Faz 15 anos ganhei esse presente de um ex-namorado publicitário. Belchior desenhou 31 caricaturas do poeta em ” As Várias Caras de Drummond’‘. No verso de cada uma, 31 poemas de Drummond, que também foram musicados pelo artista.
Pretendo colocá-las todas em molduras e constituir aqui em casa uma parede só para meu pai-lírico Carlos Drummond de Andrade.
POEMAS DE DRUMMOND MUSICADOS POR BELCHIOR
CD 1: 1-Sentimental 2-Lagoa 3-Concerto 4-Cota zero 5-Liquidação 6-Perguntas em forma de cavalo-marinho 7-Quando desejos outros é que falam 8-Toada de amor 9-Lanterna Mágica 10-Orion 11-Poema que aconteceu 12-Também já fui brasileiro 13-O passarinho dela 14-Ar 15-Política literária 16-Poesia
CD 2: 1-A música barata 2-Arte poética 3-Os inocentes do Leblon 4-Quero me casar 5-Cidadezinha qualquer 6-Cantiguinha 7-Boca 8-Ainda que mal 9-Procuro uma alegria 10-Serenata 11-Nova canção do exílio 12-Sweet home 13-Rosa rosae 14-Mosaico de Manuel Bandeira 15-No banco de jardim
Miguel é bisneto de Drummond; repare nas semelhanças
SEMBLANTE
O rosto é o mesmo fino, oval, triangular?
Sei que é Drummond presente. Os dedos ágeis o sorriso meigo o ritmo no corpo inteiro. Concentração única encantamento melódico olhar lânguido.
Pianista de versos Poeta de melodias.
O MENINO QUE LEVITAVA
Ao clarear do dia o menino abria olhos arregalados De beber o mundo. Mas era pouco. Montava seu cavalo alado Como se dançasse com ele. Era doce o menino. E partia ao encontro de seus marimbondos de suas rãs e lagartixas. Morcegos eram como flores do campo.
A tarde tinha a estrela vésper sempre a sua espera E nela menino, cavalo e aventuras seguiam, bebendo cada folha, cada árvore, cada trilha. Mas era pouco.
Depois, pisar na água era um barulho celestial Era cócega Era música Era verso Era poesia.
Desmanchar rotas citadinas Mergulhar no escuro de grutas cavernas, barcos e estradas. Era pouco Porque o menino ria, ria, mas ria tanto, que de prazer levitava.
E de baixo, em terra firme, ninguém o alcançava E não era pouco !
DRUMMOND PERCORRE OURO PRETO
Um anjo barroco desceu nas montanhas fez ritmo e movimento. Pousado nas pedras, nos muros, decalca o pórtico da igreja enfeita com seus cabelos de anjo a paisagem estática empresta frescor aos versos de marílias e dirceus esculpidos nas calçadas
Apartamento no décimo andar. Luz fraca de abajur de mesa. Uma poltrona. Um copo de pinga, Uma garrafa pela metade. A vitrola repete, repete, repete. O vinil roda.
– Por quê? Por quê? Num tinha que ter dado trela, ter dado espaço. Porque sabia que ia dá desgraça. Num era mulé pra mim, eu já sabia. Aquele mel no ombro, aquele olhar de cerveja né, eu sabia.
Um gole a mais. A música acaba. A música repete. A pinga acaba. A pinga repete.
– Agora aonde é que ela foi, hem, onde é que ela tá? Sempre deixando pista, sempre mandando recado enviesado, sempre deixando aquele aroma dela por todo lugar pra chegar em mim. Eu sabia, ia dá tragédia.
Um , dois, três goles. Caminha até a janela, estica o olhar pro céu.Sai da janela, tira o vinil. Senta. Levanta. Põe de novo o vinil. Lambuza as mãos de paixão escorrida, derramada. Mais um gole. Levanta e chora.
– Onde andará aquela miserável? Deve estar com ele, aquele cubano comunista…. deve estar. E pensar que eu fiz tudo que ela quis, hem … o mínimo toque, eu ia, eu seguia, eu buscava, eu levava, eu trazia, eu voltava. Filha da puta. Com aquele aroma, aqueles cabelos, aqueles peitos redondos , falsos, mas verdadeiros de tocar, de beber, de comer, de sobremesear. Desgraçada. Mexia o tempero como ninguém.
Vai urinar. Demora. Volta. A pinga bebe. O vinil toca. O peito chora. O coração sangra e respinga na cama. Está jogado na cama. O copo de pinga tombado e vazio no lençol. O corpo vazio no lençol. A noite vazia no lençol.
– Desgraçada, filha da puta.
Dorme.
