Drummond e Belchior

Faz 15 anos ganhei esse presente de um ex-namorado publicitário. Belchior desenhou 31 caricaturas do poeta em ” As Várias Caras de Drummond’. No verso de cada uma, 31 poemas de Drummond, que também foram musicados pelo artista.

Pretendo colocá-las todas em molduras e constituir aqui em casa uma parede só para meu pai-lírico Carlos Drummond de Andrade.

POEMAS DE DRUMMOND MUSICADOS POR BELCHIOR

CD 1: 1-Sentimental 2-Lagoa 3-Concerto 4-Cota zero 5-Liquidação 6-Perguntas em forma de cavalo-marinho 7-Quando desejos outros é que falam 8-Toada de amor 9-Lanterna Mágica 10-Orion 11-Poema que aconteceu 12-Também já fui brasileiro 13-O passarinho dela 14-Ar 15-Política literária 16-Poesia

CD 2: 1-A música barata 2-Arte poética 3-Os inocentes do Leblon 4-Quero me casar 5-Cidadezinha qualquer 6-Cantiguinha 7-Boca 8-Ainda que mal 9-Procuro uma alegria 10-Serenata 11-Nova canção do exílio 12-Sweet home 13-Rosa rosae 14-Mosaico de Manuel Bandeira 15-No banco de jardim

Vídeo:

Canal Antonio Aury de Macêdo Torquato

O Drummond menino cresce

Miguel é bisneto de Drummond; repare nas semelhanças

SEMBLANTE

O rosto é o mesmo
fino,
oval,
triangular?

Sei que é Drummond presente.
Os dedos ágeis
o sorriso meigo
o ritmo no corpo inteiro.
Concentração única
encantamento melódico
olhar lânguido.

Pianista de versos
Poeta de melodias.


O MENINO QUE LEVITAVA

Ao clarear do dia o menino abria olhos arregalados
De beber o mundo.
Mas era pouco.
Montava seu cavalo alado
Como se dançasse com ele.
Era doce o menino.
E partia ao encontro de seus marimbondos
de suas rãs e lagartixas.
Morcegos eram como flores do campo.

A tarde tinha a estrela vésper sempre a sua espera
E nela menino, cavalo e aventuras seguiam,
bebendo cada folha, cada árvore, cada trilha.
Mas era pouco.

Depois, pisar na água era um barulho celestial
Era cócega
Era música
Era verso
Era poesia.

Desmanchar rotas citadinas
Mergulhar no escuro de grutas cavernas, barcos e estradas.
Era pouco
Porque o menino ria, ria, mas ria tanto,
que de prazer levitava.

E de baixo, em terra firme,
ninguém o alcançava
E não era pouco !

DRUMMOND PERCORRE OURO PRETO

Um anjo barroco desceu
nas montanhas
fez ritmo e movimento.
Pousado nas pedras, nos muros,
decalca o pórtico da igreja
enfeita com seus cabelos de anjo
a paisagem estática
empresta frescor aos versos
de marílias e dirceus esculpidos nas calçadas

Vem, menino anjo,
Minas é sua.

Leia também: Um Drummond menino

Um Drummond menino

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de meu livro de poemas de Drummond, FAREWELL, póstumo.

Vídeos:

1-2-3-4-5: Canal peiedragranja ondaalta

6 e 7: Canal Pedro Drummond

Brigar juntos ou chorar separados?

EMOÇÃO ESTÉTICA

Pré- lúdio
procura … encontro
tronco firme
beleza cor forma impacto
reentrâncias imperfeições
perfeição
olhos verticalmente embevecidos.

tato majestosamente ativo
surpresa estética
ambição de posse
prazer repartido
êxtase parcial.

tronco árvore
posição de cruz
tronco galhos folhas atados
firmes eretos vibrantes
tocam-se
tocam-nos,
orgonicamente,
prazer estético.

folhas galhos dançam
levemente
suavemente
ritmadamente
freneticamente

natural- mente
êxtase total !

CHIFRES

Apartamento no décimo andar. Luz fraca de abajur de mesa. Uma poltrona. Um copo de pinga, Uma garrafa pela metade. A vitrola repete, repete, repete. O vinil roda.

– Por quê? Por quê? Num tinha que ter dado trela, ter dado espaço. Porque sabia que ia dá desgraça. Num era mulé pra mim, eu já sabia. Aquele mel no ombro, aquele olhar de cerveja né, eu sabia.

Um gole a mais. A música acaba. A música repete. A pinga acaba. A pinga repete.

–  Agora aonde é que ela foi, hem, onde é que ela tá? Sempre deixando pista, sempre mandando recado enviesado, sempre deixando aquele aroma dela por todo lugar pra chegar em mim. Eu sabia,  ia dá tragédia.

Um , dois, três goles. Caminha até a janela, estica o olhar pro céu.Sai da janela, tira o vinil. Senta. Levanta. Põe de novo o vinil. Lambuza as mãos de paixão escorrida, derramada. Mais um gole. Levanta e chora.

– Onde andará aquela miserável? Deve estar com ele, aquele cubano comunista…. deve estar. E pensar que eu fiz tudo que ela quis, hem … o mínimo toque, eu ia, eu seguia, eu buscava, eu levava, eu trazia, eu voltava. Filha da puta. Com aquele aroma, aqueles cabelos, aqueles peitos redondos , falsos, mas verdadeiros de tocar, de beber, de comer, de sobremesear. Desgraçada. Mexia o tempero como ninguém.

