.  Alan olha direto para aquelas pernas, com tanto ímpeto que ela se sentiu despida por aquele olhar. Aula no fim. Alan pouco se dirigia à professora, o que a deixava intrigada se por querer evitá-la ou temer ter que enfrentá-la.

De repente ela começou a sentir seu faro feminino direcionado a Alan. O que seria aquilo… um rapazinho quase quinze anos mais novo que ela. Maluquice, carência afetiva produzida por uma voluntária ausência de parceiros. Devia ser isso.

Outra aula, sala escura, projeção de slides. Olhares que se cruzam entre ambos. Tesão sob a blusa fina, sob o avental, que agora vinha preparada para possíveis bicos de seios enfarolados de repente, como ocorrera de outra vez.

Ele, seguro, um verdadeiro professor. Olhava, retirava o olhar. Jamais cafajeste com as meninas suas amigas, jamais fazendo qualquer joguinho para despertar ciuminho tolo no plantel que o envolvia, di-a-ri-a-men-te !

Nadava com destreza, jogava os cabelos longos de um lado para o outro, ao sair da piscina. Ela assistia a tudo sem esboçar reação.

Visita à Bienal, quem vai com quem , no carro de quem. Na volta, uns alunos entregues em suas casas, outras levados por seus pais. Ele, o último no carro dela. Sábado à noite.

“Para o carro aí” . “O que houve, esqueceu alguma coisa?” Não conseguiu terminar a frase. Beijou-a com uma segurança pouco vista até ali. Alisou seus cabelos, sem falar uma palavra sequer. Beijou-a, beijou-a. Ela não conseguia dizer uma palavra, pois que sua língua da dela não saía mais. Parecia estar em um curso de como se beijar professoras titubeantes, num sábado à noite.

Casa. “Vamos embora já”. Foram.

Como olhar para Alan em classe agora? Como cobrar dele um exercício, um trabalho. Era excelente aluno. Lia e escrevia como poucos. Um artista, um privilegiado.

Na cidade grande saíram certa vez, sem serem reconhecidos. Ela era jovem, bonita, de corpo autoral. Ele parecia mais novo, mas não tanto.

Esse romance demorou uns meses, sempre corretíssimo, Alan jamais deixou escapar qualquer coisa que prejudicasse a professora, um verdadeiro mestre, até quando ela saiu da escola.

Os dois ainda se encontraram algumas vezes, consumaram seu amor , perdidos em manias de você por ali por aqui.

Uma situação impensável anos antes por ela.

Ele mudou-se de volta para Argentina.

Anos mais tarde se encontraram por lá.

De néctares, águas e veredas

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DE NÉCTARES E DORES: CORES

Acordava e deparava com aquele cenário carregado de belezas
Podia ver amarelos, azuis, verdes e doces
aspirados por abelhas,
besouros beliscadores, formigas laboriosas.
Dias encantados pela visão do belo, do inusitado, do inexplorado, do inexplicável até.
Atropelos para retornar logo ao cenário,
que o prazer daquilo era insuperável, companheiro, amigo,
metáforas difíceis de serem sorvidas
por aqueles que, às vezes, ouviam, observavam, compartilhavam … o cenário.

 

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Motivação fértil para lirismo, reflexões, prazeres incontestáveis.                                                   De mexericas a cenas de filmes,                                                                                                                   tudo vinha colorido por aquela florada inesperada.

E montanhas e sons e melodias e alegrias.                                                                                               Sim, alegrias vieram imprimir cores, aromas e sabores                                                                       às manhãs, às tardes, às noites.

Seriam aquelas flores amarelas responsáveis por tão brejeiras sensações?

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Certeza de um prazer insuspeitável agora.
Vontade suprema de tocar, de enovelar-se, de derramar pelos cotovelos versos e versos
em prosa, como num surto de vida.
As flores amarelas inertes, estáticas, apenas inspirando emoções.
Bom gosto e bom senso para quem se deseja cortejado por sensações tão genuínas e,
de certa forma, originais até.
Agora havia um certo frescor em tudo ali.

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Até o de alimentar-se abriu-se mais bonito e mais frondoso
Temperos para corpo e espírito:
o manjericão misturado à alegria, o alecrim à esperança, a hortelã ao sonho;
abóboras floridas, mamões em crescimento…

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Tudo num verdor inusitado, incompreensível, talvez sazonal, entretanto.
Que aproveitasse o momento desses prazeres do quintal.

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Como num passe de mágica, como aquele das badaladas da meia-noite do conto de fadas,
perdeu-se o sapatinho de cristal.
Acabou-se o encantamento.
Sem saber bem como, nem por quem, uma ação esterilizadora ocorreu.
Sem aviso prévio, sem anuência, sem acordo ou negociação anterior.
Ocorreu.

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Como se fosse proibido
religiosamente
socialmente
culturalmente
contemplar-se as flores amarelas do vizinho.
São minhas, corto-as quando desejar,
arranco-as quando quiser,
faço como acho que deve ser feito-
teria dito ele.
Ficou com aquele sentimento nas mãos.
Sem entender por quê e como, o inusitado da contemplação
poderia oferecer tamanhos perigos, tamanhas ameaças, tantos silêncios.
O quadro sintomático era claro:
tristeza resultado de processo de apaixonamento,
que costuma demorar um tempo para ser superado,
demandando repouso e espera,
não em dose única,
posto que é chama e arde.
Mas outras flores amarelas virão ainda para serem contempladas
e espera-se que vizinhos não resolvam podá-las a bel-prazer, como ora aconteceu.
Como tratamento, repouso e espera.

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ROAD MOVIE II

Meu “Paris, Texas”
em verde-amarelo
é “Central do Brasil”;
No meu “Easy Rider”
tem montanhas e pedras
é “Bye, Bye, Brasil”.

Meu momento pérola na concha
é “Cinema, Aspirina e Urubus”.
Minha descoberta eu lírico
é “On the road” com Kerouac
Meu ensaio político com veias abertas de latinidade
é “Diários de Motocicleta”.

Minha libertação feminina
é “Thelma e Louise”
Minha liberação em intensidade
é “E sua mãe também“.
Buscas encontros procuras entregas
Nas estradas…

Minha “Pequena Miss Sunshine”
na pureza, no reconhecimento da particularidade.
No meu amor por vinhos,
Sideway“.
No meu amor por meu amor
Uma estrada.

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MERGULHO

Sentada, a luz de Narciso me suga
Interpreto o mais e o menos
Mergulho no líquido
Mergulho no sólido
E é etéreo e gasoso.
De pé, caminho sobre tábuas
de mandamentos pagãos.
Tudo em frente, tudo ali
E é etéreo e gasoso.
Mergulho entregue
Sem nadadeiras
Sem asas
Nem redes de proteção.
Mergulho no risco de Narciso, então.

 

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BUSCAS

Sigo na direção
é sim é não.
Transformação.
Janelas abertas
vento pelos ouvidos
esperas na pele
torneios entre razão e emoção.
Uma canção
Duelos constantes
é sim e não.
Rotas sinuosas
casas de menina
cores de menina.
Encontro de mulher.

 

AFIRMAÇÕES

Beijo-te a boca porque neste dossel estás
Beijo-te a boca porque numa sóbria embriaguez pousas em mim
Beijo-te a boca porque és onírico, fugaz e tépido.
Abro-te meus cofres para descobrires registros tênues
Abro-te meus cofres para beberes sólidos, líquidos e gasosos
Abro-te meus cofres para não indagares sequer um suspiro meu.
Encontro-te pelas manhãs nas curvas de mim
Encontro-me pelas tardes no lirismo de meus versos
Encontro-te pelas noites apenas para estares.

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Poesias: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal
1º Vídeo: Canal bettyblue
Demais vídeos: Canal Odonir Oliveira

 

Quem gosta de ouvir histórias de amor …

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SOU QUEM GOSTA DE OUVIR HISTÓRIAS DE AMOR

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É preciso dizer “eu te amo”?

Não sei responder à pergunta que eu mesma me faço.  Até que ponto é necessário dizer que se ama alguém.

