Mãos de afeto

Trabalhei com meus alunos do ensino fundamental, durante anos, as crônicas desse livrinho de 59 páginas apenas. Recriaram histórias, criaram as suas próprias, desenharam, representaram e, sobretudo, leram Cecília Meireles e se humanizaram um pouco mais.

Uma gatinha branca

 Cecília Meireles

Ao escurecer, os garotos estavam sentados à  beira da calçada, com certo ar de remorso. Um deles, com uma varinha na mão, revolvia o pelo branco da gatinha, deitada de flanco, muito triste, com uma expressão de criatura humana. Por baixo do pelo espesso, via-se-lhe a pele do ventre, ainda clara e um pouco flácida. Estavam calados e um pouco pensativos. Alguns olhavam para a morte pela primeira vez.

As meninas haviam protestado em vão. Os garotos riam-se delas. Por fim, fugiram para casa, fizeram queixa às mães,

Tudo começara dias atrás, quando a bela gatinha branca fizera a sua aparição no alto da rua. Não se sabia de onde vinha, se tinha donos, por que passava por ali. As meninas encantaram-se com ela. Tão macia! Tão vagarosa! Parava. Olhava. Quase se imaginava que sorria. Depois continuava o seu caminho. O que via, quem pode saber? Parecia uma princesinha das histórias contadas, toda vestida de arminho, a passear pelo seu reino de flores. Caminhava sobre as folhas secas com tal brandura que não deixava ruído. Entrava pela sombra como nuvem branca em nuvem cinzenta. Seus passos de seda ensurdeciam nas pedras, no cimento, nos tijolos dos muros. Ela mesma, quando parava, parecia procurar-se no seu silêncio, redondo como uma circunferência. Se às vezes elevava um tênue miado, era como um vago bocejo.

Por todos esses motivos, as meninas a amavam e queriam acariciá-la. As mães diziam que era gata de raça; toda branca, toda branca e de olhos vagamente azuis, como duas flores molhadas de orvalho. Mas ao chegarem perto dela, as meninas ficavam um pouco inibidas. Podiam ser arranhadas; pois até onde iria a sua brandura? Ela poderia, também, fugir… Assim, aproximavam-se de mansinho. fazendo psi-psi-psi, com medo de assustá-la. Mas a gatinha não se assustava: detinha-se, ao mesmo tempo curiosa e alheia, esperava delicadamente, e se mesmo quando alguma das meninas se abaixava, para tomá-la nos braços, encolhia-se, toda em pelúcia, e procurava escapar, mas sem nenhuma agressividade. Por duas ou três vezes conseguiram acariciar-lhe a cabeça e viram de perto como eram luminosos os seus olhos, róseo e cetinoso o seu breve focinho e, as suas orelhas, aveludadas. Ofereciam-lhe pedacinhos de pão-de-ló, biscoitos, que ela apanhava no ar, com muita suavidade. E depois desaparecia, mergulhando nas sebes floridas, atravessando cercas e grades, por sucessivos jardins e quintais.

Mas, enquanto as meninas assim a acompanhavam, com olhares maternais, e procuravam todos os dias descobrir de onde vinha, a quem pertencia, e se teria filhotes (pois só pelos seus modos se via que era uma gatinha), os garotos dispunham-se para uma ação de guerra, aparelhando-se com pedras e estilingues para a destroçarem. Quando as meninas souberam disso, protestaram, ameaçaram; as irmãs foram contra os irmãos, arrancaram-lhes as malvadas armas, acusaram-nos na escola e em casa, mas os rapazes apenas baixavam os olhos, talvez para não se descobrir neles o propósito formal do sonhado crime.