Vai urinar. Demora. Volta. A pinga bebe. O vinil toca. O peito chora. O coração sangra e respinga na cama. Está jogado na cama. O copo de pinga tombado e vazio no lençol. O corpo vazio no lençol. A noite vazia no lençol.

– Desgraçada, filha da puta.

Dorme.

CORAÇÃO TRAIÇOEIRO

Recordações espremem limão na pinga
Companheiros ouvintes de peito encharcado
Narram loucuras e entregas
Eu abandonei tudo por ela
Saía da cidade, rodava mais de 500 quilômetros,
mas um amor com uma estrada no meio tem seu valor,
depois ela montava meu cavalo e galopava comigo por dias,
sem tirar,
sem reclamar
só prazer.

Como num jogral afinado, o outro desfia
Vivi perdido por meses no meio do mato,
entre rio e mar,
caminhadas de só nós,
em pelos e mel,
abandonei trabalho, família, cidade,
mas valeu cada milhar de moedas deixado ali.

Pinga e choro.
Alguém traz um cavaquinho, um violão
Bebem
Comem
Iguais

São iguais

MULHER, TEM MUITAS

O cavaquinho derrete as cordas
os dois se embebem de seus merecimentos
Nada de chorar por mulher
Mulher, tem muitas
Ouvem as notas agradecidas nos dedos do amigo de copo e bar
Mãos que sentem, diz um
Mãos que machucam, desabafa o outro.

Olham ao redor
Duas mulheres batucam o choro chorado na mesa
Duas mulheres cochicham suas dores e mágoas
Um pote de mágoas
de zumbis, cobras venenosas, julietas, medeias, jocastas
Doem suas dores nos copos esvaziados
outros copos
outras vozes
outras vezes

Bebem.

LOUCURAS DE AMOR

– Não acredito? Você fez isso?

– Claro, juro. Fui de táxi. Não sabia endereço dele, nada. Fui. O taxista ia acompanhando a história, interessado, e torcendo que tudo desse certo. Mais de 350 km, 4 horas no táxi.

– Encontrou o Lúcio, afinal?

– Foram 3 dias e mil e quinhentos reais, 3 formas diferentes de transporte. Mas fui. Nenhuma referência, nenhuma pista, só atraída pelo cheiro do amor. Fui.

– Muita loucura a sua. Ou muita coragem.

– As noites eram quentes, o hotel fervia, as caipirinhas incendiavam meus passos. As ruas perambulavam em mim. O cheiro do amor me levava pelas calçadas. Sabia que estava perto, sabia que viria até mim, sabia que a trilha era aquela. Fui.

– Que força, que ligação, que atração, hem.

CHORO MOTRIZ

Uma noite
outra noite
um rosto, um resto
uma rota
sem volta
sem farol, nem luz
uma noite
outra noite
“amanhã é outro dia”

Bebe versos, mastiga pinga
uma noite
outra noite
outro rosto
outra noite
outro rosto …

Poesias e textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Rodrigo Castro de Mendonça

2- Canal Lupicínio Rodrigues – Tema

3- Canal Tudodobeto Beto Fae

Plácido & Pacífico

PAI COM POESIA

O pai matuto
Alto Rio Doce na terra das mãos
verde-claro, verde-escuro
canto de canarinho-da-terra pelos ares
cores de flores nos ventos
perfumes de simplicidade
sabe arar
sabe semear
sabe regar
sabe colher
sabe chupar laranja sentado no chão
tem um canivete, tem um chapéu
tem o céu todo em si
enxerga a montanha com poesia
namora o sol quente com poesia
descansa com a estrela vésper
pura poesia
come arroz, feijão, couve, angu, linguiça
bebe caldo-de-cana que fez na engenhoca
na engenhoca que fez sozinho
o engenho e a arte casados em si
dorme às dez da noite
o dia amanhã vai se duro, vamu durmi, gente
sonha roçar aquele matão que cresceu
levanta com o chamado do galo
Ê, Minas ! Minas é maior que tudo, minha gente !

Antonio Fagundes gravou esse CD em homenagem a João Pacífico, pelo centenário de seu nascimento, mas J.P. faleceu antes. Vale a pena ouvir as interpretações do Fagundes. Maravilhosas.

TERRA DE MINAS

Que bondade tem o garoto mineiro que ajuda a carregar embrulhos, mesmo sem precisão…
Que prosaico é aquele cê bobo ao final das frases coloquiais …
Que vontade é essa de ficar sentado na praça a tocar causos e prosas até o entardecer…
Que permissivo é esse tom de confidência de quem jamais nos viu antes …
Que adocicado é esse olhar de matutagem espalhado pelas calçadas …
Que coisa caseira é essa que me enternece de água os olhos …
Talvez seja encontro de sangue mineiro com sangue mineiro.
Talvez seja um ponto de vista repleto de montanhas .
Talvez seja essa vontade de encontrar o que uma vez se perdeu em mim.