Muitos acreditam que quem ama não precisa declarar com palavras seu amor. Talvez estejam com a razão. Ouvir uma declaração de amor, de qualquer tonalidade, seja de um amor materno, paterno, fraterno, platônico ou erótico romântico carnal é para fortes. Declarar-se então, necessita de muita coragem do declarante.

Assim, muitos pais e mães jamais declararam seu amor com palavras a seus filhos. Amigos homens que se amam fraternalmente, e  por eles  são capazes de manter segredos eternos, jamais declaram que os amam. Mulheres, mais expressivas, costumam manter relações mais explícitas em relação ao afeto com suas amigas e até com amigos homens também. Mas dizer  ‘eu te amo’ não pode constar desse rol de espontaneidades. Não se ama de maneira fácil, de maneira simples. Talvez o seja até assim para alguns, mas não para todos.

Receber uma declaração de amor desconcerta as pessoas, tira delas a naturalidade da relação, de certa forma as incomoda porque não se sabe o que fazer com o amor dos outros em relação a nós. Teremos que corresponder àquele amor; estaríamos alimentando um amor que pode se virar contra nós em algum momento; tal amor pode ser uma ameaça à situação de conforto em que vivemos no momento; o amor escancarado em palavras poderá provocar em nós  um retorno inesperado também; “não quero saber, ainda que saiba, que alguém me ama”.

E, deveria ser o contrário. Amar e ser amado implica identidades, admiração e até ânsia de viver. Se pais pudessem fazer valer seu amor também por palavras por abraços, beijos e contato físico entre os seus, muitas das neuroses existentes teriam sido evitadas.

Roberto Freire, terapeuta anarquista, acreditava que “sem tesão não há solução”, que só se consegue viver e saudavelmente, quando se está apaixonado, e  Reich citava a  energia  vital que rege o homem e escreveu “Amor, trabalho e saber são as fontes de nossa existência. Deverão regê-la também” .

Estar apaixonado por outro requer dedicação, investimento consciente, e às vezes até certo grau de entrega. Segurar o fluxo das águas ..  dá-se a isso o nome de represa. Deve ser eficiente apenas para produção de energia elétrica, contudo. Acostumamo-nos a viver um amor regimental, legal e socialmente credenciado. Então  o que fazer com algo que não tem nome, que não tem documento oficial, que não comparece diariamente ao local combinado, na mesma hora e com a roupa combinada ? O medo represa ao acolhimento do amor. Muitas vezes rejeita-se o amor sem mesmo ter tido a chance de conhecê-lo melhor – qual uma iguaria de que jamais se ouviu falar ou se saboreou e se rejeita por isso.

Acolher ou não acolher o amor tem grandes implicações sociais também, pois se expande por todo um contexto

Diz  Reich  ao final do Prefácio de seu livro A Revolução Sexual, de 1944:

“[…] O desenvolvimento da nossa época, em toda a parte, é no sentido de uma comunidade planetária dos cidadãos terrestres e de um internacionalismo sem condições e sem restrições. O domínio dos povos pelos políticos deve ser substituído pela orientação científica dos processos sociais. O que importa é a sociedade humana , não o Estado. O que importa é a verdade, não a tática. A Ciência Natural enfrenta seu maior problema; assumir finalmente e definitivamente a responsabilidade pelo destino futuro desta humanidade atormentada. A política desgastou-se definitivamente. Os  naturalistas terão, quer queiram, quer não, que assumir a direção dos processos de vida social , e os políticos aprenderão, por bem ou por mal , a prestar serviço útil. Auxiliar a afirmação da nova ordem  de vida racional e científica, pela qual  em toda  parte se luta encarniçadamente, tornar o seu nascimento e o seu crescimento mais indolores e menos sacrificados é uma tarefa desta obra. Quem, no sentido do ser vivo, for digno e socialmente cônscio de suas responsabilidades, não pode deixar de compreender isso, nem o usará indevidamente,”

Declarar amor por alguém pode ser bom no sentido de aprendizagem. Doar-se, mostrar-se um ser que se expõe, se solidariza com o sentir do outro pode ser um exercício social grandioso, então.

Já houve tempos em que se escondiam sentimentos, não se sabia conviver com eles, mascaravam-se emoções e todas as couraças se interpunham aos sentimentos.

Depois ficou bonito na foto demonstrar-se , expor-se , fosse o que fosse. Depois, depois ..

Sentimentos e suas manifestações também dependem de moda, de última coleção, como as vitrines expostas nos shoppings ?

Vai saber ….

Então, melhor ouvir.

Fontes: Sem tesão não há solução, Roberto Freire, 1987, Editora Guanabara.

A Revolução Sexual, Wilhelm Reich, 1980, Zahar Editores.

HISTÓRIAS DE AMOR – I

REMÉDIO NA ESTAÇÃO

Não me recordo bem se era morena, loira ou ruiva. Sei que tinha um dor de amor nas costas que a fazia se sentar na beiradinha do banquinho e falar meio pra dentro, como se quisesse desistir a qualquer momento.

E o fez por umas três vezes. Vinha, começava, se arrependia e saía rapidamente, descendo as escadas que davam para a rua de baixo. Alguma vez a acompanhei com o olhar, nas outras desisti.

Na quarta vez, iniciou contando que havia amado um único homem em uma cidadezinha. Era forte, jeito de moleque, piadista, que o conhecera no bar em frente à estação. Gostava de ir ali comer qualquer coisa porque sempre apanhava uma história ou outra descida do trem com os passageiros. Assim teria o que contar mais tarde, no pensionato, às colegas de quarto, após o jantar.

Lembrou que vez ou outra faltava energia, e, ficarem ali à luz de velas era excitante … enchiam-lhe de prazer as histórias das colegas, muito mais experientes que ela, nascida e criada na zona rural da cidade mais distante daquele estado. Nem trem parava por lá. Trem para ela… novidade e tanto. Rita era calada, tinha cabelos ondulados qual essas moças de filmes antigos. Não sei por que não consigo lembrar de que cor eram.

Contou que conhecera lá o homem, que para ela dissera ser Júlio, representante comercial de laboratórios farmacêuticos. Vinha com uma bonita pasta marrom de couro que se abria como flor para um lado e para o outro.

Estava por ali a cada quinze dias e foi o bastante para Rita entrar na sua rota de conquista.

Havia um hotelzinho barato em que passaram a se encontrar. Apaixonou-se, ela, num tanto que já nem respirava bem, acometera-lhe uma certa asma brônquica que lhe tirava o ar. Mas quando Júlio chegava, não havia remédio melhor a sair de sua maleta que a camisa de vênus que usava sob os lençóis do hotelzinho barato. Era rápido sempre, beijos no fim, sem muito lirismo, quase sem nenhum lirismo, na verdade. Dava-se a ele e ele a ela assim em doses quinzenais, qual remédio em visita de médico.

E então, sumiu.

Anos e anos Rita comparecera à estação. Até que esta foi desativada. Não receberia mais passageiros, só cargas.

Rita perdeu as esperanças de reencontrar Júlio por um trem de amor daqueles. Só cargas e encargos apareciam por ali. Dor nas costas.

Fechou-se como um vagão em um túnel.

Não mais se entregou a viagens. Nunca mais.

Sofria dessa maneira, até enquanto sentou-se aqui para contar essa sua dor.

OCITOCINA DEMAIS!

Você sabe, existem tantos tipos e espécies de amor, que acredito, muitos destes nem chegaremos a saborear. Não daremos conta em vida, talvez.

A eternidade dos amores, a meu ver, deve ser entendida como as águas dos rios que vão a cada minuto existindo para encherem , de alguma forma, o mar, os mares depois.

Foi quando estava pensando nisso que comecei a ouvir uma história marcante na tarde daquele sábado.

Apaixonou-se por Nuno Leal Maia nos anos 70. O ator fazia a novela Estúpido Cupido, de Mário Prata, na Globo.

Foi paixão  que se cozinhou em banho-maria, noite a noite, durante meses.

Até que de férias no Rio de Janeiro, resolveu conhecer Nuno pessoalmente. Foi ao teatro, na Praia do Flamengo. Parou seu fusca na calçada e comprou ingresso para a peça que o ator protagonizava com Tonia Carrero.