Como o crime aconteceu, as meninas não viram. Viram apenas a gatinha morta, com o focinho rebentado e manchas feias no alvo pelo, tão longo, tão sedoso, tão fofo. Gata de raça – tinham ouvido dizer dos mais velhos. Não quiseram ver mais nada. Fugiram para as suas casas, cheias de lágrimas, desesperadas, agarraram-se às mães, sacudindo-as, como na esperança de que elas pudessem ressuscitar a gatinha branca. As mães chegaram às janelas, nos portões – mas não viram nada, porque a gatinha estava do outro lado, depois da esquina. Comentaram, porém, tamanha maldade. Quem fizera aquilo? Por quê? POR QUÊ? As meninas desabafavam-se em explicações de defesa: uma gatinha tão bonita, tão mansa, que nunca arranhou ninguém, que não roubava nada, nem miava, nem fazia barulho… Aparecia, passava, não entrava era casa nenhuma… E de raça! De olhos azuis, toda branca! Teria sido por isso mesmo que a mataram? Por ser diferente? Não fizeram nada aos gatos que se atiravam aos cestos dos peixeiros e aos embrulhos dos açougueiros, sujos, arrepiados, vorazes, com miados ensurdecedores! Ah!

Por muito tempo as meninas ficaram de mal com os meninos e nem se atreviam a perguntar-lhes por que tinham matado a gatinha. POR QUÊ? Os meninos não fizeram caso dessa zanga. Passavam ufanos, de cabeça levantada, numa demonstração de forca bastante insolente, como se bradassem: “Somos homens! Fazemos o que queremos! Já sabemos até matar!” As meninas entendiam.

Isso, porém, foi depois. Naquela tarde, os garotos, sentados à beira da calçada, contemplavam a sua obra, que era aquela incompreensível destruição. (Uma gatinha de raça. Toda branca. Sem mancha alguma. Tão gentil! Com aqueles modos tão finos! Sem molestar jamais ninguém! Como nascera aquele ódio? Como se formara aquele crime?) Estavam sentados à beira da calçada, mergulhados num mutismo bruto, como se todos fossem um só, numa cumplicidade obscura. E a noção da sua perversidade devia pesar-lhes no coração como uma grande pedra negra.

(Um deles, como para distrair-se, mexia com urna varinha no pelo branco da gatinha morta. E de certo modo parecia que automaticamente a acariciava.)

O fim do mundo

Cecília Meireles

A primeira vez que ouvi falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém, vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto temiam.


Nada disso se entendia comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.

Mas, uma noite, levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me causava medo nenhum.

Ora, o cometa desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou, talvez eu tenha ficado um pouco triste – mas que importância tem a tristeza das crianças?

Passou-se muito tempo. Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver um sentido do mundo peculiar a cada um.

Dizem que o mundo termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela noite já muito antiga.

O mundo vai acabar, e certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos – além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas. Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.

Se o fim do mundo for mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver da maneira mais digna.

Em muitos pontos da terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus – dono de todos os mundos – que trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira mortal. Há mesmo alguns místicos – segundo leio – que, na Índia, lançam flores ao fogo, num rito de adoração.

Enquanto isso, os planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos posições que não temos – insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade total.

Ainda há uns dias a reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês…

O fim do mundo

 Carlos Drummond de Andrade

Não se sabe ainda se o mundo acabou realmente no sábado, como fora anunciado. Pode ser que sim, e não seria a primeira vez que isso acontece. A falta de sinais estrondosos e visíveis não é prova bastante da continuação. Muitas vezes o mundo acaba em silêncio, ou fazendo um barulho leve de folha.

Tempos depois é que se percebe, mas já estamos vivendo em outro mundo, com sua estrutura e seus regulamentos próprios, e ninguém leva lenço aos olhos pelo falecido.


O mundo primitivo dos répteis, o mundo neolítico, o egípcio, o persa, o grego, o romano, o maia… todos esses acabaram, e muitos outros ainda. A história é cemitério de mundos, notando-se que uns tantos acabaram de morte tão acabada que nem sequer figuram lá com uma tabuleta; não se sabe que fim levaram as cinzas.


Pessoas que aí estão vivas assistiram à morte do mundo em agosto de 1914, mas estavam lendo jornal e não compreenderam no momento. Era apenas mais uma guerra na Europa, mas acabou com a belle époque, a douceur de vivre, a respeitabilidade vitoriana, o franco, a supremacia da libra, os suspensórios, o rapé, os conceitos econômicos, políticos e éticos do século XIX – mundo que parecia eterno. Pedaços dele andam por aí, vagando, como o colonialismo, a opressão de grupos financeiros, a servidão civil da mulher, mas pertencem a um contexto liquidado, rabo de lagartixa vibrando depois que o corpo foi abatido.