FESTA NA ROÇA

O céu dormiu chovendo
acordou sorrindo.
Dia de festa na roça.
Café adoçado com rapadura.
Quitandas em potes
Bolo de milho, bolo de mandioca, doce de leite, queijo de casa.
Linguiças penduradas tinindo de frescas.
Um anguzinho mole, sem sal
pra ser comido com leite
Dona Neuma me traz frango. E o quiabo fresquinho da horta, hem.
Ouvem-se vozes ao longe.
Ouvem-se conversas de décadas, relembradas,
do primo de uns, dos tios de outros, da madrinha deles todos.
Quem morreu na semana passada? Quem casou? Quem nasceu?
Uns trazem as encomendas, outros trazem os braços e as mãos pra arrumação
Outros trazem as palavras na voz a um aconselhamento .
Risos doces e salgados de dança mineira no chão.

TEREZA, UMA CABOCLA ROMÂNTICA 

“Viver é muito perigoso” (G. Rosa)

Era Tereza a morena cabocla mais feminina da região. Gostava de ouvir as modas nas rodas de noites, sentados irmãos, a parentada e os violeiros rasgando dores e saudades das amadas, das terras distantes, das esperanças perdidas, das traições de amigos, de mulheres … Tereza apreciava cada moda daquelas e era alimento pras suas carências e prazeres.

Deu que ali entre todos os que paravam na venda do seu Neco, agradou em demasia de um quase índio quase negro, meio assim de olhar matreiro e risada alta, voz de cantador. Tocava pouco da viola, menos ainda da rabeca, mas cantava. E inventava. Era bão de invencionices o tal. Pedia acompanhamento, “um dó maior”, “um si menor”, como se de muito entendesse ou tivesse estudado de cancionices. Era matreiro. Matreiro e bonito. Bonito e encantador de olhares também. Agradou de Tereza como nem. Agradou de suas pernas grossas, desde meninota eram assim. Agradou de seus seios fartos e empinados. Agradou de seu cabelo ondulado castanho-escuro e do seu olhar romântico pros versos que cantava nas noites de varanda, lá  no seu Neco.

Fez que fez, dedicou que dedicou, com olhares e sorrisos, versos a ela, que Tereza entregou-se. Foi dele e de mais nenhum outro que vinha por aquelas bandas a se entornar  viola pra ela. Disse pra cada amiga que tinha dono agora. Ele era seu. Nome não sabia, que todos o chamavam de Goiano apenas. Imaginava que fosse das bandas de Goiás então.

Passou a esperar por ele. Passou a gostar dele num tanto, que quem via achava que já houvera lhe dado os beijos, os abraços, os seios, as coxas e o ventre pra serem degustados a dois. Nonada. A Tereza era de matutar num tanto e esperou que ele se entregasse, falasse cara a cara o que dela queria, como é que seriam, pra onde é que iriam, se tudo ficaria daquele jeito mesmo – que bão era um tanto tamém. Aguardou.

Goiano, sempre  pelas corrutelas e querências da vida, num vinha nem ia, empacava. Tereza querendo ir e vir, ir e vir,  Goiano preferindo as casas de tolerância das vielas de vento forte, se abrigando em bocas alheias, cantando modas e tocando um nada de viola. Ora num cabaré, ora num lupanar, outra hora num bordel mais perfumado, dançando boleros e cochichando safadezas nas orelhas das mulheres amaciadas pelas estradas. Não havia uma zona dos entremeios em que Goiano nunca tivesse deitado em colcha de cetim grená. Era doido por pinga de qualidade, por boleros e permanências curtas. Gostava da alta rotatividade das picadas, das veredas e dos caminhos esquerdos da bandidagem parceira.

De costume assim enfileirado, o homem moreno acaboclado sentia falta por alguma vez de rever Tereza, de dedicar certo olhar religioso a ela, mas nunca deixava claro suas intenções, fossem quais. Não dava torcer nem braço, nem mão, nem boca, nem corpo pra Tereza se afeiçoar. Media distância, como se a moça fosse reservada pra um seiquê qualquer de pouco esclarecimento na sua cachola e no seu apaixonamento insistente.

Foi assim que foi.

Foi que Tereza amava aqueles braços de poesia e invencionices de rir e de chorar também.

Foi mesmo assim que um dia, levou Tereza pra dijunto dele, mas separado, de certeza.

Abandonava Tereza e ficava dias sem aparecer nem pra dar conta de um angu com feijão e couve, nem pra uma noite de suor com ela, nem mais pra uma viola, daquelas que tinham endoidecido Tereza antesmente. Foi ficando Tereza e seus doces olhos castanhos. Restando, restando.

Numa noite, chegou Goiano sem notícia dada antes.

Pegou Tereza e um cavaleiro tocando viola na sala pra ela. Era como se estivessem grudados de imã no olhar.

Matou.

(E mais não conto que conheci a cabocla Tereza e sei que sucedeu mesmo assim essa história)

FLORAÇÃO

Na rota, um porto
Na reta, um ponto
insípido inóspito infértil
No tronco, uns galhos
Nos galhos umas folhas
secas opacas estéreis
Alma no trajeto
Curvas no caminho amargo
Gotas de perfumes
Pingos de cores
Chuvas de flores
fertilidade, sedução
produção
Poesia
Caminhos doces então.