Deslumbrada, repetiu isso duas , três, várias vezes em quinze dias. Até que encheu-se de coragem e foi falar com Nuno, após o espetáculo.

Conversaram. Ele pegou o carro, um fusca branco, que estava, inclusive, estacionado na rua, ao lado do dela. Dali foram à cantina famosa, frequentada por atores em fim de noite, no Largo do Machado. Papo bom, apresentou-a a outros atores, cantores…

Combinaram: iria levá-la às gravações no Jardim Botânico e em Itaboraí, interior do Rio, para ver externas etc. etc. Contava isso e parecia que estava de novo lá com ele, só vendo.

Itaboraí era longe ! Sem saber o caminho, em tempos quando não se tinha a ajuda do GPS, guiou léguas até lá. Recompensa: conversou com ele por horas, enquanto aguardavam as infinitíssimas outras tantas até a gravação das cenas dele. Ela adorando, contudo.

Levou-a a assistir a filmagem de A Dama do Lotação, aos pés do Cristo Redentor, e ali conheceu Sonia Braga, Neville de Almeida e muita gente mais.

Ao fim de um período de deslumbramento total, foi com o Nuno e todo o elenco da peça à quadra da Mangueira, estação primeira daquele roteiro amoroso, digamos assim.

Dia seguinte, parou o carro na frente do teatro para assistir mais uma vez ao espetáculo qual gregos o faziam nas tragédias, sabendo-o já quase de cor. Tratava-se de O Pássaro da Juventude, de Tennessee Williams.

Na saída, onde estaria o seu fusca, ali estacionado horas antes?

Desaparecera. Roubado, nunca mais o encontrou.

“Mas um mês de Nuno tinha valido a pena”- contava isso e deixava escorrer prazer pelos cantos da boca.

A carta, de Almeida Júnior

SINA DE HEROÍNA ROMÂNTICA

No domingo, sentou-se no banquinho Sofia e preferiu ler o que escreveu. Fez isso com timbre dramático que, sinceramente, acostumado que estou a ouvir histórias de amor, cheguei às lágrimas. Tinha pele branca de dama das camélias pós-moderna.

Gostava de uma narrativa impossível com heroína morrendo no final .

Conhecia todos os versos brancos e as noites negras de desilusões ancestrais.

Nascera da coxa de um semideus e do braço de uma caçadora imortal.

Antevia seu destino traçado no ar e na água.

Viera para sofrer, paskw  era assim também  apaixonar-se, sofrer por ação do amor

E sabia  que deveria dividir sempre, qual Afrodite, Adônis com Perséfone , sob as ordens de um zeus  qualquer que lhe outorgara tal missão na Terra.

Aceitava, então, com desprendimento a sina imposta pelos oráculos anunciadores das eternas dores.

Percorria, por isso, montanhas, vales e serras à procura de quem a livraria dessa maldição.

Inda que tropeçasse, e de joelhos se atirasse às pedras, à compaixão de zeus, este não a libertava de tão dolorida caminhada

Havia de ser por trôpegos penhascos, à dor sofrida, que um dia, não se sabia quando nem onde, ver-se-ia livre daquela condição.

Eras e eras se passaram sem que pudesse a heroína romântica vencer seu destino, pois sempre incompleto.

Todas as vezes em que se dispunha a enfrentar zeus e concluir sua jornada involuntária, ali vinha ele a lembrar-lhe que, qual Afrodite, seu fado ainda estava por se cumprir.

De tal sorte, acostumou-se ao desprendimento de laços, a não fazê-los nós, posto que reconhecia nunca os teria em si, por herança do céu na terra.

Errante por mares, rios e fontes, continua ainda sua busca incessante pelo grão-senhor que conseguirá, por si só, enfrentando todos os obstáculos e as ações interpostas por aquele zeus, formar com ela laços hedonicamente carnavalizados, os quais nem mesmo o próprio Zeus poderá desenlaçar.

PRIMOS

“Quero contar sobre meu amor por um primo. Nunca consegui esquecer aquilo, sabe.”

Viveram sempre em cidades diferentes, desde crianças. Passavam férias de verão no mesmo lugar.

Ali, sempre amiguinhos, descobriram-se adolescentes e apaixonados.

Armando – dizia ela –  lindos olhos verdes, tímido, um poço dos afetos todos com a prima. Tanto afeto que, uma vez quando ela quebrara a perna, tinham os dois doze anos, cuidara as férias inteirinhas dela, dando-lhe preparação de água, esquentando-a, colocando em outro recipiente água gelada para que ela banhasse várias vezes ao dia a perna e o calcanhar ainda inchados – depois do gesso retirado. Era de uma gentileza que beirava à submissão. Contava isso quase sem fôlego.

Ah, mas quem nunca brincou de médico com primas! Eles não. Cuidava dela como de uma flor do campo, frágil, mimosa. Para ela buscava o que fosse necessário, mesmo sem que pedisse. Lembrava Peri e Ceci em O Guarani, tamanha adoração.

Mesmo sozinhos, com todos os hormônios em ebulição, jamais efervesceram paixões neles mesmos. Nem um beijo roubado sequer. Eram primos. Filho de pai, irmão da mãe dela. Jamais poderiam ficar juntos e se casassem e tivessem filhos, como seria?

Que casar nada. Doze anos. Ouvindo o Lobo bobo de João Gilberto, disco do primo mais velho, jogando pedrinhas e batalha naval. Férias.

Tempos e tempos se passaram

Ela se casara com seu engenheiro. Ele, com sua vizinha, tendo com esta uma filha. Separara-se, casara-se de novo tenho aí mais dois meninos.

Ela soubera pouco de Armando por mais de duas décadas. Até que voltaram a frequentar os mesmos lugares. O olhar dele sempre o mesmo por ela. Divorciada, livre, sequer demonstrava qualquer intenção para com ele, homem casado, pai de dois filhos então.

Os olhares dele, no entanto, encandearam-se em palavras mais adocicadas, mais atenciosas. Uma balançada geral nela.

Tempos e meses depois, tudo é Carnaval na praça principal, onde sempre passavam as férias. Praça da Matriz.

Na barraquinha em que se vendiam bebidas, os dois se esbarraram. Ela já estava ali, bebendo cerveja com parentes e amigos há horas. Ele, pescando. Chegou depois, bem depois de as escolas de samba e blocos terem desfilado.

Sozinho, olhou para ela, que meio ali meio lá na casa dele, recuou.

Anos e anos de tesão reprimido, agora o sabiam mesmo- explicava a mim.

Por que não beijar na boca, rir muito e relembrar o quão tontos sempre haviam sido. Lembrou-se de Mário de Andrade apaixonado por sua impossível prima Luísa e resolveu aceitar aquele desafio por décadas adiado.

Lendo seus pensamentos, Armando puxou-a pelo braço, naquela música “me dá um dinheiro aí”, levou-a para uma calçadinha com jardim e, na frente de quem quisesse ver, beijou-a com três décadas de atraso.

Dali foram se amar como se jamais tivessem se conhecido, mas com uma intimidade tal, que pareciam ter estado juntos por todos aqueles trinta anos  também.

“Depois só rezando na Igreja da Matriz uns três padres-nossos e umas três ave-marias, a pedir perdão a Deus pelo sacrilégio cometido. Mas teria sido sacrilégio, o senhor acha?”

FUTEBOL DEMAIS!

“Na versão da minha amiga, futebol é paixão mesmo”- começou contando.

Flávia detestara futebol sempre.

Até que começou a namorar um torcedor roxo daquele time- não vou dizer qual, por motivos óbvios – e, na ansiedade da paixão já em andamento, resolveu esquecer aquela sua falta de fé no futebol e entrar com bola e tudo em campo, com o ruivo em questão.

O cara parecia gostar mais dos 11, ou seriam 22, jogadores do seu time do que dela. Todo fim de semana era campo, torcida, churrasco depois do jogo com os amigos, as namoradas dos amigos, os colegas dos amigos. Um campeonato inteiro assim.