É possível que a previsão dos astrólogos indianos não tivesse base, e que o mundo atual dure muitos anos. Acredito mesmo que é cedo para ele morrer, se apenas está nascendo, e nem sabe ao certo como é ou será.


Aos sete anos de idade imaginei que ia presenciar a morte do mundo, ou antes, que morreria com ele. Um cometa mal-humorado visitava o espaço. Em certo dia de 1910, sua cauda tocaria a Terra; não haveria mais aula de aritmética, nem missa de domingo, nem obediência aos mais velhos. Essas perspectivas eram boas. Mas também não haveria mais geleia, Tico-Tico, a árvore de moedas que um padrinho surrealista preparava para o afilhado que ia visitá-lo. Ideias que aborreciam. Havia ainda a angústia da morte, o tranco final, com a cidade inteira (e a cidade, para o menino, era o mundo) se despedaçando – mas isso, afinal, seria um espetáculo. Preparei-me para morrer, com terror e curiosidade.


O que aconteceu à noite foi maravilhoso. O cometa Halley apareceu mais nítido, mais denso de luz e airosamente deslizou sobre nossas cabeças sem dar confiança de exterminar-nos. No ar frio, o véu dourado baixou ao vale, tornando irreal o contorno dos sobrados, da igreja, das montanhas. Saíamos para a rua banhados de ouro, magníficos e esquecidos da morte, que não houve. Nunca mais houve cometa igual, assim terrível, desdenhoso e belo. O rabo dele media… Como posso referir em escala métrica as proporções de uma escultura de luz, esguia e estelar, que fosforeja sobre a infância inteira? No dia seguinte, todos se cumprimentavam satisfeitos, a passagem do cometa fizera a vida mais bonita. Havíamos armazenado uma lembrança para gerações vindouras que não teriam a felicidade de conhecer o Halley, pois ele se dá ao luxo de aparecer só uma vez cada 76 anos.
Nem todas as concepções de fim material do mundo terão a magnificência desta que liga a desintegração da Terra ao choque com a cabeleira luminosa de um astro. Concepção antiquada, concordo. Admitia a liquidação do nosso planeta como uma tragédia cósmica que o homem não tinha poder de evitar. Hoje, o excitante é imaginar a possibilidade dessa destruição por obra e graça do homem. A Terra e os cometas devem ter medo de nós.(1962)

Subjetividades e objetividades: As narrativas de Cecília Meireles são repletas de descrições subjetivas, sensoriais, emotivas. Por outro lado, Drummond apresenta uma abordagem mais objetiva, até mais irônica, quase jornalística, em suas crônicas (sobre o mesmo tema, inclusive). Os textos de Tríccia Araujo e de Sandro Ernesto, blogueiros aqui no WordPress, também registram essas diferenças. Que bom.

Textos :

Uma gatinha branca, em Janela Mágica, Cecília Meireles, Ed. Moderna, SP

O fim do mundo, em Giroflê, Giroflá, Ed. Global, SP

O fim do mundo, em A bolsa e a vida, Ed. Record, RJ

Imagens dos autores retiradas da Internet.

Vídeo: Canal Gravadora Cid

Amigos do peito (Ou não)

REFLEXÕES, FLEXÕES, INFLEXÕES: ”Enquanto engomo a calça”já cantava Ednardo – vou no ferro de passar e refletindo (além do momento de molhar as plantas com a mangueira, o esguicho, essa é a melhor hora para pensar). Amigos, às vezes, são venenos em pequenos frascos. Podem ser até de forma inconsciente, mas são.

MERGULHO
Sentada, a luz de Narciso me suga
Interpreto o mais e o menos
Mergulho no líquido
Mergulho no sólido
E é etéreo e gasoso.
De pé, caminho sobre tábuas
de mandamentos pagãos.
Tudo em frente, tudo ali
E é etéreo e gasoso.
Mergulho entregue
Sem nadadeiras
Sem asas
Nem redes de proteção.
Mergulho no risco de Narciso, então.