Pertinência: Faz frio na minha aldeia, 10º. Neblina aqui na minha serra faz os galos cantarem mais tarde. Penso eu que eles se apiedam dos homens da terra e estabelecem um acordo tácito para o início de sua sinfonia. São plácidos e pacíficos aqui na Serra das Vertentes, qual Plácido José e João Pacífico.

João Baptista da Silva – João Pacífico – nasceu em 1908 e faleceu em 1998, em SP
Plácido José de Oliveira nasceu em 1917 e faleceu em 1993, em MG

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: 

1- Canal rochajose Duca Rocha

2- Canal Moacyr Filho

” Tem a morte e tem o amor e tem o mote e tem a glosa”

BOAS-VINDAS
Sua mãe e eu
Seu irmão e eu
E a mãe do seu irmão
Meus irmãos e eu
Minha mãe e eu
E os pais da sua mãe
E a irmã da sua mãe
Lhe damos as boas-vindas
Boas-vindas, boas-vindas
Venha conhecer a vida

Eu digo que ela é gostosa
Tem o sol e tem a lua
Tem o medo e tem a rosa
Eu digo que ela é gostosa
Tem a noite e tem o dia
A poesia e tem a prosa

Eu digo que ela é gostosa
Tem a morte e tem o amor
E tem o mote e tem a glosa
Eu digo que ela é gostosa
Eu digo que ela é gostosa
Sua mãe e eu
Seu irmão e eu
E o irmão da sua mãe

FORÇA ESTRANHA
Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
Do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei
Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista

O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo, do fogo das coisas que são
É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão
Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha, no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

TODO HOMEM
O sol, manhã de flor e sal
E areia no batom
Farol, saudades no varal
Vermelho, azul, marrom
Eu sou cordão umbilical
Pra mim nunca tá bom
E o sol queimando o meu jornal
Minha voz, minha luz, meu som
Todo homem precisa de uma mãe
Todo homem precisa de uma mãe

O céu, espuma de maçã
Barriga, dois irmãos
O meu cabelo negra lã
Nariz, e rosto, e mãos
O mel, a prata, o ouro e a rã
Cabeça e coração
E o céu se abre de manhã
Me abrigo em colo, em chão
Todo homem precisa de uma mãe
Todo homem precisa de uma mãe
Todo homem precisa de uma mãe
Todo homem precisa de uma mãe

DEUSA DO AMOR
Tudo fica mais bonito quando você está por perto
Você me levou ao delírio por isso eu confesso
Os seus beijos são ardentes
Quando você se aproxima o meu corpo sente
Os seus beijos são ardentes
Quando você se aproxima o meu corpo sente
Vem pra cá deusa do amor

Vejam o bloco Olodum ao passar na avenida
Todos cantando felizes de bem com a vida
Caminhando lado a lado
Formamos um belo casal somos dois namorados
No suingue dessa banda
Balança o mais forte alicerce que tem neste mundo
O cupido me flechou
Foi no bloco Olodum que encontrei meu amor
Vem pra cá deusa do amor
Vem me embalar, neném

O POVO DE UM LUGAR
Todo dia o sol levanta
E a gente canta
Ao sol de todo dia
Fim da tarde a terra cora
E a gente chora
Porque finda a tarde
Quando a noite a lua mansa
E a gente dança
Venerando a noite
Madrugada, um céu de estrelas
E a gente dorme
Sonhando com o dia

UM TOM

Um tom pra falar
Um tom pra cantar
Um tom pra dizer
Um tom para a cor
Um tom para o som
Um tom para o ser
Ah, como é bom dormir
Ah, como é bom despertar
O céu é mais aqui
Um tom é um bom lugar
Tanta coisa que cabe
Tanta pode caber
Canta e pode fazer cantar
Nova felicidade
Novo tudo de bom

Deixa-se cantar um tom
Um tom pra falar
Um tom pra calar
Um tom pra dizer
Um tom para a voz
Um tom para mim
Um tom pra você
Um Tom para todos nós
Um To
m

DEDICATÓRIA: Para minha filha, a baianinha Carla, no dia do seu aniversário. A cada ano, nesse dia, sinto de novo você nascendo. Meu amor a você, minha filha.

Fotos de arquivo pessoal: orquídea que vem se abrindo a cada dia, e ainda tem botões a abrir, a cada ano …

Vídeos: Canal Caetano Veloso

Encontros adiados

ENCONTROS

Ama-se o amor
Ama-se a busca do outro em si mesmo
Ama-se um acordo de pensamento que batiza encontros
Ama-se um gesto, um riso, um toque, um olhar
Ama-se um jeito, um comportamento, uma capacidade
Ama-se um cheiro, uma seiva, uma pele.

IDENTIDADES GARIMPADAS

Em meados dos anos 80, Ísis conheceu Antonio Carlos em uma reunião da categoria. A retomada do cinema tardava, e ele deleitava-se com seus curtas, meio documentários, docudramas, mas sem muitos recursos para voar. Inscrevia um ou outro em Festivais de Curtas, os exibia em Cinematecas, tudo muito cult. Era quase um hobby aquilo tudo. Nesse ponto conheceu Ísis. Os amigos lhe diziam que ela era a Eva do Adão. A mãe o batizara Adão. O pai Antonio Carlos autorizou o Toninho, como tratamento afetivo e familiar para Adão. Ficaram amigos.