Foi aí que ele propôs irem às quartas-feiras também. Mas seria diferente agora, com um apelo mais romântico ao fim da noite etc. Ela topando qualquer jogada , fugindo de divididas, que de boba não tinha nada – me contou aqui. Queria continuar marcando seu gol, batendo um bolão. Aquele campeonato estava no papo, acreditava.

Foi aí que numa entrada mais dura, apelativa mesmo, o torcedor deu bandeira demais. Nem pensou em adverti-lo, dizer que aquela jogada era sem nenhum fair play etc. O parceiro no passe era tão gente boa, que Flávia jamais poderia ter imaginado tamanha finta e tamanha jogada fominha.

Expulso de campo, sem nem ter tomado amarelo antes, hem !- conclui.

“Ah, é, futebol assim já era paixão demais ! Nesse tipo de jogada eu não entro não, esclareceu ela.”

Textos: Odonir Oliveira

Mulheres tão iguais, mas tão diferentes!

MULHER FÁCIL

Não sou fácil,
saiba disso.
 
Não sou fácil de saboreio nas coxas
não sou fácil de conversas paralelas
não sou fácil de verbos banais
não sou fácil de meios termos meias entradas,
rápidas saídas
não sou fácil de sair da dança do samba do tango.
 
Não sou fácil de entregar pacotes prontos
embalados em papel de seda de maçãs.
Não sou fácil de ler de ver de ter de me ter
assim separado, ou junto.
 
Não sou fácil sem hora senhora,
sou sem ouros e pedras falsas
sou de moles e duros de meios e fins.
 
Não sou fácil em ventre e membros
Não sou fácil de peles e gostos
Não sou fácil de descascar cortar chupar e engolir.
Sou de digestão difícil
Sou ácida nas bases
Sou base nos doces.
Sou sal nas unhas.
 
Não sou fácil
Saiba disso.
 
Rejeito fáceis, fósseis e fôssemos.

SELEÇÃO NATURAL

escolher selecionar optar
melhorar espécies
lapidar espécimes.
 
critérios duvidosos
critérios viciosos
critérios maldosos.
 
loiros magros fortes altos
boa aparência
saudáveis
cordatos bonachões polidos loquazes.
 
requisitos datados
acepipes requentados
sabores azedados.
 
Seleção não natural.
Espectro.
Seleção incomum.
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ANORMAIS

Norma
Para acordar
Norma para dormir
Norma para falar
Norma para lembrar
Norma para esquecer
 
Norma
Régua compasso transferidor
De cima pra baixo
De baixo pra cima
Da esquerda pra direita
Da direta pra esquerda
 
Norma para chegar
Norma para conhecer
Norma para falar
Norma para tocar
Norma para beijar
Norma para estar em
Norma para sair de
 
Norma para busca
Norma para entrega
 
Norma para ler
Norma para ouvir
Norma para comer
Norma para degustar
 
Norma para olhar a estrada
O  lago
A  mata
A  lua
 
A vida anormal.
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FESTA DE CASAMENTO

O casal
Os padrinhos
Os convidados
Os vizinhos.
 
Gente boa
gente bonita
gente alegre
gente colorida.
 
Risos às fartas
Comida às fartas
Música às fartas
Nas bodas na serra
Nas bodas na nuvem.
 
Bodas no salão
A dança
das pernas
dos braços.
Os abraços
no ritmo
no prato
no copo.
 
No vestido branco
que símbolo!
Na madureza
que ensino!
 
Rico casamento encantador
Uma celebração de amor.
 
 

O ASTRAL DO TEMPO

Fiquei aguardando o mapa do céu para, na 3ª semana do tempo, chegar às nuvens.

Que vou ver Dom Sebastião, com Camões, Eça e outras personas.

Meu mapa astral é confuso ora diz que viverei 200 anos, ora diz que chegarei ao Paraíso. Não sei entender mapas astrais. Talvez tivesse ‘achado’ melhor – pensado melhor –  desacreditar dos astros. Ainda lhes darei uma chance de traçar minhas rotas.

‘Sou de virgem e só de imaginar me dá vertigem”, canta João Bosco.

“Mas se Deus me ajudar..”. o resto é com o letrista da canção.

De volta da casa dos primos, com os quais irei ao encontro de Zé Ramalho, o sol bronzeia meus ombros e só penso numa boa original gelada e num samba até mais tarde. Que monstros todos largos inundem meus lagos como previram os astros, os búzios, as cartas, as adivinhações.

Ôrra, meu.

ELIS, ESTRELA ETERNAMENTE BRILHANTE

Visionária,
libertária
solidária,
quase pária.
 
Elis fonte
Elis nascente e foz
Elis pimenta boa
a temperar amigos amores
músicas apresentações alegrias e lágrimas.
 
Agora que os anos me chegam,
posso dizer que tento ser-te
sendo-me também,
 
Elis, essa mulher !
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NA PELE DAS ÁGUAS


Uivo para a rua
Uivo para  montanhas lagos lagoas.
Na percussão do meu pensamento
A batera do meu sentimento.
Namoro a ponte
Namoro na ponte.

Empino o sax
Desejo a tarde
Cobiço a noite
Cobiço-a à noite

O cheiro é um
O gosto é outro
Na pele das águas.

No  nervo da luz
No  músculo retesado do braço
Da perna firme em marcha
Marcha  calma,  trôpega, insinuante, feroz,
que enlevada pela luz bruxuleante do dia
logo  vai se  encontrar com a noite
A um idílio completo.

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POENTE

Todos correm
Apressados
A dança se inicia
 
Onde estaria meu par?
Passos apressados
Ritmo acelerado
Que desse lado já dançam !
São muitos os pares.
 
Ajeito a boca
Com batom vermelho da cor do poente
Arrumo os cabelos curtos
Mas embaralhados
Por aquelas emoções.
 
Procuro
Procuro
Onde estaria meu par?
 
Apresso a coreografia
Antes que ele se perca de mim.
Apresso
Apresso
 
Vislumbro-o ao longe, que longe!
Do outro lado do lago.
De lá, comigo não poderá dançar.
 
Aceno
Aceno
Ele me entende e atravessa,
também ele,
coreografando passos,
o lago.
 
Agora sim ,
aqui perto,
corpo a corpo,
pele a pele,
nos engatamos no ritmo
também.
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 SEXY

Dinorah era sexy.

Não havia como definir, era sexy.

Tinha um jeito displicente de olhar, um andar rebolado tão natural, mas tão natural… que sexy.

Por ser assim talvez, despertava nos homens um desejo quase que incontrolável de tocar nela, beijar ela, comer ela.

Tudo isso lhe passava meio despercebido, porque Dinorah não tinha atração física por homens, em geral. Nem por mulheres. Gostava da sensualidade insinuada, da sedução persistente, do banho-maria em degraus. Gostava mesmo era de preparar a festa.

Dinorah era doceira, confeiteira. Começara adocicando em casa, depois da falência de uma vida a dois, com um companheiro banana que a única coisa que fazia bem era sexo. E isso não sustentava o teto. Pelo menos para ela não. Adoçando uma festa lá outra cá, montou seu próprio negócio. Com ele ganhava a vida. E bem. Não dava para as encomendas.

Não dava para tanta encomenda de olhares, de piscadelas insinuantes. Parecia uma Gabriela de Jorge, sem o mar de Ilhéus, contudo. E, assim, na entrega dos doces, bolos e trejeitos, vez por outra quase sucumbia a olhares mais cobiçadores dos donos da festa, ao assinarem os cheques, ao passarem o cartão. Sabe como é, adocicou tem que rezar, pensavam. E eram sempre os maridos que tinham que pagar a conta. Eita mulherada dependente, concluía Dinorah.

Certa vez apaixonou-se não por um corpo, mas por uma voz. Enquanto cozinhava, quase sempre em carreira solo, ouvia na rádio FM de sua cidade um locutor. O tal tinha três horários na rádio. De manhã ocupava seu espaço com música sertaneja de raiz e declamava versos. Ao meio-dia, um programa de nostalgia, a saudade não tinha idade e lia crônicas, poemas, versos esparsos, pequenos comentários, nunca de sua lavra, mas a encantavam. Bem de noitinha, depois das sete, programava músicas americanas, sempre contextualizadas a poemas e intenções; Dinorah captava as mensagens e entendia que o locutor dedicava a ela aquelas melodiosas seduções. Enganando-se porque cada um empresta a sua própria vida os olhares que deseja ou precisa emprestar.