NÃO SE EXPLICA
– É porque não te conhece. Tá faltando pele nisso.
– Nada, os interesses são outros, compreendi logo.
– Mas é uma pena, uma parceria tão produtiva, tantas identidades, tantas sensibilidades semelhantes.
– Você diz isso porque eu te conto, Júlio.
– Não é verdade. Leio, vejo, tiro minhas conclusões como HOMEM, mas com H maiúsculo, né. Pode ter certeza disso.
– Nada. A vida arma ciladas, impõe decisões, derruba pedregulhos no meio das picadas. É assim. Não é fatalismo. É assim.
– Mas creio que você desistiu muito facilmente, mulher. Por que não tentou mais, não se apresentou.
– Ora, ora, Júlio, um pouco de amor próprio é importante, né, cara. Fui, vi e perdi. Bastou.
– Mas parece que esse homem não conhece o enredo todo, só alguns capítulos e colocou ponto final num desfecho surreal. Não foi assim?
– Não, não foi. Tenho endereço, telefone, sou transparente o suficiente. Não perco minha dignidade, não corro atrás, não forço barras. O que acontece acontece e pronto.
– Insisto. Era uma cumplicidade exemplar tanto nas ideias quanto na produção. Isso não se despreza, não se abandona. É rico.
– Talvez para quem observe. Não para ele. Triste, muito triste, Júlio.

DEUS ME LIVRE DE AMOR ASSIM !
– Mas ele fez isso? É um ogro!
Eu deletava, eliminava. A gente se ilude. Esse tipo de homem só engana as mulheres, faz tudo pra conquistar e depois quer distância. Jamais aceitei isso. Só cai quem quer.
– Você acha isso mesmo?
– Ora se é. Eles gostam de levar os casos pra lugares distantes, escondidos, aqui mesmo pra dentro da BR tem muito restaurante escondido. De vez em quando um irmão meu, um primo se amoita com uma dessas ocultadas por lá. Depois desovam seus corpos bem longe. Pra não dar confusão. Comigo isso nunca colou.
– Mas você nunca sofreu por amor? Então nunca se apaixonou.
– Gostava, mas ficar assim sofrendo por causa de homem, porque eles estavam com outras, chorando? Nunca.
– Amor tem sempre dores. Os poetas, os compositores sempre relataram isso, você sabe, né?
– Mas porque tem otária que ouve e fica se remoendo, sofrendo, achando que não é bem assim, que eles gostam é delas, que com elas é diferente. Gostam de se iludir. Por quê?
– Você acha que é assim, então. Não quero me apaixonar, não vou me apaixonar. Se eu me apaixonar, me desapaixono facilmente e pronto?
– Claro que é assim. Tem tanta coisa na vida pra se fazer que não seja ficar sofrendo por um homem, meu Deus do céu. Ô atraso de vida !
– Esse mil folhas do Alemão é uma delícia, né. Vamos pegar a estrada, senão vai ficar tarde. Já vi que você é contra as paixões, os enamoramentos, as dores de amores, né.
– Claro que sou. Homem quando quer não fica enrolando não. Vai lá, se interessa, toma uma atitude, não fica nesse chove não molha, resolve e procura a mulher que lhe interessa. Se não faz isso é porque não quer. Tem outra melhor pra ele, em melhores
condições, mais nova, mais dócil. Não quer dor de cabeça. Quer tudo simples, se for pra ter encrenca, cai fora. Homem é desse jeito.
– Até esse, que você nem conheceu, Márcia?
– Não conheci pessoalmente, mas venho só analisando, filmando o cara, como dizem. É um típico exemplar disso que te falei. Não duvide.
– Sua objetividade me espanta. Somos muito diferentes.
– Desculpe, mas eu te acho tonta demais, ingênua demais.
– Vamos pagar os doces, então?