Com a retomada do cinema nacional, Toninho seguiu em frente, criou uma produtora de vídeos, uniu-se a ONGs e continuou seu trabalho em defesa de matas, rios, lagos, indígenas … buscando conscientizar corações e mentes com suas produções. Ísis foi trabalhar com ele e sua pequenina equipe. Cabia a ela roteiros, incursões poéticas, elaboração dos planos de gravação. A admiração por ele era grande. Sempre se mostrando um homem simples, defensor da vida simples, da cultura nacional. Admirado por isso. Seguiram, e com a ECO92, por seus filmes, a produtora tornou-se bastante conhecida.

Logo foi convidado para produzir filmes publicitários. Depois, aderiu totalmente ao mercado publicitário. A sedução, sempre ela, fez com que Toninho, aquele Toninho, delegasse a produtora a outras mãos e olhos, e ele permanecesse apenas na publicidade. Ísis desligou-se da produtora. Ísis desligou-se dele.

Olhando pelo retrovisor, relia alguns dos bilhetinhos que ele lhe deixara no mural da sala de reuniões, no começo de outros tempos.

Uma poetisa

Sou um fã da super-craque no trato com as palavras.

Seus poemas sobre as águas – lagos, rios e cachoeiras […] dão um brilho extraordinário às cenas comuns do cotidiano.

Não sei expressar a emoção ao ser confrontado com a informação, que as minhas imagens em movimento podem provocar a imensa veia poética original, guardada para amadurecer e aflorar em sintonia com as batidas do coração da poderosa poetisa parceira” .

Sem mais saber o que dizer, com muito samba no pé, mando beijos pra ela.

[…]

Estou indo agora filmar umas orquídeas, só pro’cê. Contei do seu poema pro meu entrevistado, li pra ele, ele disse É, mesmo?

Apocalipse

A humana maldição,
que recusa permitir
ser a chama do inferno
o único apelo
que nos faz suar,
toma conta de mim.

Refundarei o intercurso
com a minha língua,
e lamberei as cinzas
do mundo nos seus pelos,
quando o apocalipse vier
em nós.

[…]

Sangue
Saúl Dias

Versos escrevem-se depois de ter sofrido.
O coração dita-os apressadamente.
E a mão tremente quer fixar no papel os sons dispersos…
É só com sangue que se escrevem versos.

Nos anos seguintes Toninho vencera o Prêmio Caboré de Publicidade. Ganhara muito dinheiro. Viajara muitas vezes aos E. Unidos. No Brasil, frequentava as praias mais badaladas da turma cult, de atores, atrizes, cantoras e passara a viver em outro mundo. Em outros mundos. Ísis perdera aquela admiração que tivera por ele. O homem simples, que gostava de gente simples, de viver de maneira simples, teria se revelado um blefe de ocasião, agora desmascarado pela sedução. Tudo que negara antes, agora era pactuado de forma doce e aceitável.

Nas idas e vindas aos E. Unidos fora indicado a prêmios. Depois o ápice, o maior deles em Cannes. Vencedor. Era um vencedor. Leonino, vencedor.

Das vezes em que a turma toda nos anos 90 se reunia no Bar do Alemão, para fomentar a discussão de uma sociedade mais justa e solidária, restaram as cadeiras, as mesas e os chorinhos, a MPB, as fotos nas paredes. Toninho ainda frequentaria aquele bar?

Ísis, estando na cidade, chegou cedo. Era sentar e esperar. Ouviu chorinhos. Relembrou tudo aquilo, riu, chorou. Alguém a viu por lá, mandou mensagem pra ele. Ela aguardou mais um pouco. As mesas iam se ocupando aos poucos. Numa segunda-feira …

Depois das 10, chegou Toninho com um amigo, que vinha abraçado a uma namorada.

COMPANHIA FÉRTIL

sabia ler meu peito
sabia ler minhas mãos
sabia ler meus seios
sabia ler meus ombros
sabia ler minha música
sabia ler meu verso, minha rima
sabia ler meus olhos
sabia ler minha língua
sabia ler meu querer
sabia ler meus cotovelos
sabia ler minhas pernas grossas
sabia ler minhas vértebras todas
sabia ler meus sucos internos inteiros
sabia ler minha poção única e particular
sabia ler meus doces e acres
sabia me ler
como nenhum outro me leu

CHEIROS

a boca aberta
fala fala fala
nervosismo
ocasião

a boca aberta
cala cala cala
observa reflete
percepção

a boca aberta
a boca aberta
a boca aberta
contemplação

álcool amor álcool amor
álcool desejo álcool desejo
alucinação
suor álcool amor
declaração
perdição
salvação.

PONTO FINAL

Pensou em ir
como seria ir
o que lhe esperaria no ir
pensou em ir

o ponto final nas humilhações
o ponto final nas comparações
o ponto final no deboche daqueles familiares
o ponto final no sarcasmo das postagens de Facebook
o ponto final naqueles cabotinismos femininos
o ponto final naqueles disfarces masculinos
o ponto final em tantas horas de desespero
o ponto final em tantas entregas e devoluções

pensou em ir
como seria ir
o que lhe esperaria no ir
pensou em ir

a vez era aquela
a voz não era mais a mesma
o canto não era mais o mesmo
a ironia, garça magra e esguia, se intensificava a cada hora
empurrando, atingindo, dando-lhe rasteiras
a cada hora idêntica à da imagem exposta
a cada hora idêntica a lagos, montes, rios, mar

pensou em ir
posicionou-se no precipício urbano
contemplou o fim
o ponto final.