Apaixonou-se num tanto, que acreditou ser amada por ele. Assim, não mais olhou ao redor, aos homens interessantes, que sempre há pela cidade.

Certa noite, lambendo a colher de pau que acabara de mexer brigadeiros, ouviu no rádio uma música de mensagem claramente erótica; excitada desejou ligar para o programa- coisa que nunca fizera antes- e falar com ele. Era como se isso concretizasse o ato sexual que imaginava partilhar todas as noites. Estava perdidamente apaixonada. Apaixonada pela voz, pelas palavras lidas, pelas melodias que a tocavam. Não conseguiu falar com ele. O telefone só dava ocupado na rádio. Tinha ensaiado um discurso para quando ele chegasse ao telefone. Tinha até rascunhado umas frases para dizer a ele e, principalmente, lhe entregaria doces mãos, braços polvilhados de açúcares, seios em ponto de suspiro, ventre em ponto de bala.

Não conseguiu. Pensou que não era para ser. Tinha em si esse fatalismo feminino, quase cabalístico da negação amorosa.

Nos dias que se seguiram, entregas de doces. Andares, assinaturas de cheques, quereres.

Doces delírios repetidos, repetidos, repetidos …

BBB 160

 Essa história é a de um reality show.

Quase todas as histórias são reais. O ficcionista as colore um pouco, as enfeita aqui acolá por motivos linguísticos, por motivações de enredo, mas são sempre mais ou menos reais.

Não podia Marcela mais conviver com aquela situação. Recebia mensagens diárias por computador, na verdade sem saber se a ela eram dirigidas.

Como confiar em alguém que nunca se viu, que nunca quis um telefone de Marcela, que jamais com ela conversou por whatsapp, por e-mail ou por  sinal de fumaça?

Como confiar em alguém assim?

Pouco se manifestava por palavras suas, sempre tutelado por palavras alheias, versos alheios, músicas alheias. Um discurso camuflado em verdades que poderiam não ser as suas, contudo.

Além disso, como as gritava em praça pública, qualquer um se arvorava a ser o receptor daquelas palavras, como se a todas essas pessoas tais palavras fossem dirigidas. E era assim mesmo que Marcela acreditava que o emissor secreto quisesse ser considerado. Era um beija-flor sem escolher cor, forma, perfume, apenas beijava a cada canteiro e da mesma forma.

Conduta esquizofrenizante para Marcela que estava habituada a dizer o que pensava a quem desejasse, e, em questões de subjetividades não engolia desaforos, emoções, desejos e, muito menos, tesão. Batia na porta e “Olha aqui, vim dormir com você. Está a fim?”

Lógico que a resposta poderia ser não. Mas ela saberia, estaria claro. No caso do missivista, além da penca de destinatárias e, até de destinatários, em cena, havia um duplo vínculo ensandecido e cada vez ampliado em grupos e grupos.

A olhar de fora, parecia que o missivista não queria mesmo era deitar com ninguém, receber resposta de ninguém. Só queria ele próprio mostrar-se, mostrar o que queria mostrar. Injustiça, pois quem semeia colhe e, com responsabilidade, acolhe o que semeou. Ou então, não semeia. Como muitos missivistas de maior responsabilidade não o fazem.

Na verdade, Marcela vinha se arriscando demais ao se envolver pelo facebook com aquele missivista. Por que nunca demonstrara nenhum interesse em com ela conversar em particular ou em com ela estar em particular?

Marcela, agora, bastante envolvida com a situação, analisava que talvez ele desejasse que todos ali daquele Face o vissem como o disputado, o cortejado, o enfeitiçador número um… talvez fosse isso.

Encantador com flauta murcha? É, porque nunca comera ninguém ali, pelo que constava, só masturbação intelectual. Parece. Houve uma no passado que tivera uma relação mais próxima, acho que de paixão inesquecível por ele. Mas e Marcela com isso? Isso era um pendência entre eles. Não deveria interferir, portanto, em outros vínculos.

Marcela refletia sobre as inverdades ditas pelo missivista, ainda que tivessem parecido tão verdadeiras.

Nada como pegar alguém pelo braço, apertar junto a seu corpo, sentir a rigidez de seus sentimentos em si mesma. Mas nada mesmo.

E depois o beijo de lábios, de língua, de suspiros e respiros intermináveis e sem interrupções.

Pensava muitas vezes, quando sozinha, que daquela forma estava em um BBB desses de quinta, com elenco de décima, sem nunca poder dizer aquilo que desejaria a ele porque eram milhões os que assistiam ao programa.

Seu repertório de metáforas se esgotara, que era da área de exatas, pouco afeita a tantas considerações interpretativas.

Decidira-se então. Daquela noite, tão importante para ela, em diante, não se comunicaria mais em rede nacional com o missivista. Fim do BBB.

Tivesse ele algum sabor a descobrir em sua boca, em seu de dentro que a procurasse para sabê-lo. Até certo tempo, é claro.

Fez bem ela.

Ou não.

Poesias e textos: Odonir Oliveira

Ilustrações de Pino Daeni- http://www.pinoart.com/

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Vanessa Bumagny

2- Canal Lenine Oficial

3- Canal TramaTV

4- Canal Odonir Oliveira

Laudate Dominum

 
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PEDRO
 
Da vez primeira, a alegria
Do choro vivo, a força da existência
Dos belos lábios, a contemplação
Do choro grave, a música ansiada
 
Dos primeiros passos,o deslumbramento
Das primeiras palavras às frases especiais,
a perplexidade,
o encantamento,
o orgulho.
 
De bebê a menino, a sensibilidade
à flor da pele, do nariz,da boca.
A escrita da letra, da palavra, da voz.
O gosto da Ciência, a cor da Música,
tudo junto, tudo forte, tudo assim.
 
Vendo e sentindo
Vendo e pensando
Vendo e sofrendo
Vendo e sorrindo.
A dor nas mudanças,
a dor nos riscos.
 
Você, especialmente,
Você …

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A MENINA DOS CABELOS DE MILHO

Diz que era uma menina de cabelos de milho
diz que era uma menina de olhos verdes da cor de marcianos
diz que era uma menina que chupava dedo desde os primeiros minutos de vida
diz que era uma menina que gostava de desenhar fábricas de antenas em vez de casinhas com chaminés
diz que era uma menina de pele clarinha que não gostava de sol de praia
diz que era uma menina que tinha grandes resfriados e febres altas que a homeopatia tinha que cuidar
diz que era uma menina enjoadinha de se alimentar
diz que era uma menina que corria tanto, mas tanto, mas tanto, que na escolinha, ninguém a  alcançava
diz que era uma menina que desenhava cachorros em todos os lugares
diz que era uma menina que pedia para ter cachorros em todos os dias, meses e anos
diz que era uma menina que vivia passando a mão em qualquer cachorro que via
diz que era uma menina que um dia foi mordida por uma cachorrona brava e teve que fazer cirurgia na perna e tem uma marca até hoje
diz que era uma menina manhosa que se atirava ao chão quando não conseguia alguma coisa que queria
diz que era uma menina que de tanto se atirar ao chão um dia quebrou a testa, outro dia o queixo e levou pontos falsos e verdadeiros
diz que era uma menina que dormia atrás da porta, no carpete do seu quarto e todos que vinham visitar ficavam com pena da crueldade que seus pais faziam com ela !
diz que era uma menina que gostava de fazer trabalhinhos de madeira nas aulas de marcenaria e bolos e docinhos nas de culinária
diz que era uma menina que detestava roupas com barriga de fora e coisas espalhafatosas
diz que era uma menina que queria morrer … quando alguém fazia uma faixa em sua homenagem e mandava pendurar na rua
diz que era uma menina que se mostrava contida, tímida não, contida em muitas situações para ela estranhas ou ameaçadoras
diz que era uma menina que não gostava de crianças pequenas e de ser professora nem pensar
diz que era uma menina que gostava de derreter chocolate e de fazer ovos de páscoa e bombons
diz que era uma menina que detestava matemática, física, química, história e inglês
diz que era uma menina que não gostava de beijos corriqueiros, cotidianos, obrigatórios
diz que era uma menina que queria ser veterinária, mas que as matérias de exatas e biológicas a faziam desistir
diz que era uma menina que queria ser independente em todos os sentidos
diz que era uma menina consciente, solidária e preocupada com a desigualdade social e a justiça
diz que era uma menina que principiou, continuou e acabou uma grande leitora de livros, desde que estes não sejam romances água com açúcar
diz que era uma menina que amava cinema e que continua amando, desde que os filmes não sejam água com açúcar, nem tenham animais, principalmente cães, que morrem no final
diz que era uma menina ciumenta de todos os mais próximos
diz que era uma menina que um dia seria mãe, irmã, namorada, esposa, cuidadora e eterna guardiã de um serzinho chamado Boli.
 
