minha mãe dizia
- ferve, água!
- frita, ovo!
- pinga, pia!
e tudo obedecia
PAULO LEMINSKI (1944 - 1989)
(Poema publicado no livro "caprichos & relaxos" - 1983)
UMA PEDAGOGIA
Minha mãe sempre levantou às seis da manhã, tinha que fazer café, ferver o leite e deixar tudo pronto pra o meu pai que ia entrar na FNM às sete horas. Depois disso, ia cuidar da roupa no tanque, esfregava tudo nas mãos, cinco filhos, um marido, torcia lençóis, toalhas, macacões, uniformes. Dava um intervalo pra molhar os canteiros de antúrios, colher umas bertalhas, umas couves na horta. Depois cuidava das galinhas e dos patinhos. Tivéramos até uma cabra e um cabritinho também.
Saía de casa e, com dinheiro bem curto, cinco filhos, marido, ia ao açougue, à padaria, ao SAPS e ao SESI comprar pouca coisa. Voltava, lavava arroz – que meu pai gostava fresco e até o feijão- no almoço e na janta. Picava couve fininha, temperava os bifes com alho pilado e sal. Nesse intervalo, dava um pulinho no quintal e colhia umas laranjas seleta – suas preferidas- e ia chupando com um cadinho de sal, bem pouquinho, “pra não afinar o sangue”.
–Que horas já são aí, Doni?
-O ponteiro grande tá no 11, mãe, e o pequeno ainda tá no 11 também.
Era assim que me ensinou a ver as horas, creio que desde os 4 anos. Como me ensinou o Pai Nosso, a Ave Maria e a pedir a São Longuinho pra me ajudar a achar as coisinhas que eu perdia, e depois dar os 3 pulinhos prometidos a ele, agradecendo.
O que aprendi com minha mãe foi por observação atenta de seus comportamentos, de suas atividades. O discurso era mais seco, enérgico e moralista do que o de meu pai. Minha mãe colocava seus 5 filhos acima do céu e da terra, fizessem o que fizessem. “Já reparou que dona fulana gosta mais do marido que dos 3 filhos?“ Gostava de copiar modelos das vitrines das grandes lojas do Rio, do Largo da Carioca, das mais afamadas de todas. Levava um caderninho e desenhava o vestido, o casaco, o que quer que lhe parecesse de estilo. Depois comprava retalhos nas bancas de tecidos da Rua do Ouvidor (da Rua da Alfândega não “era tudo muito mixuruca e sem classe“, dizia)- voltava pra casa no Ônibus dos italianos – cedido aos sábados pela FNM para levá-los gratuitamente ao centro de comércio do Rio – e no qual podiam ir também alguns operários e familiares, voltando de lá ao meio-dia . Algumas vezes fui com ela e meu pai.
Costurava só depois de fazer o jantar (muitas vezes, depois de fritar uns pastéis mineiros bem recheados, que meu pai levava numa lata grande de biscoitos, para vender aos operários, quando voltava pra FNM para o serão, até às 10 da noite.) Era a hora em que ela ia costurar. Já nos tempos dos moldes em revistas eu, com mais de 10 anos, copiava pra ela, com papel vegetal sobre eles, os modelos pra que ela cortasse e costurasse nossas roupas novas. Nunca estudou Corte e Costura, aprendeu fazendo. E era muito caprichosa, principalmente nos avessos, nos arremates, um primor mesmo.
Assim como o era ao passar roupas, sem deixar um vinco em mangas de camisas longas masculinas, em nossos uniformes… aprendi cedo a engraxar meus sapatinhos pretos de escola e a deixar meu uniforme já sobre uma poltrona, com as meinhas brancas e a pasta escolar com os livros, tudo para não me atrasar na hora de ir.
Não nos ensinou a cozinhar. O que sei aprendi foi quando passei a morar sozinha em São Paulo, a estudar na USP à noite, dando aulas pelas manhãs.
–Plácido, vem ver a pilha de roupa que a Doni passou nesse tempinho que você foi ver o mar lá embaixo – disse ela ao meu pai, naquela manhã de 1977, em Santos, quando haviam ido me visitar – ainda ouço sua voz e vejo sua expressão ao dizer isso.
Bendita seja sempre, minha pedagoga essencial!
Certa vez mandei de SP um poema de Drummond sobre mães para minha mãe, acompanhado de um buquê de flores.
No ano seguinte, entreguei a ela um poema que eu lhe havia escrito - que não tenho mais - ela nada falou, só riu de canto de boca.
Perguntei-lhe se havia gostado do poema que havia escrito pra ela.
Olhou pra mim e disse "Pensei que fosse do Drummond também, como o do ano passado"
Foi o MELHOR ELOGIO CRÍTICO que eu recebi em toda a minha vida.
PONTO ALINHAVO
Minha mãe costurava todas as nossas roupas
desde os vestidos, às camisas, aos biquínis
copiava com lápis, num caderno,
modelos das vitrines chiques do Rio,
comprava tecidos, muitas vezes em bancas de retalhos, saldos, costurava
Tirava moldes de revistas de costura, em papel pardo, alinhavava, costurava.
Minha mãe costurou nossas infâncias e adolescências com linhas MUITO COLORIDAS mesmo.
Salve Dona Itália, mineira de Barbacena.
Sobre MÃES, leia aqui no blog: As mães e as mãos, por Drummond- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2023/11/02/a-mae-e-as-maos-por-drummond/– 99 anos – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/07/01/99-anos/– Mulheres e mães – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/05/06/mulheres-e-maes/– Mulheres e mães II– https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/05/07/mulheres-e-maes-ii/Mães, sagrados seres –https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/05/10/maes-sagrados-seres/– Às mães tudo se perdoa? – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/06/21/as-maes-tudo-se-perdoa/ – Mães maduras – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/05/08/maes-maduras/– Mães jovens –https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/05/07/maes-jovens/– Mães, eternamente –https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/05/09/maes-eternamente/ Mãe, braba feito onça!- https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2016/05/05/mae-braba-feito-onca/– A outra mãe –https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/05/27/a-outra-mae/–
Texto e poesia: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal
Vídeo: Canal Monica Salmaso