CORAÇÃO TRAIÇOEIRO
Recordações espremem limão na pinga Companheiros ouvintes de peito encharcado Narram loucuras e entregas Eu abandonei tudo por ela Saía da cidade, rodava mais de 500 quilômetros, mas um amor com uma estrada no meio tem seu valor, depois ela montava meu cavalo e galopava comigo por dias, sem tirar, sem reclamar só prazer.
Como num jogral afinado, o outro desfia Vivi perdido por meses no meio do mato, entre rio e mar, caminhadas de só nós, em pelos e mel, abandonei trabalho, família, cidade, mas valeu cada milhar de moedas deixado ali.
Pinga e choro. Alguém traz um cavaquinho, um violão Bebem Comem Iguais
São iguais
MULHER, TEM MUITAS
O cavaquinho derrete as cordas os dois se embebem de seus merecimentos Nada de chorar por mulher Mulher, tem muitas Ouvem as notas agradecidas nos dedos do amigo de copo e bar Mãos que sentem, diz um Mãos que machucam, desabafa o outro.
Olham ao redor Duas mulheres batucam o choro chorado na mesa Duas mulheres cochicham suas dores e mágoas Um pote de mágoas de zumbis, cobras venenosas, julietas, medeias, jocastas Doem suas dores nos copos esvaziados outros copos outras vozes outras vezes
Bebem.
LOUCURAS DE AMOR
– Não acredito? Você fez isso?
– Claro, juro. Fui de táxi. Não sabia endereço dele, nada. Fui. O taxista ia acompanhando a história, interessado, e torcendo que tudo desse certo. Mais de 350 km, 4 horas no táxi.
– Encontrou o Lúcio, afinal?
– Foram 3 dias e mil e quinhentos reais, 3 formas diferentes de transporte. Mas fui. Nenhuma referência, nenhuma pista, só atraída pelo cheiro do amor. Fui.
– Muita loucura a sua. Ou muita coragem.
– As noites eram quentes, o hotel fervia, as caipirinhas incendiavam meus passos. As ruas perambulavam em mim. O cheiro do amor me levava pelas calçadas. Sabia que estava perto, sabia que viria até mim, sabia que a trilha era aquela. Fui.
– Que força, que ligação, que atração, hem.
CHORO MOTRIZ
Uma noite outra noite um rosto, um resto uma rota sem volta sem farol, nem luz uma noite outra noite “amanhã é outro dia”
Bebe versos, mastiga pinga uma noite outra noite outro rosto outra noite outro rosto …
O pai matuto Alto Rio Doce na terra das mãos verde-claro, verde-escuro canto de canarinho-da-terra pelos ares cores de flores nos ventos perfumes de simplicidade sabe arar sabe semear sabe regar sabe colher sabe chupar laranja sentado no chão tem um canivete, tem um chapéu tem o céu todo em si enxerga a montanha com poesia namora o sol quente com poesia descansa com a estrela vésper pura poesia come arroz, feijão, couve, angu, linguiça bebe caldo-de-cana que fez na engenhoca na engenhoca que fez sozinho o engenho e a arte casados em si dorme às dez da noite o dia amanhã vai se duro, vamu durmi, gente sonha roçar aquele matão que cresceu levanta com o chamado do galo Ê, Minas ! Minas é maior que tudo, minha gente !
TERRA DE MINAS
Que bondade tem o garoto mineiro que ajuda a carregar embrulhos, mesmo sem precisão… Que prosaico é aquele cê bobo ao final das frases coloquiais … Que vontade é essa de ficar sentado na praça a tocar causos e prosas até o entardecer… Que permissivo é esse tom de confidência de quem jamais nos viu antes … Que adocicado é esse olhar de matutagem espalhado pelas calçadas … Que coisa caseira é essa que me enternece de água os olhos … Talvez seja encontro de sangue mineiro com sangue mineiro. Talvez seja um ponto de vista repleto de montanhas . Talvez seja essa vontade de encontrar o que uma vez se perdeu em mim.
FESTA NA ROÇA
O céu dormiu chovendo acordou sorrindo. Dia de festa na roça. Café adoçado com rapadura. Quitandas em potes Bolo de milho, bolo de mandioca, doce de leite, queijo de casa. Linguiças penduradas tinindo de frescas. Um anguzinho mole, sem sal pra ser comido com leite Dona Neuma me traz frango. E o quiabo fresquinho da horta, hem. Ouvem-se vozes ao longe. Ouvem-se conversas de décadas, relembradas, do primo de uns, dos tios de outros, da madrinha deles todos. Quem morreu na semana passada? Quem casou? Quem nasceu? Uns trazem as encomendas, outros trazem os braços e as mãos pra arrumação Outros trazem as palavras na voz a um aconselhamento . Risos doces e salgados de dança mineira no chão.