Diz que era uma menina assim
Mas olhando bem … bem de pertinho
Todo mundo diz que ela ainda é.

IRMÃO MAIS VELHO

As imagens mais remotas  de minha infância me levam a um bolo de roda gigante em meu aniversário de cinco anos. Minha mãe havia feito roupinhas para os bonequinhos de plástico que ficavam na roda, docinhos de vários tipos, não me recordo de brigadeiro, se tinha não lembro, agora, as maçãzinhas … com cabinho e folhinha de laranjeira natural, “da nossa horta” – como dizia meu pai – dessas eu me lembro bem.

Minha mãe não era muito de doces, além do bolo republicano, do manjar branco e dos doces de goiaba – da nossa horta – o que ela fazia bem mesmo eram os salgados: empadinhas, pasteis recheados de carne moída, com batata e salsinha, além dos bifes de tempero inesquecível, alho amassado no pilãozinho, sal , às vezes vinagre.

Não me recordo dos participantes da festa, creio que nem houve. As comemorações em casa eram apenas para nós mesmos, posto que com familiares mineiros distantes, sempre fomos pai, mãe e cinco irmãos o bastante. E o espírito Santo também.

O irmão mais velho não está presente na minha memória. Estudava o científico em Barbacena, vinha apenas nas férias, trazendo lembranças dos avós maternos e da tia querida com quem vivia lá. Creio que nessa época eu já tinha seis, sete anos. Ele era calado, fechado mesmo, mas tinha muita ligação comigo. Gostava muito de futebol, tinha sido um ótimo jogador, todos contavam. Lembro-me de seus cadernos da letra bonita, meio deitada, escrita com caneta tinteiro Parker azul. Tinha um caderno de brochura com letras de músicas,  rock,  que copiava de revistas e ouvia no rádio no programa “Hoje é dia de rock” com Jair de Taumaturgo. Ótimo em Matemática, primeiro aluno em muitas oportunidades, orgulho de meus pais. Primeiro com curso superior em toda a nossa região, primeiro engenheiro… Aluno bolsista em faculdade particular, graças ao empenho de meu pai e a seu esforço pessoal em tirar boas notas, em não repetir nenhum ano. Filho de pai operário, metalúrgico, era a consagração de toda a família. Trabalhou como professor de matemática, enquanto terminava a engenharia. Gostou desde sempre do Botafogo carioca, paixão herdada do pai, dos tios,  do espírito Santo, sei lá.

Lembro-me de me ensinar a tal matemática, problemas de matemática, para o exame de admissão ao ginásio, um vestibular obrigatório que havia nos anos sessenta, “se de uma torneira saem tantos litros…” guardo o livro até hoje, passados quarenta anos, guardo seu empenho em estudar, sua dedicação, achava aquilo um exemplo. Um exemplo na ação, não apenas no discurso educativo que ouvia em muitos.

Lembro-me de uma viagem a Minas com ele e de sua primeira namorada lá. Lembro-me sempre de um de seus aniversários, o treze de outubro de sessenta e cinco, quando arteira que era, menina de doze anos, fraturei calcanhar, tíbia e perônio e dele na ambulância que, me levando ao pronto-socorro, segurava meus ossinhos, dizendo “ prenda a respiração que não dói”, a cada buraco da rua, a cada trepidação. Quando fui tirar o gesso, em definitivo,  quem estava comigo era ele, e calçou minha sandalinha e me disse para pisar devagar e isso e aquilo …

Tímido namorou pouco. Bem pouco.  Sempre fechado, demonstrando pouco com palavras, “ele é como eu” – dizia minha mãe – contava também que quando era bem pequenininho, lá pelos anos de quarenta e cinco, quarenta e seis, deitava aos pés dela, enquanto costurava na máquina, e sempre quieto chegava a dormir a seus pés. Sem almejar brinquedos, sem pedir o que não podia ter. Senso moral já formado, um dia trancou dentro do guarda-roupas a irmã, com peniquinho e tudo, ao ver chegar um homem estranho em casa, o mata-mosquito, visita comum dos anos quarenta no Rio. Explicação: “ela tava sem caça, mãe”.  Assim, também, lá pelos cinco, seis anos, ao ver em uma casa da vila onde morava um velório de criança, quis entrar; o irmão da morta, garoto mais velho que ele o deteve à porta – criança não podia entrar ali –  depois de insistir, sentenciou “Também quando minha irmã morrer não vou deixar você entrar”- contava minha mãe a todos nós, que viemos depois dos dois mais velhos. E ainda ouvíamos a experiência das azeitonas produzidas pelos cabritinhos e degustadas, em primeiras mãos, por ele e por minha irmã . Era  década de cinquenta. Era Tijuca. Era Rio.

Estudou o secundário em colégio de padres, Petrópolis. Fez o científico em colégio público, Barbacena. Quando terminou o ginásio em Petrópolis, no Colégio São Vicente, meu irmão Odecio ( que minha mãe encomendou a meu pai registrá-lo Decio, mas teimoso, queria uma família com as sílabas ODA, ODE, ODI, ODO, ODU- coisa de mineiro que gosta que fllhos tenham todos os pré-nomes com as mesmas iniciais etc.) arrostado por meu pai a fazer a EPCAR, onde? Em Barbacena.

Não passou nos exames psicotécnicos (sei lá o que era isso no final dos anos 50), assim cursou o científico em Barbacena, no “Estadual”, morando em casa de meus avós maternos.

Estudou engenharia em faculdade católica no Rio. Sempre com bolsa de estudos, sempre de graça, sempre com dedicação, sempre orgulho de pais e  irmãos e tios e avós. Primeiro neto, com recomendação até de herdar o cobiçado relógio medalhão de mil e novecentos do avô materno… ganhou a bolsa de estudos para a PUC Rio, batalhada por meu pai, em vista de sua excelente classificação no vestibular. Estudou com bolsa o curso de engenharia inteiro, portanto, que meus pais não teriam como pagá-lo. Depois casou-se também lá na capela da PUC.

Continuou brilhante em sua carreira profissional: orgulho de meu velho sempre.

Ainda que de palavras e afetos guardados, não pode ver cão de rua com fome, doente, filhotes… E gatos também. E pega todos e trata deles e compra-lhes ração e lhes aplica vacinas e os leva junto nas mudanças pelos lugares onde vive e viveu. Parece nosso pai que não podia ver árvore sofrendo que não lhe fizesse uma cerquinha e  a regasse,  escrevendo até placa – que não a destruíssem, por tratar-se de ser vivo e com outras tantas recomendações.

Apolítico, político ficou, tempos atrás. Enxergou umas tantas coisas sozinho. Quase nada escreve e continua usando as palavras de outros, em vez das suas, para mandar mensagens, que leio e agradeço.

Parabéns, meu irmão, por seu aniversário, que sua saúde seja boa e que o tempo nos permita ir mudando para melhor até o último dia de nossas vidas.

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ELE SE CHAMAVA PLÁCIDO

Sô Plácido nasceu no Alto Rio Doce, veio menino para Barbacena, filho mais velho de uma tropa de 7. Veio a pé, e por ser o maior, carregava o menor no colo e uma gaiola com um passarinho que vira nascer. Horas depois, obrigado pelo vô Juquinha teve que soltá-lo pelas Gerais. O caminho a pé ainda era longo. Nunca mais, em lugar algum, admitiu pássaros presos. “Os bichos e os homens nasceram livres.”