O VIZINHO DE PORTA DO NONO ANDAR

Sabia que cantava num Orfeão respeitado. Sabia que era da área jurídica. Tudo isso porque o porteiro lhe contara. Sem sequer perguntar, apenas porque fora devolver correspondências erradas entregues em seu apartamento. Chamava-se Lúcio Cravo.
Depois, tornaram-se amigos, quer dizer, Silvinha acreditava que fossem. Por morarem sozinhos, terem gostos parecidos, passaram a se fazer companhia. Ela jamais lhe perguntara nada sobre seus amores e predileções. Era apenas uma boa companhia para cinema, teatro, récitas …
Ocorre que Silvinha passou a confidenciar-lhe mais do que devia – a confiar-lhe mais do que podia – as suas questões de coração. Notava que ele era sempre evasivo, sem dar apoio a seus amores relatados, nem aos mortos nem aos vivos. Estranhava. Parecia incomodar-se com suas narrativas. Era apenas desdém ou certa inveja?
Passou a menosprezar as dores da amiga, debochar mesmo, rir-se de seus sofrimentos, como se aquilo fosse algo de uma louca, de uma mulher infantil, iludida. Até o momento em que Silvinha parou e refletiu sobre aquilo tudo. Estaria ele enciumado por jamais ter tido uma mulher que o amasse naquela dimensão? Estaria diminuindo os sentires femininos? Logo ele, um amante de óperas, de valsas, canções, tangos e de boleros? Então aquelas canções e enredos seriam todos falsos? Ou o falso era ele?
Caiu fora. Aquilo lhe fazia muito mal. De amigo, tornou-se um rival, um opositor. Por quê? Não conseguia entender. Caiu fora.

CHEGANDO AO FIM
Nada importam cascas e capas
Nada importam tecidos e chapéus
Nada importam apupos e rapapés
Essencial é a alegria
Essencial é a simplicidade
Essencial é a cumplicidade.
Essencial é a bondade.
Os bolsos seguirão sem moedas
As mãos seguirão sem anéis
Os ombros seguirão sem afagos
As pernas seguirão sem apoios.
As últimas estações
não podem ser vias sacras.
As últimas estações devem ser leves, francas e ternas.
Se a vida é um sopro,
há que se encontrar
quem a assopre com ternura.

Poesia e textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

Canal Biscoito Fino

Histórias de vida

OUVINDO HISTÓRIAS
Gosto de ouvir histórias. Aprendo sentimentos, ouço borbulhas diferentes das minhas. Acato opiniões, sem querer impor ou seduzir os outros com as minhas.
A par disso, aprendi por aí o que é autoestima. Vejo muitas pessoas que se arrastam literalmente aos pés de outras, implorando um carinho, uma atenção, umas poucas palavras … tamanha a sua baixa autoestima. Percebo que quanto maior a superioridade apresentada no varejo, maior é a inferioridade revelada em si mesmo, no atacado.
Assim, constato isso entre elementos de uma família, em componentes de um grupo qualquer (igreja, clube, partido político, associação de classe), entre uma mulher e um homem … muitas são as ações às quais a baixa autoestima conduz. Muitas dessas pessoas sequer percebem que estão nesse patamar de mendicância – sabe-se que cada um está em um estágio de evolução comportamental, social, afetiva etc., pois. Mas é flagrante o contentamento de alguns com migalhas jogadas ao chão, qual pedrinhas de joão e maria a serem seguidas.
Todos têm um valor único, intransferível, cabe conhecer qual é … e seguir. A meu ver, não se trata de ser humilde, altruísta ou generoso. Até porque muitas vezes esses atributos são pequenas máscaras, disfarces nos seres humanos. Há que se sentir a essência mais do que a aparência dos seres. Todos temos raiva, temos momentos de ira até, somos egoístas e lutamos, de verdade, para sermos felizes. Não importa quanto tempo isso vai durar ou se vai se modificar depois.
Confesso que muitas vezes sinto-me envergonhada com certas posturas nos seres humanos. Nesses momentos não consigo ter a celebrada compaixão budista. Tenho vontade de sacudir pelos ombros joões, sebastiões e beneditas e fazê-los acordar. Mas cada um tem seu tempo para amadurecer e seguir. Até eu mesma também.