TEREZA, UMA CABOCLA ROMÂNTICA
“Viver é muito perigoso” (G. Rosa)
Era Tereza a morena cabocla mais feminina da região. Gostava de ouvir as modas nas rodas de noites, sentados irmãos, a parentada e os violeiros rasgando dores e saudades das amadas, das terras distantes, das esperanças perdidas, das traições de amigos, de mulheres … Tereza apreciava cada moda daquelas e era alimento pras suas carências e prazeres.
Deu que ali entre todos os que paravam na venda do seu Neco, agradou em demasia de um quase índio quase negro, meio assim de olhar matreiro e risada alta, voz de cantador. Tocava pouco da viola, menos ainda da rabeca, mas cantava. E inventava. Era bão de invencionices o tal. Pedia acompanhamento, “um dó maior”, “um si menor”, como se de muito entendesse ou tivesse estudado de cancionices. Era matreiro. Matreiro e bonito. Bonito e encantador de olhares também. Agradou de Tereza como nem. Agradou de suas pernas grossas, desde meninota eram assim. Agradou de seus seios fartos e empinados. Agradou de seu cabelo ondulado castanho-escuro e do seu olhar romântico pros versos que cantava nas noites de varanda, lá no seu Neco.
Fez que fez, dedicou que dedicou, com olhares e sorrisos, versos a ela, que Tereza entregou-se. Foi dele e de mais nenhum outro que vinha por aquelas bandas a se entornar viola pra ela. Disse pra cada amiga que tinha dono agora. Ele era seu. Nome não sabia, que todos o chamavam de Goiano apenas. Imaginava que fosse das bandas de Goiás então.
Passou a esperar por ele. Passou a gostar dele num tanto, que quem via achava que já houvera lhe dado os beijos, os abraços, os seios, as coxas e o ventre pra serem degustados a dois. Nonada. A Tereza era de matutar num tanto e esperou que ele se entregasse, falasse cara a cara o que dela queria, como é que seriam, pra onde é que iriam, se tudo ficaria daquele jeito mesmo – que bão era um tanto tamém. Aguardou.
Goiano, sempre pelas corrutelas e querências da vida, num vinha nem ia, empacava. Tereza querendo ir e vir, ir e vir, Goiano preferindo as casas de tolerância das vielas de vento forte, se abrigando em bocas alheias, cantando modas e tocando um nada de viola. Ora num cabaré, ora num lupanar, outra hora num bordel mais perfumado, dançando boleros e cochichando safadezas nas orelhas das mulheres amaciadas pelas estradas. Não havia uma zona dos entremeios em que Goiano nunca tivesse deitado em colcha de cetim grená. Era doido por pinga de qualidade, por boleros e permanências curtas. Gostava da alta rotatividade das picadas, das veredas e dos caminhos esquerdos da bandidagem parceira.
De costume assim enfileirado, o homem moreno acaboclado sentia falta por alguma vez de rever Tereza, de dedicar certo olhar religioso a ela, mas nunca deixava claro suas intenções, fossem quais. Não dava torcer nem braço, nem mão, nem boca, nem corpo pra Tereza se afeiçoar. Media distância, como se a moça fosse reservada pra um seiquê qualquer de pouco esclarecimento na sua cachola e no seu apaixonamento insistente.
Foi assim que foi.
Foi que Tereza amava aqueles braços de poesia e invencionices de rir e de chorar também.
Foi mesmo assim que um dia, levou Tereza pra dijunto dele, mas separado, de certeza.
Abandonava Tereza e ficava dias sem aparecer nem pra dar conta de um angu com feijão e couve, nem pra uma noite de suor com ela, nem mais pra uma viola, daquelas que tinham endoidecido Tereza antesmente. Foi ficando Tereza e seus doces olhos castanhos. Restando, restando.
Numa noite, chegou Goiano sem notícia dada antes.
Pegou Tereza e um cavaleiro tocando viola na sala pra ela. Era como se estivessem grudados de imã no olhar.
Matou.
(E mais não conto que conheci a cabocla Tereza e sei que sucedeu mesmo assim essa história)
FLORAÇÃO
Na rota, um porto Na reta, um ponto insípido inóspito infértil No tronco, uns galhos Nos galhos umas folhas secas opacas estéreis Alma no trajeto Curvas no caminho amargo Gotas de perfumes Pingos de cores Chuvas de flores fertilidade, sedução produção Poesia Caminhos doces então.
Pertinência: Faz frio na minha aldeia, 10º. Neblina aqui na minha serra faz os galos cantarem mais tarde. Penso eu que eles se apiedam dos homens da terra e estabelecem um acordo tácito para o início de sua sinfonia. São plácidos e pacíficos aqui na Serra das Vertentes, qual Plácido José e João Pacífico.