Os famosos saraus do Luís Nassif, em SP
Na foto, Barão do Pandeiro e outros bambas do choro (nessa noite, Barão me contou desde quando tocou o 1º pandeiro no Rio e como acabou indo viver em SP. (Eduardo Gudin foi dono do BAR DO ALEMÃO, no Sumaré, por anos e anos, reduto de jornalistas, artistas e boêmios, em SP)

Pertinência: Os cancionistas muitas vezes superam os poetas sem acordes
musicais.

Gosto de poesia cantada, fico aqui ouvindo-os cantar pra mim, como numa serenata que se pode fazer de manhã, à tarde e à noite.

Em cada período de minha vida – e creio que da de todos – houve sempre uma trilha sonora que insistia em tocar, tocar, tocar.

Quando a gente ouve anos depois aquelas canções, fica assim sensibilizada, mas muito mais pela lembrança da época e do que se sentiu naquele momento do que propriamente pela saudade ou pela vontade de que aquilo volte a acontecer.

Tudo que vem na estrada pode ser ainda muito melhor, basta que haja estrada.

No domingo, assistindo à live do Eduardo Gudin, lembrei que tinha essas fotos.

Os outros eu conheci por ocioso acaso. A ti vim encontrar porque era preciso” – Guimarães Rosa

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: SP, 2019

Vídeos

1- Canal Remo Luz

2-3 Canal Eduardo Gudin – Tema

4- Canal Carlos Bozzo Junior

5- Canal GGN

O rio que entorna poesia: Pajeú

”O que corre no rio, na verdade, é a esperança de um povo, a resistência de um povo, que sabe conviver com as dificuldades e ainda faz poesia com essas dificuldades”

RIO DE POESIA

encharca, rio
derrama, rio
viceja sua poesia
sobre as almas resistentes
sobre os corpos resistentes
inunda com suas águas
a lira da glosa
a lira do verso
ensina e aprende
cordel e desafio por tuas margens
dá mote ao mundo
faz todos
beberem poesia
em tuas águas
Salve, salve, Pajeú
pernambucano em brasilidade
rio ritmo rima rica
água dos sertões

Encharque-se de motes e glosas. Uma aula mágica para quem quer ser POETA e beber poesia. Assista.

Encante-se.

O documentário, que teve como propósito realizar o trajeto físico do Pajeú, indo da nascente, em Brejinho, ao encontro com São Francisco, em Floresta, contou com 30 personagens do ramo cultural, percorrendo 14 cidades pernambucanas. Um dos personagens e também fio condutor da narrativa, o poeta Antônio Marinho, apresenta aos espectadores, de forma intimista, a história do que corta o Sertão de Pernambuco: “A poesia do Pajeú sempre é bem recepcionada em qualquer linguagem colocada ao público. O Pajeú está vivendo um momento mágico das expressões culturais. Sem dúvidas, o documentário é mais um olhar para poesia do Pajeú”.


https://www.folhape.com.br/diversao/diversao/estreia/2019/08/22/NWS,114232,71,938,DIVERSAO,2330-DOCUMENTARIO-PERNAMBUCANO-SOBRE-RIO-PAJEU-ESTREIA-CANAL-CURTA.aspx

Poesia: Odonir Oliveira

Foto: divulgação

Vídeo: Canal Balaio Cultural

“As canções que você fez pra mim”

“Mais amor, por favor !”

O INCOMUM

Está aí? É você?
Tem sílabas outras nas frases e com elas rasga os ouvidos ?
Tem a melodia das vozes e sentidos fora dos sentidos ?
Pinta telas coloridas e ao mesmo tempo faz sangrar uma artéria ?
Faz-se desjejum e ceia em um calendário invulgar ?
Percorre ritmos, auras e horas com a mesma destreza ?
Brinca de não sentir fazendo-se sentir e notar ?
Enquadra-se no desenquadrado esporte do não ser ?
Então é você, o incomum.

RAÍZES DE HOMENS

Há certos homens que têm caules vigorosos.
São eles que semeiam a terra
afagam sementes
exalam perfumes de flores
recolhem os frutos doces.

Há certos homens que encostam as mãos na terra
a fortificam com seus dedos ásperos
a revolvem com palmas ardentes
a fertilizam com braços seguros.

Há certos homens que têm raízes em lugar de pés,
fincam-se inexoravelmente.

NARCISO

Quem é você Narciso
que encontro na vereda da minha salvação
atropeladamente
bruscamente
impactantemente?

Quem é você Narciso
que abraço nas águas como se fora um sertão
embriagadamente
ingenuamente
instantaneamente?

Quem é você Narciso
que me entontece de intrigas
em um torvelinho de dores flores amores
tropegamente
bastardamente
inominadamente?

Quem é você Narciso
que me acaricia e me chicoteia com o mesmo rigor
nas manhãs tardes noites e madrugadas
em meus lagos rios e cachoeiras?