Eta pai adorado !

Nunca conheci quem amasse Minas mais do que ele.

Estudou por mais de 10 anos na Escola Agrícola de Barbacena. Interno, pouco via a família. Nem mulheres. Cresceu um bobão mineiro. Não sabia como conversar direito com mulheres. Já velho, no Rio, para ter papo com elas, tímido, comprava umas balinhas a quilo nas Lojas Americanas, e nos ônibus, oferecia a uma ou outra, como passaporte pra uma conversinha ou outra. Contava, ingenuamente, à minha mãe, que morria de ciúme. Ao que contrapunha “Essa véia é braba feito onça, mas nunca me deu um beijo”, partindo pra segurar sua cabeça e, quase à força arrancar-lhe um beijo. Autoritária, minha velha, se esgueirava e diziaEu não, tô vendo as que beijam muito por aí, todas passadas pra trás. Comigo, se quiser, vai, mas beijo meu não terá”.

“Minha véia, vamu morrer na nossa terra?”

Quando voltaram em 1987 para Barbacena, comprou um apartamento sobrado que se abria para a SUA ESCOLA AGRÍCOLA todas as manhãs. Reviveu assim sua infância até o fim de seus dias.

Meus velhos.

Que saudade!

Cenas que vêm e vão, em momentos em que se pensa em fazer travessias.

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DONA ITÁLIA, DE BARBACENA

Dona Itália era dura. Chorava pra dentro. Nas despedidas de parentes, nas emoções dos filhos machucados ou humilhados na rua. Leoa ao defender suas crias. Lavava, passava, costurava e queria ter estudado mais que o primário “que mulher independente é outra coisa; não precisa ficar controlando dinheiro do marido pra ele não gastar com bobagem”.

Minha mãe sempre foi o feijão; meu pai, o sonho.

Trabalhava com meu avô, na entrega dos pães de sua padaria, pelas casas das famílias ricas, das quais as filhas poderiam estudar mais, continuar seus estudos no Colégio Imaculada. Ela fez só o Grupo, gratuito, e até hoje em 2016, no mesmo lugar.

Minha mãe tinha medo. Certa vez quase fora perseguida, de madrugada, às quatro da manhã ” por um velho tarado que queria me pegar na charrete, quando entregava os pães na Oeste”- lembrava sempre.

Certa vez, quando me viu amamentando  me disse que eu estudara, estudara tanto e no fim era uma mãezona como ela, agarrando minhas crias de madrugada e da mesma maneira.

Ditados de mamãe. pois que era proverbial sempre: “Quem sai aos seus não degenera”

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R.I.P, DON’ANA

Gosto de lembrar da Dona Ana que conheci nos anos sessenta:
o rosto redondo, a pele morena, índia do sorriso doce, uma xamã,
sempre de fala calma, como se dissesse que tudo um dia iria se resolver …
doce, que criou filhos a leite condensado,
doce porque ajudou a todos os seus, os dos outros, os dos outros …
doce, que gostava de novelas, dos personagens todos e
que quando teve que voltar a Macapá reclamou de não poder mais de lá acompanhar seu  Sheik de Agadir
doce, que cozinhava delícias e comia com netos no colo,
enfeitando a paisagem com cena de filme italiano
doce, de costurar muitas coisas e ter zelo e capricho
de fazer ficar bonito
doce, de gostar de ouvir as coisas que a gente ia lá contar a ela
 
“Minha filha, mas não ligue pra isso, não”- com um acento no falar perfumado à tacacá, tucupi e doce, como leite condensado.
 
Sempre rezando.
Em nossa convivência, Dona Ana, sempre recomendava que se alguém nos atormentasse, que se rezasse uma oração para ele.
 Nos últimos tempos, ao visitá-la, foi a sua vez de me ouvir e querer adivinhar, apenas pelo ouvido, como estávamos eu e meu filho
 Rezava ainda e com bravura tentava sobreviver.
Guardo comigo doces e sábias palavras de Dona Ana, das quais jamais vou me esquecer.
 
 Com carinho e eterna gratidão.
 

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QUANDO EU ERA CRIANÇA …

Quando eu era criança, chegava correndo da escola e ia fazer os deveres de casa. Depois já começava minha lida diária: brincar de escola. E pegava os cadernos de meus irmãos mais velhos, repletos de linhas escritas com caneta tinteiro Parker azul . Corrigia, dava nota, imitava minhas idolatradas professoras em 63, 64 , 65. Anos sessenta, muito idealismo na cabeça e no quadro-negro. Este, grandão, feito por meu pai, com apagador e tudo, para eu poder brincar de PROFESSORA. E as aulas eram longas, quase 3, 4 horas. Falava alto, explicava, fazia perguntas, repreendia  os mal comportados… escrevia, apagava o quadro, passava exercícios e, sozinha. Era a realização. Nunca foi tão prazeroso brincar. Nem de casinha, de boneca, de pique- bandeira, nem na praia. Brincar de escola era o máximo.

Apaixonada por minhas professoras na infância, apaixonada por meus professores na adolescência. Um misto de poder e inveja me conduziam a experimentar ser PROFESSORA também.

Anos se passaram. Mais de trinta. Tantas experiências inesquecíveis, tantas idas e vindas na carreira, na valorização profissional, do endeusamento ao esquecimento.

Reencontrar ex-alunos. Ex não. Alunos são para sempre. Reencontrar alunos em cenários diferentes, em épocas diferentes, em décadas diferentes. A PROFESSORA igual. Igual , mas diferente, olhando-os estrelas no céu- constelação, flores em ramalhetes.

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TRAVESSIAS

Quantas ainda
haveremos de fazer
por sobre águas quase lágrimas?
Momentos de ir
em quantos minutos,
quantos anos
quantas décadas assim …
 
Paisagens de enfeitar infortúnios
sons de céu
sons de ar
sons de atravessar
 
Margens de sempre
chegadas de nunca
travessias intermináveis
vozes longínquas.
 
Um trem que corta destinos,
o outro lado,
a entrega,
a chegada,
 
Travessias,quantas ainda?

ESSA BARBACENA

 Barba
-acena
Sobe
Desce
Venta
Queima sol
 
Olha as rosas
Olha a Rua Quinze
Olha a Escola de Cadetes
Olha a Cabana da Mantiqueira.
Olha as pedras
 
Tropeça
Levanta
Cai
Levanta
 
Olha mais
Olha isso-aquilo, olha.
Que Visconde de Barbacena que nada.
Que cidade de loucos que nada
Que gente boa de tudo!
 
Ah, Barbacena!
Acena
traz teus filhos todos de volta
Que a gente muda esse negócio de política
leite com leite
Vota de novo
Muito bem
E reconstrói esse país.
 
Eh, Minas,
Eh, Minas!
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Textos e poemas: Odonir Oliveira

 Fotos de arquivo pessoal
 
1º Vídeo: Canal Aksel Rykkvin
 
2º, 3º, 4º Vídeos: Canal Odonir Oliveira
 
5º Vídeo: Canal Felipe Eduardo

Lirismo em gotas

DE VOLTAS E VOLTAS …. OUTRAS VOLTAS

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CIDADE

Respirando o mesmo ar,
ouvindo o mesmo apito de trens
vendo escurecer as mesmas subidas e descidas
um desencontro de séculos.
Descaminhos de aço e flores.
Descaminhos de álcool e aromas.
Descaminhos de dez caminhos sinuosos.
Amanheceu
Entardeceu
Anoiteceu.
Beija-flores e bem-te-vis
cumprimentaram maritacas e melros
Sanhaços beliscaram uns frescos sumos.
Recolheram-se no cedro em frente.
Encontros, desencontros, impedimentos, desmandos.
Sinas e sanhas, sagas e desdouros.
Mesmo ar
Mesmo céu
Mesmos trens …

 

DOSES DE LIRISMO

Escorrendo versos pelas ruas, vielas e praças
Beijam-se os amantes em excitação.
Romantismo em boleros, sambas-canção
Enovelando apaixonados corpos e vozes
sussurros em ouvidos últimos.
Ensaio de dança confessional
em dois a dois.
Doses de lirismo pelos ouvidos
pela boca
na pele eriçada
no corpo intumescido.
Doses de lirismo em aspersão no ar.