João Baptista da Silva – João Pacífico – nasceu em 1908 e faleceu em 1998, em SP Plácido José de Oliveira nasceu em 1917 e faleceu em 1993, em MG
BOAS-VINDAS Sua mãe e eu Seu irmão e eu E a mãe do seu irmão Meus irmãos e eu Minha mãe e eu E os pais da sua mãe E a irmã da sua mãe Lhe damos as boas-vindas Boas-vindas, boas-vindas Venha conhecer a vida Eu digo que ela é gostosa Tem o sol e tem a lua Tem o medo e tem a rosa Eu digo que ela é gostosa Tem a noite e tem o dia A poesia e tem a prosa Eu digo que ela é gostosa Tem a morte e tem o amor E tem o mote e tem a glosa Eu digo que ela é gostosa Eu digo que ela é gostosa Sua mãe e eu Seu irmão e eu E o irmão da sua mãe
FORÇA ESTRANHA Eu vi um menino correndo Eu vi o tempo brincando ao redor Do caminho daquele menino Eu pus os meus pés no riacho E acho que nunca os tirei O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei Eu vi a mulher preparando outra pessoa O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga A vida é amiga da arte É a parte que o sol me ensinou O sol que atravessa essa estrada que nunca passou Por isso uma força me leva a cantar Por isso essa força estranha Por isso é que eu canto, não posso parar Por isso essa voz tamanha Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece Aquele que conhece o jogo, do fogo das coisas que são É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos Estive no fundo de cada vontade encoberta E a coisa mais certa de todas as coisas Não vale um caminho sob o sol E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol Por isso uma força me leva a cantar Por isso essa força estranha Por isso é que eu canto, não posso parar Por isso essa voz tamanha Por isso uma força me leva a cantar Por isso essa força estranha, no ar Por isso é que eu canto, não posso parar Por isso essa voz tamanha
TODO HOMEM O sol, manhã de flor e sal E areia no batom Farol, saudades no varal Vermelho, azul, marrom Eu sou cordão umbilical Pra mim nunca tá bom E o sol queimando o meu jornal Minha voz, minha luz, meu som Todo homem precisa de uma mãe Todo homem precisa de uma mãe O céu, espuma de maçã Barriga, dois irmãos O meu cabelo negra lã Nariz, e rosto, e mãos O mel, a prata, o ouro e a rã Cabeça e coração E o céu se abre de manhã Me abrigo em colo, em chão Todo homem precisa de uma mãe Todo homem precisa de uma mãe Todo homem precisa de uma mãe Todo homem precisa de uma mãe
DEUSA DO AMOR Tudo fica mais bonito quando você está por perto Você me levou ao delírio por isso eu confesso Os seus beijos são ardentes Quando você se aproxima o meu corpo sente Os seus beijos são ardentes Quando você se aproxima o meu corpo sente Vem pra cá deusa do amor Vejam o bloco Olodum ao passar na avenida Todos cantando felizes de bem com a vida Caminhando lado a lado Formamos um belo casal somos dois namorados No suingue dessa banda Balança o mais forte alicerce que tem neste mundo O cupido me flechou Foi no bloco Olodum que encontrei meu amor Vem pra cá deusa do amor Vem me embalar, neném
O POVO DE UM LUGAR Todo dia o sol levanta E a gente canta Ao sol de todo dia Fim da tarde a terra cora E a gente chora Porque finda a tarde Quando a noite a lua mansa E a gente dança Venerando a noite Madrugada, um céu de estrelas E a gente dorme Sonhando com o dia UM TOM Um tom pra falar Um tom pra cantar Um tom pra dizer Um tom para a cor Um tom para o som Um tom para o ser Ah, como é bom dormir Ah, como é bom despertar O céu é mais aqui Um tom é um bom lugar Tanta coisa que cabe Tanta pode caber Canta e pode fazer cantar Nova felicidade Novo tudo de bom Deixa-se cantar um tom Um tom pra falar Um tom pra calar Um tom pra dizer Um tom para a voz Um tom para mim Um tom pra você Um Tom para todos nós Um Tom
DEDICATÓRIA: Para minha filha, a baianinha Carla, no dia do seu aniversário. A cada ano, nesse dia, sinto de novo você nascendo. Meu amor a você, minha filha.
Fotos de arquivo pessoal: orquídea que vem se abrindo a cada dia, e ainda tem botões a abrir, a cada ano …
Ama-se o amor Ama-se a busca do outro em si mesmo Ama-se um acordo de pensamento que batiza encontros Ama-se um gesto, um riso, um toque, um olhar Ama-se um jeito, um comportamento, uma capacidade Ama-se um cheiro, uma seiva, uma pele.