Revele-se
Quem é você Narciso?

RECORTES LÍRICOS

Soubesses, oh anjo de mim,
sentir-me os perfumes
calar-me a voz
beber-me de cores
sugar-me de flores
desenhar-me a pele cegamente
embrenhar-me de néctares
emprenhar-me de meles simples
Soubesses tu que cor
têm meus medos
têm meus segredos
têm meus degredos
Soubesses tu de meus recortes
de florestas
de rios
de cachoeiras
de serras
Soubesses tu, anjo de mim,
da colagem de meus cacos
do desenho dos meus músculos
do brilho dos meus olhos
do verniz na minha imagem interna
mosaicos
Soubesses tu …

AOS CACOS

Ah, como te amo, meu pássaro encantado
Ah, como te espero vir em asas ao parapeito da janela
Ah, como te vejo ir, pousar
levantar voo com a mais bela asa morena
carregá-la no bico aos plenilúnios
todas as vezes
todos os meses
todos os anos
Ah, ser alado, de nada adiantariam meus ais
meus sopros e rogos
preferes a ela
todos as vezes
todos os meses
todos os anos
Carregas no bico acepipes que lhe gotejas nos lábios
Fazes teu canto para que ela te responda
Ela corresponde
Com ela voas beirando as veredas
Com ela semeias torvelinhos de ilusões
E quando a devolves ao porto de origem
todas as vezes
todos os meses
todos os anos
retornas ao ninho cabisbaixo, taciturno, poético
E assim segues levando no bico
a vida, as luas, as ruas, as brumas
todas as vezes
todos os meses
todos os anos

ERA UM SER EM RETALHOS

Conheci-o frágil, principiante
fortaleci-o
fortaleceu-me
fortalecemo-nos
Pedacinho a pedacinho
dia por dia
ano a ano
formamos um rico painel
desenhado por suores e dores
adornado de admirações mútuas
cristalizado por sensações tantas
enraizado pela terra-mãe
fincado no sal, no sol, no sim
multiplicidades
Mosaicos de nós

UM BEIJO E UM QUEIJO

Desceu correndo as escadas,
arrumou os seios no sutiã,
bonito.

Ajeitou os cabelos,
curtos.
Viu-se, mesmo sem espelho,
jovem.

Abriu-lhe a porta.
Abriu-lhe o sorriso.
Abriu-lhe o colo regaço.

Quedou a nuca,
lentamente,
em sua direção.

Entregou-lhe a face colando-a à sua.
Roçou-lhe as orelhas com os cílios.
Afagou-lhe o nariz com seu aroma.
Fechou-lhe os olhos com duas lambidas.

Embebeu-se do ópio momentâneo.
Abriu-lhe os lábios,
sem palavra alguma,
acariciou-os com os dedos.

Abriu-se em paladar,
naquele beijo.

AOS HOMENS QUE AMEI

Dos começos dos meios e dos fins
luas cheias
taças cheias
copos cheios
versos cheios
gozos
gritos
vozes e lágrimas
rumos
ruínas
dias de sol
tardes de brisas
corpos em peles nuas
corpos em carnes vivas
bocas e dentes
mãos e rasgos
engasgos e sussurros
doces vezes doces vozes
espasmos de prazer
toques de rostos
pernas em passos unidos
abraços de risos bêbados
debates de sonhos
querelas de utopias
brigas de portas sonoras
pazes de suspiros generosos
amores
amores
amores

Um excelente texto sobre as sensações do distanciamento social: “O que a quarentena nos rouba? Inventário de saudades e perdas íntimas”

https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2020/05/23/o-que-a-quarentena-nos-rouba-inventario-de-saudades-e-perdas-intimas.htm

Poesias: Odonir Oliveira (inspiradas nos homens que amei e nos que não me amaram também)

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- 3- 4 -6 Canal Maria Bethânia – Tema

2- Canal marcelo 061040

5- Canal Omar Fernando

“Inumeráveis”

Se números frios não tocam a gente, espero que nomes consigam tocar”.

CARPIDEIRAS

choro eu
chora você
a dor é sua
a dor é minha
lágrimas engrossam a cada dia
números avolumam-se a cada dia
vozes se calam a cada dia

choro eu
chora você
a dor é sua
a dor é minha
o assalto à mão armada
da bolsa
do bolso
da vida
da alma em sossego

choro eu
chora você
a dor é sua
a dor é minha
a cruz na estrada
a flor no túmulo
a tumba cheia
a cova rasa
a imagem tatuada na pele
a ferro e fogo

choro eu
chora você
a dor é sua
a dor é minha
um rol de corpos
um rol de ossos
um rol de despedidas
lidas
tidas
havidas

Há vidas?

ESPECTRO SOCIAL

São loucos os que querem igualdade
São loucos os que pedem justiça
São loucos os que exigem direitos cristalizados
São loucos os que empunham votos expostos
São loucos os que abrem as janelas do novo
São loucos os que aspergem contradições
São loucos os que gritam nas ruas
São loucos os que seduzem olhares, sentires
São loucos os que habitam praças declamando sonhos
São loucos os que assumem vergonhas próprias alhures
São loucos os que percorrem entranhas estranhas e vis
São loucos os que acreditam no todo social justo
São loucos os que expõem suas mazelas em nuvens
São loucos os que sustentam suas teses de paz
São loucos os que recusam moedas e guardam prazeres …

”Não há quem goste de ser número
Gente merece existir em prosa”

Zulmira de Sousa

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: cemitérios tradicionais mineiros que, invariavelmente, estão contíguos a igrejas.