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DO SEIO

Mama de seios fartos
Mama na mama da mama.
Mama de bicos róseos quase de flor
Mama de esférica forma a repousar um queixo uma boca uns dedos.
Mama de mama, ora mama ora mana
Mama mana, mama na mama da mana.
Mana ou mama,
No êxtase, o confuso sentido a incandescente explosão.
Mamas e mamas

 

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DO VENTRE

De dentro o dentre
Sem dela
Com o dele.
De fora
O mole
O frágil
O delgado
O pequeno
O úmido
O quente.
Nela o dele
Nele o dela.

 

 

Poesias: Odonir Oliveira

Imagens:
Rene Magritte
Mel Melissa Maurer – Instantes  fotos ao álbum “NUde

 

1º Vídeo: Canal Odonir Oliveira

2º Vídeo: Canal Peu Roberto Almeida

Personas, comédias e tragédias

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ESCUTE AS ROSAS

“Fica sempre um pouco de perfume nas mãos que sabem ser generosas”

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CÉU

Odonir Oliveira

 

Azul

Complexo

De matizes muitos.

A descobrir-se

Inquietações

Sombras molduras, ranhuras de profundidade.

Idade prêmio troféu

Céu

 

Dores sabores refletores de sinos

Audíveis por ouvidos únicos

Sensíveis aos afrescos de capelas de sangue e cicatrizes

De festas fétidas de pudores singulares.

 

Vulgaridades expostas

Particularidades repostas.

Estradas de ir e de continuar indo

Sem chegadas

Sem estações

Sem portos

Sem píer sequer.

 

Rios de águas muitas

Rios de águas poucas

Rios de céus enluarados.

Nuvens emoldurando rumos.

Rumos emoldurando caminhadas.

Céus.

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VISITA

Odonir Oliveira

Não sei o seu nome,

e ainda que soubesse, de nada me adiantaria.

De nada me adiantaria

ou nada acrescentaria além de saber-te leve

dançarina  fluida,

diplomata

ouvinte

sabente

exultante.

De nada me adiantaria

ou nada acrescentaria às suas visitas cotidianas

aos respingos de risos

aos seus galanteios múltiplos e rotineiros

nessas telas azuis

em nuvens de bytes.

De nada me adiantaria,

ou nada acrescentaria além de suas pegadas noturnas,

meio escondidas,

muitas vezes encontradas apenas nas manhãs seguintes.

De nada me adiantaria, nada mudaria,

a não ser saber-te uma bailarina em menina,

e uma mulher,

a quem qualquer um quer.

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PERSONA

 Odonir Oliveira

Comédia risível

De costumes corriqueiros comuns vilmente cotidianos.

Sem profundidade nos dias

Era vulgar no comum, visível a olho nu.

 

Fora moça pobre gorda morena

Sofrera por amor por muitas vezes

Sofrera pela pobreza

Sofrera pelo físico pouco aplaudido

Trocada, assim ela se sentia.

E dela isso não conseguira expurgar.

 

Lutara quanto à pobreza

Lutara quanto a ser orgulho da família pobre

Carecia elogios

Carecia destaque

Carecia reparações.

Carecia reconhecimentos.

Cristã, mascaradamente,

mas cristã.

 

Personas:

Fingia ser uma, era mil

Mil mulheres comuns sem distinção de outras

Tão carente quanto,

necessitando de carinhos do macho, aplausos, sorrisos,

 amassos e menções.

“Jamais o retorno ao peso anterior, aos cabelos morenos ,

à substituição por uma outra melhor!”.

Era assim que se via: fora a pior.

Naqueles momentos novos a competição pelos machos era ponto de honra

“Nunca mais serei substituída”- arremedo de heroína de “O vento levou”

Trocava de máscara qual um Zelig de Woody Allen a agradar

machos, primeiro

depois a  familiares: mãe, irmãos, sobrinhas, madrinha.

Orgulho do clã.

Máscaras de sobrevivência.

Em fundo raso: mulher vulgar, cotidiana, confusa, casual, comum

De novidade talvez a capacidade de dissimular

Mas nem isso era glória: Capitu de uns Bentinhos desavisados …

que para feromônios comuns, respostas biológicas.

Era o bastante.

 

Talvez aquele peito pequeno de bicos escuros

aquela cavidade úmida desnuda de pelos, tornada quase uma púbere

os atraísse, os excitasse a idealizações de penetrações primeiras.

 

Ofertas de ocasião.

De pele morena e nada de novo.

Dentro de si o de si apenas .

Nada de doar-se, nada de entregar-se, nada de seu neles.

Nada.

Medo.

 

Imagens para consumo externo, de fora de si.

Medo da substituição contumaz, da troca iminente, recorrente.

Máscaras.

Apenas vaso preenchido de água de sal

Incapacidade de dar e sofrer.

 

Para tanto esforço de emagrecimento, exercícios físicos diários bronzeamentos de peles …  haveria de contar com aplausos.

Aguardava e se comprazia com apenas aquilos ou issos.

Bastava.

Mais de cinquenta anos… espessura tênue, cova rasa.

Prazeres.

Beberes

Comeres.

Apenas.

Não necessitando de mais.

Frouxidão de laços.

 

Mascarando sonhos sufocados

Enganando a si e a  outros

A certos outros tão e tanto iguais a ela.

ou de máscaras de paetês de dourados triviais

que se dissolvem ao apagar das luzes,

e, por vezes, ao acender também.

 

Personas tragicômicas num palco de beira de estrada.

Teatro poeira de atores casuais. Retreta de descaso.

Poucos aplausos.

Uns somente em consideração ao intenso esforço.

Risível comédia humana.

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NOSSAS ÍNDIAS

Odonir Oliveira

Índias que dançam seus kuarupes

enfeitadas de penas

miçangas

pitangas de rendas de urucum

sacodem seus traços,

femininos traços,

de paladar

olfato

tato

cor.

Ornam braços

pernas quadris e ombros.

Ai daqueles que as deixem,

as abandonem …

Ainda que prenhes de paixão,

flechadas de mel,

flechadas de dor,

mortas, jamais.

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EMBRIÕES

Odonir Oliveira

Bebeu veneno  Cuspiu fel. Amargou  ácido de desdém.

Apreciou a cobiça. Ensandeceu pela vitória. Espreitou o feitiço.

Gritou a expulsão do líquido de dentro para fora

Na cavidade cobiçada.

De rodeios e rodadas, a graça da conquista fácil.

Do canto, das falas, das risadas, vadia da picardia

Do sêmen escorrendo da boca na boca

Da invulgar chegada nos de sempre iguais braços coxas e pernas suadas.

– Ganhei mais esse troféu.

Ganhei deles todos

Com meu canto, com meu ludibrio com meu visgo de macho.

Cio constante de sêmen empinando órgão

Contar a vitória

Cantar a vitória

Mostrar a vitória

Semear a próxima vitória conquista presa.

E o troféu exposto a todos.

Asco.

Carência de garanhão inseguro

Carência de membro inseguro

Carência de mãos frágeis

Carência de um verbo convincente

Carência de capacidade de manutenção de estrada.

Ramais  apenas.

Picadas  inseguras de momentos fugazes.

Momentos com timoneiras de ocasião de perfumes semânticos semelhantes.

Sem rotas paralelas, sem portos seguros.

Apenas roteiros extemporâneos.

Sem elos e laços.

Apenas rotas de gozo.

“Só quero gozar “.

Discurso  de reprodutor inseguro,  medroso do ser e estar.

Completamente.

Como tantos.

Máscaras, personas, atuações de temporadas teatrais

Em festivais de verão.

Tragédias gregas em épocas de colheita.

Tragicomédias com catarses coletivas

Coros personagens aplaudindo atos em série.

Teatro de costumes.

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Fotos de arquivo pessoal