IDENTIDADES GARIMPADAS
Em meados dos anos 80, Ísis conheceu Antonio Carlos em uma reunião da categoria. A retomada do cinema tardava, e ele deleitava-se com seus curtas, meio documentários, docudramas, mas sem muitos recursos para voar. Inscrevia um ou outro em Festivais de Curtas, os exibia em Cinematecas, tudo muito cult. Era quase um hobby aquilo tudo. Nesse ponto conheceu Ísis. Os amigos lhe diziam que ela era a Eva do Adão. A mãe o batizara Adão. O pai Antonio Carlos autorizou o Toninho, como tratamento afetivo e familiar para Adão. Ficaram amigos.
Com a retomada do cinema nacional, Toninho seguiu em frente, criou uma produtora de vídeos, uniu-se a ONGs e continuou seu trabalho em defesa de matas, rios, lagos, indígenas … buscando conscientizar corações e mentes com suas produções. Ísis foi trabalhar com ele e sua pequenina equipe. Cabia a ela roteiros, incursões poéticas, elaboração dos planos de gravação. A admiração por ele era grande. Sempre se mostrando um homem simples, defensor da vida simples, da cultura nacional. Admirado por isso. Seguiram, e com a ECO92, por seus filmes, a produtora tornou-se bastante conhecida.
Logo foi convidado para produzir filmes publicitários. Depois, aderiu totalmente ao mercado publicitário. A sedução, sempre ela, fez com que Toninho, aquele Toninho, delegasse a produtora a outras mãos e olhos, e ele permanecesse apenas na publicidade. Ísis desligou-se da produtora. Ísis desligou-se dele.
Olhando pelo retrovisor, relia alguns dos bilhetinhos que ele lhe deixara no mural da sala de reuniões, no começo de outros tempos.
Uma poetisa
Sou um fã da super-craque no trato com as palavras.
Seus poemas sobre as águas – lagos, rios e cachoeiras […] dão um brilho extraordinário às cenas comuns do cotidiano.
Não sei expressar a emoção ao ser confrontado com a informação, que as minhas imagens em movimento podem provocar a imensa veia poética original, guardada para amadurecer e aflorar em sintonia com as batidas do coração da poderosa poetisa parceira” .
Sem mais saber o que dizer, com muito samba no pé, mando beijos pra ela.
[…]
Estou indo agora filmar umas orquídeas, só pro’cê. Contei do seu poema pro meu entrevistado, li pra ele, ele disse É, mesmo?
Apocalipse
A humana maldição, que recusa permitir ser a chama do inferno o único apelo que nos faz suar, toma conta de mim.
Refundarei o intercurso com a minha língua, e lamberei as cinzas do mundo nos seus pelos, quando o apocalipse vier em nós.
[…]
Sangue Saúl Dias
Versos escrevem-se depois de ter sofrido. O coração dita-os apressadamente. E a mão tremente quer fixar no papel os sons dispersos… É só com sangue que se escrevem versos.
Nos anos seguintes Toninho vencera o Prêmio Caboré de Publicidade. Ganhara muito dinheiro. Viajara muitas vezes aos E. Unidos. No Brasil, frequentava as praias mais badaladas da turma cult, de atores, atrizes, cantoras e passara a viver em outro mundo. Em outros mundos. Ísis perdera aquela admiração que tivera por ele. O homem simples, que gostava de gente simples, de viver de maneira simples, teria se revelado um blefe de ocasião, agora desmascarado pela sedução. Tudo que negara antes, agora era pactuado de forma doce e aceitável.
Nas idas e vindas aos E. Unidos fora indicado a prêmios. Depois o ápice, o maior deles em Cannes. Vencedor. Era um vencedor. Leonino, vencedor.
Das vezes em que a turma toda nos anos 90 se reunia no Bar do Alemão, para fomentar a discussão de uma sociedade mais justa e solidária, restaram as cadeiras, as mesas e os chorinhos, a MPB, as fotos nas paredes. Toninho ainda frequentaria aquele bar?
Ísis, estando na cidade, chegou cedo. Era sentar e esperar. Ouviu chorinhos. Relembrou tudo aquilo, riu, chorou. Alguém a viu por lá, mandou mensagem pra ele. Ela aguardou mais um pouco. As mesas iam se ocupando aos poucos. Numa segunda-feira …
Depois das 10, chegou Toninho com um amigo, que vinha abraçado a uma namorada.