Vídeos: Canal Bráulio Bessa

Viagens na bagagem VI

VAGÕES

Há como um compasso aberto
no traçado de certas rotas.
Toca-se ao extremo a superfície
apoia-se a ponta seca nos dormentes
eriçam-se os cordeiros
empina-se a fornalha
queima-se um fogo eterno
por bancos, poltronas , estribos, trilhos.

Vagões vagueiam por espaços etéreos
de estradas verticais qual pássaros audazes.
Há como uma geometria desconexa de espelho,
imagens se opõem ainda que as mesmas.

Há um mistério no sussurro lamento
do apito de um trem.

DAVID E O TREM

Nascera na Pensilvânia. Pai, engenheiro da área de extração. Mãe, de origem britânica, religiosa. Mudaram-se com o menino pequeno para São João Del-Rei, MG, com grandes perspectivas de enriquecimento.

David cresceu por aquelas regiões do entorno da ferrovia, sentindo o cheiro da fuligem nos ares. Sempre em devaneios, voejava com a fumaça dos trens, várias vezes aos dias. Caminhava solitário sobre os trilhos, sabia das horas em que viriam, namorava seus apitos anunciadores, e vez ou outra ia até a estação. Encantava-lhe o engenho da rotunda, a inversão de direção, as idas e vindas. Cresceu artista, talvez poeta, músico, pintor. Cresceu artista. Os pais nem se preocupavam com aquilo, acreditavam que mais cedo ou mais tarde regressariam definitivamente para os EUA.

O menino virou rapaz e, sempre com a perspectiva – como um anátema sobre a cabeça – de que retornariam ao solo americano, jamais se fixou em nada, em ninguém. Estava sempre de passagem, ficaria por um tempo apenas, depois partiria. Para onde? De onde? De quê? De tudo, de todos, de sempre. Criou-se nômade, cigano, sem raízes emocionais ou fixas, criou raízes em nuvens, que vagueiam por todos os ares, sob várias formas, dependendo de onde se olhe, do que se queira ver.

Assim, tornou-se cineasta. Naqueles tempos, homem idoso já, mais de 60 anos, voltou a São João Del-Rei a visitar seus caminhos. O eterno retorno. O perfume do chão, o colorido dos ares, a maciez dos trilhos, o soar das memórias nos apitos dos trens imaginários. Tudo ali.

Vídeo: ”Na segunda metade da década de 1970, o norte-americano David Corbitt passou pelo Brasil e registrou algumas ferrovias. Entre elas está a antiga “bitolinha”, remanescente da E. F. Oeste de Minas, mostrada como sobrevivente de uma era passada, ainda com uma tecnologia considerada arcaica. O registro, realizado em filme Super 8, mostra trechos de uma viagem entre São João del-Rei e Antônio Carlos (100km) e alguns takes da estação e pátio de São João, inclusive flagra a rotunda (demolida em 1973) e o depósito de locomotivas. Autor: David Corbitt (Sunday River Productions)”

UM  SÁBADO E UM RIO

Clareia a manhã, é o dia marcado na margem do rio. Um trem ruma ao largo do rio. Um céu se abre em plumas e faíscas ao curso do rio. Umas ilhas de areia no curso, uma ponte, uma estação, outra estação. O sol se abre maior, a tepidez das águas de longe escorre pelos vidros do vagão. Imagens conhecidas desconhecidas congeladas nas telas das retinas eclipsadas por marchas de trilhos. O rio gêmeo ao trem segue em pedras, seixos, plumas e, no céu, nuvens quentes perseguem os vagões, qual anjos de guarda a encaminhar fadas e tapetes voadores em naus de velas e ventos eclipsados de dor. Que cheguem rios, lagos, lagoas perpassando ramais secos e caminhos férteis por águas mínimas de flores campestres e árvores nativas. Não há tempos tardios, sempre é cedo que o dia começa e estará ao meio. Nenhum traço de chuva, tempestade, raio, trovão. O rio corre. O trem corre. A manhã corre. O dia ao meio chegando. A hora seguinte no rumo, no sumo, no prumo, na água corrente, na vida corrente, no cavalo encilhado, galopando serras de viúvas, de moças solteiras, de virgens em transe. O rio costeiro, a tralha na garupa do cavalo baio acompanhando o tropeiro de olhar incomum serranamente contemplativo. Rio que vive, que segue, que escorre, rio que vai, rio que encontra o mar ainda que tarde.

A série Viagens na bagagem nasceu de uma demanda de grupos do Facebook para compartilharmos fotos de viagens – visto que em tempos de pandemia estas se tornaram impossíveis. Como sempre conecto o que escrevo a uma imagem, a uma canção, resolvi dar voz e vez ao que vi e vivenciei – em viagens – nas minhas criações, e com tudo isso, portanto.

Poesia e narrativas: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: São João Del-Rei e Tiradentes

Vídeos:

1 e 3 – Canal erasmocarlosbr

2 – Canal Welber Santos