COMPANHIA FÉRTIL
sabia ler meu peito sabia ler minhas mãos sabia ler meus seios sabia ler meus ombros sabia ler minha música sabia ler meu verso, minha rima sabia ler meus olhos sabia ler minha língua sabia ler meu querer sabia ler meus cotovelos sabia ler minhas pernas grossas sabia ler minhas vértebras todas sabia ler meus sucos internos inteiros sabia ler minha poção única e particular sabia ler meus doces e acres sabia me ler como nenhum outro me leu
CHEIROS
a boca aberta fala fala fala nervosismo ocasião
a boca aberta cala cala cala observa reflete percepção
a boca aberta a boca aberta a boca aberta contemplação
Pensou em ir como seria ir o que lhe esperaria no ir pensou em ir
o ponto final nas humilhações o ponto final nas comparações o ponto final no deboche daqueles familiares o ponto final no sarcasmo das postagens de Facebook o ponto final naqueles cabotinismos femininos o ponto final naqueles disfarces masculinos o ponto final em tantas horas de desespero o ponto final em tantas entregas e devoluções
pensou em ir como seria ir o que lhe esperaria no ir pensou em ir
a vez era aquela a voz não era mais a mesma o canto não era mais o mesmo a ironia, garça magra e esguia, se intensificava a cada hora empurrando, atingindo, dando-lhe rasteiras a cada hora idêntica à da imagem exposta a cada hora idêntica a lagos, montes, rios, mar
pensou em ir posicionou-se no precipício urbano contemplou o fim o ponto final.
Pertinência: Os cancionistas muitas vezes superam os poetas sem acordes musicais.
Gosto de poesia cantada, fico aqui ouvindo-os cantar pra mim, como numa serenata que se pode fazer de manhã, à tarde e à noite.
Em cada período de minha vida – e creio que da de todos – houve sempre uma trilha sonora que insistia em tocar, tocar, tocar.
Quando a gente ouve anos depois aquelas canções, fica assim sensibilizada, mas muito mais pela lembrança da época e do que se sentiu naquele momento do que propriamente pela saudade ou pela vontade de que aquilo volte a acontecer.
Tudo que vem na estrada pode ser ainda muito melhor, basta que haja estrada.
No domingo, assistindo à live do Eduardo Gudin, lembrei que tinha essas fotos.
“Os outros eu conheci por ocioso acaso. A ti vim encontrar porque era preciso” – Guimarães Rosa
”O que corre no rio, na verdade, é a esperança de um povo, a resistência de um povo, que sabe conviver com as dificuldades e ainda faz poesia com essas dificuldades”
RIO DE POESIA
encharca, rio derrama, rio viceja sua poesia sobre as almas resistentes sobre os corpos resistentes inunda com suas águas a lira da glosa a lira do verso ensina e aprende cordel e desafio por tuas margens dá mote ao mundo faz todos beberem poesia em tuas águas Salve, salve, Pajeú pernambucano em brasilidade rio ritmo rima rica água dos sertões
Encharque-se de motes e glosas. Uma aula mágica para quem quer ser POETA e beber poesia. Assista.
Encante-se.
”O documentário, que teve como propósito realizar o trajeto físico do Pajeú, indo da nascente, em Brejinho, ao encontro com São Francisco, em Floresta, contou com 30 personagens do ramo cultural, percorrendo 14 cidades pernambucanas. Um dos personagens e também fio condutor da narrativa, o poeta Antônio Marinho, apresenta aos espectadores, de forma intimista, a história do que corta o Sertão de Pernambuco: “A poesia do Pajeú sempre é bem recepcionada em qualquer linguagem colocada ao público. O Pajeú está vivendo um momento mágico das expressões culturais. Sem dúvidas, o documentário é mais um olhar para poesia do Pajeú”.
Está aí? É você? Tem sílabas outras nas frases e com elas rasga os ouvidos ? Tem a melodia das vozes e sentidos fora dos sentidos ? Pinta telas coloridas e ao mesmo tempo faz sangrar uma artéria ? Faz-se desjejum e ceia em um calendário invulgar ? Percorre ritmos, auras e horas com a mesma destreza ? Brinca de não sentir fazendo-se sentir e notar ? Enquadra-se no desenquadrado esporte do não ser ? Então é você, o incomum.
RAÍZES DE HOMENS
Há certos homens que têm caules vigorosos. São eles que semeiam a terra afagam sementes exalam perfumes de flores recolhem os frutos doces.
Há certos homens que encostam as mãos na terra a fortificam com seus dedos ásperos a revolvem com palmas ardentes a fertilizam com braços seguros.
Há certos homens que têm raízes em lugar de pés, fincam-se inexoravelmente.
NARCISO
Quem é você Narciso que encontro na vereda da minha salvação atropeladamente bruscamente impactantemente?
Quem é você Narciso que abraço nas águas como se fora um sertão embriagadamente ingenuamente instantaneamente?
Quem é você Narciso que me entontece de intrigas em um torvelinho de dores flores amores tropegamente bastardamente inominadamente?
Quem é você Narciso que me acaricia e me chicoteia com o mesmo rigor nas manhãs tardes noites e madrugadas em meus lagos rios e cachoeiras?
Revele-se Quem é você Narciso?
RECORTES LÍRICOS
Soubesses, oh anjo de mim, sentir-me os perfumes calar-me a voz beber-me de cores sugar-me de flores desenhar-me a pele cegamente embrenhar-me de néctares emprenhar-me de meles simples Soubesses tu que cor têm meus medos têm meus segredos têm meus degredos Soubesses tu de meus recortes de florestas de rios de cachoeiras de serras Soubesses tu, anjo de mim, da colagem de meus cacos do desenho dos meus músculos do brilho dos meus olhos do verniz na minha imagem interna mosaicos Soubesses tu …
AOS CACOS
Ah, como te amo, meu pássaro encantado Ah, como te espero vir em asas ao parapeito da janela Ah, como te vejo ir, pousar levantar voo com a mais bela asa morena carregá-la no bico aos plenilúnios todas as vezes todos os meses todos os anos Ah, ser alado, de nada adiantariam meus ais meus sopros e rogos preferes a ela todos as vezes todos os meses todos os anos Carregas no bico acepipes que lhe gotejas nos lábios Fazes teu canto para que ela te responda Ela corresponde Com ela voas beirando as veredas Com ela semeias torvelinhos de ilusões E quando a devolves ao porto de origem todas as vezes todos os meses todos os anos retornas ao ninho cabisbaixo, taciturno, poético E assim segues levando no bico a vida, as luas, as ruas, as brumas todas as vezes todos os meses todos os anos
ERA UM SER EM RETALHOS
Conheci-o frágil, principiante fortaleci-o fortaleceu-me fortalecemo-nos Pedacinho a pedacinho dia por dia ano a ano formamos um rico painel desenhado por suores e dores adornado de admirações mútuas cristalizado por sensações tantas enraizado pela terra-mãe fincado no sal, no sol, no sim multiplicidades Mosaicos de nós
UM BEIJO E UM QUEIJO
Desceu correndo as escadas, arrumou os seios no sutiã, bonito.
Ajeitou os cabelos, curtos. Viu-se, mesmo sem espelho, jovem.
Abriu-lhe a porta. Abriu-lhe o sorriso. Abriu-lhe o colo regaço.
Quedou a nuca, lentamente, em sua direção.
Entregou-lhe a face colando-a à sua. Roçou-lhe as orelhas com os cílios. Afagou-lhe o nariz com seu aroma. Fechou-lhe os olhos com duas lambidas.
Embebeu-se do ópio momentâneo. Abriu-lhe os lábios, sem palavra alguma, acariciou-os com os dedos.
Abriu-se em paladar, naquele beijo.
AOS HOMENS QUE AMEI
Dos começos dos meios e dos fins luas cheias taças cheias copos cheios versos cheios gozos gritos vozes e lágrimas rumos ruínas dias de sol tardes de brisas corpos em peles nuas corpos em carnes vivas bocas e dentes mãos e rasgos engasgos e sussurros doces vezes doces vozes espasmos de prazer toques de rostos pernas em passos unidos abraços de risos bêbados debates de sonhos querelas de utopias brigas de portas sonoras pazes de suspiros generosos amores amores amores
Um excelente texto sobre as sensações do distanciamento social: “O que a quarentena nos rouba? Inventário de saudades e perdas íntimas”
“Se números frios não tocam a gente, espero que nomes consigam tocar”.
CARPIDEIRAS
choro eu chora você a dor é sua a dor é minha lágrimas engrossam a cada dia números avolumam-se a cada dia vozes se calam a cada dia
choro eu chora você a dor é sua a dor é minha o assalto à mão armada da bolsa do bolso da vida da alma em sossego
choro eu chora você a dor é sua a dor é minha a cruz na estrada a flor no túmulo a tumba cheia a cova rasa a imagem tatuada na pele a ferro e fogo
choro eu chora você a dor é sua a dor é minha um rol de corpos um rol de ossos um rol de despedidas lidas tidas havidas
Há vidas?
ESPECTRO SOCIAL
São loucos os que querem igualdade São loucos os que pedem justiça São loucos os que exigem direitos cristalizados São loucos os que empunham votos expostos São loucos os que abrem as janelas do novo São loucos os que aspergem contradições São loucos os que gritam nas ruas São loucos os que seduzem olhares, sentires São loucos os que habitam praças declamando sonhos São loucos os que assumem vergonhas próprias alhures São loucos os que percorrem entranhas estranhas e vis São loucos os que acreditam no todo social justo São loucos os que expõem suas mazelas em nuvens São loucos os que sustentam suas teses de paz São loucos os que recusam moedas e guardam prazeres …
”Não há quem goste de ser número Gente merece existir em prosa” Zulmira de Sousa
Poesias: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal: cemitérios tradicionais mineiros que, invariavelmente, estão contíguos a igrejas.
Há como um compasso aberto no traçado de certas rotas. Toca-se ao extremo a superfície apoia-se a ponta seca nos dormentes eriçam-se os cordeiros empina-se a fornalha queima-se um fogo eterno por bancos, poltronas , estribos, trilhos.
Vagões vagueiam por espaços etéreos de estradas verticais qual pássaros audazes. Há como uma geometria desconexa de espelho, imagens se opõem ainda que as mesmas.
Há um mistério no sussurro lamento do apito de um trem.
DAVID E O TREM
Nascera na Pensilvânia. Pai, engenheiro da área de extração. Mãe, de origem britânica, religiosa. Mudaram-se com o menino pequeno para São João Del-Rei, MG, com grandes perspectivas de enriquecimento.
David cresceu por aquelas regiões do entorno da ferrovia, sentindo o cheiro da fuligem nos ares. Sempre em devaneios, voejava com a fumaça dos trens, várias vezes aos dias. Caminhava solitário sobre os trilhos, sabia das horas em que viriam, namorava seus apitos anunciadores, e vez ou outra ia até a estação. Encantava-lhe o engenho da rotunda, a inversão de direção, as idas e vindas. Cresceu artista, talvez poeta, músico, pintor. Cresceu artista. Os pais nem se preocupavam com aquilo, acreditavam que mais cedo ou mais tarde regressariam definitivamente para os EUA.
O menino virou rapaz e, sempre com a perspectiva – como um anátema sobre a cabeça – de que retornariam ao solo americano, jamais se fixou em nada, em ninguém. Estava sempre de passagem, ficaria por um tempo apenas, depois partiria. Para onde? De onde? De quê? De tudo, de todos, de sempre. Criou-se nômade, cigano, sem raízes emocionais ou fixas, criou raízes em nuvens, que vagueiam por todos os ares, sob várias formas, dependendo de onde se olhe, do que se queira ver.
Assim, tornou-se cineasta. Naqueles tempos, homem idoso já, mais de 60 anos, voltou a São João Del-Rei a visitar seus caminhos. O eterno retorno. O perfume do chão, o colorido dos ares, a maciez dos trilhos, o soar das memórias nos apitos dos trens imaginários. Tudo ali.
UM SÁBADO E UM RIO
Clareia a manhã, é o dia marcado na margem do rio. Um trem ruma ao largo do rio. Um céu se abre em plumas e faíscas ao curso do rio. Umas ilhas de areia no curso, uma ponte, uma estação, outra estação. O sol se abre maior, a tepidez das águas de longe escorre pelos vidros do vagão. Imagens conhecidas desconhecidas congeladas nas telas das retinas eclipsadas por marchas de trilhos. O rio gêmeo ao trem segue em pedras, seixos, plumas e, no céu, nuvens quentes perseguem os vagões, qual anjos de guarda a encaminhar fadas e tapetes voadores em naus de velas e ventos eclipsados de dor. Que cheguem rios, lagos, lagoas perpassando ramais secos e caminhos férteis por águas mínimas de flores campestres e árvores nativas. Não há tempos tardios, sempre é cedo que o dia começa e estará ao meio. Nenhum traço de chuva, tempestade, raio, trovão. O rio corre. O trem corre. A manhã corre. O dia ao meio chegando. A hora seguinte no rumo, no sumo, no prumo, na água corrente, na vida corrente, no cavalo encilhado, galopando serras de viúvas, de moças solteiras, de virgens em transe. O rio costeiro, a tralha na garupa do cavalo baio acompanhando o tropeiro de olhar incomum serranamente contemplativo. Rio que vive, que segue, que escorre, rio que vai, rio que encontra o mar ainda que tarde.
A série Viagens na bagagem nasceu de uma demanda de grupos do Facebook para compartilharmos fotos de viagens – visto que em tempos de pandemia estas se tornaram impossíveis. Como sempre conecto o que escrevo a uma imagem, a uma canção, resolvi dar voz e vez ao que vi e vivenciei – em viagens – nas minhas criações, e com tudo isso, portanto.
Poesia e narrativas: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal: São João Del-Rei e Tiradentes