Aqui no blog, há 2 categorias com narrativas:

“Escutadora de histórias de mulheres”

https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/escutadora-de-historias-de-mulheres/

“Escutador de histórias de amor”

https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/escutador-de-historias-de-amor/

OBSERVAÇÃO: Faz muitos e muitos anos que escrevo. Desde muito cedo, leitores sempre me pediram que publicasse em papel meus versos, minhas memórias, minhas crônicas … Sempre fui bastante resistente a isso. Jamais venderia o que escrevo porque são plumas que assopro aos ventos, garrafas que atiro ao mar. Meus poemas são muito ligados a imagens que vi, vivi etc. Meu discurso narrativo é extenso, como minha conversa cotidiana. De modo que mandar para uma gráfica material que incorpore o que julgo necessário torna-se dispendioso e, de certa forma, até vaidoso. Uns argumentam, contudo, que é mais simples de ser acessado, reunido em um volume etc. Talvez um dia o faça em poucas cópias para meus filhos e amigos terem uma recordação escrita do que SOU. Mas é mais provável que em um pen-drive isso se resolva também. (Já o fiz e tive o material devolvido sumariamente, portanto, tenho minhas reservas morais também a esse recurso). Enfim, estou separando os poemas – são centenas – por temas etc. Assim quando mais tarde me procure/ Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão fim de quem ama…”

Texto: Odonir Oliveira

Vídeo: Canal Nana Caymmi – Tema

Parques de diversões

Conheci o PlayCenter, na Marginal Tietê, em São Paulo, em 1984, quando fui acompanhando uma turma de 8ª série, que se formava no 1º grau. Era um presente por algo que haviam desempenhado na escola. Fomos apenas como diversão. A tarde estava nublada, chegamos ao abrir dos portões e lá permanecemos até quase a hora do fechamento. Confesso que fiquei estarrecida em ver o quanto aqueles jovens – de 15, 16 anos – adoravam aqueles brinquedos, o quanto apreciavam os riscos, a adrenalina, e riam, e riam. Suportavam permanecer em longuíssimas filas para irem se aventurar nos brinquedos. Lembro que fui com as meninas em um deles, no tal Barca Viking e quase morri. Olhos fechados, e muito medo. O mesmo na Roda-gigante. Chega. Mais algo ali ficou em mim. O que poderia ser feito com todas aquelas emoções vividas, com todas aquelas sensações, o passeio com o grupo, as leis da física ali desenvolvidas? Era uma turma de uma escola particular de Cotia.

O sertanejo trepou no carrossel, deu corda na pianola e começou a música de uma valsa antiga. O rosto sombrio de
Volta Seca se abria num sorriso. Espiava a pianola, espiava os meninos envoltos em alegria. Escutavam religiosamente
aquela música que saía do bojo do carrossel na magia da noite da cidade da Bahia só para os ouvidos aventureiros e
pobres dos Capitães da Areia. Todos estavam silenciosos. Um operário que vinha pela rua, vendo a aglomeração de
meninos na praça, veio para o lado deles. E ficou também parado, escutando a velha música. Então a luz da lua se
estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Iemanjá tivesse
vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os
Capitães da Areia. Nesse momento de música eles sentiram-se donos da cidade. E amaram-se uns aos outros, se
sentiram irmãos porque eram todos eles sem carinho e sem conforto e agora tinham o carinho e conforto da música.
Volta Seca não pensava com certeza em Lampião nesse momento. Pedro Bala não pensava em ser um dia o chefe de
todos os malandros da cidade. O Sem-Pernas em se jogar no mar, onde os sonhos são todos belos. Porque a música
saía do bojo do velho carrossel só para eles e para o operário que parara. E era uma valsa velha e triste, já esquecida
por todos os homens da cidade”.
(Jorge Amado, Capitães da Areia.”Luzes do carrossel”, Rio de Janeiro: Record, 38ª edição, 1977, p. 68.)

Editora Record, 1979

O PROJETO INTERDISCIPLINAR ”PLAYCENTER”

Anos mais tarde, em 1994, já no Colégio Galileu Galilei, escrevi junto com o professores de Física e de Artes, o Projeto PlayCenter, que desenvolvemos com os alunos do 2º ano do nível médio.

Inicialmente os motivei com a leitura de um capítulo de Capitães da Areia, de Jorge Amado e de outro de Anarquistas, graças a Deus, de Zélia Gattai. Depois, é claro, a leitura das duas obras completas. Ambos os capítulos faziam referência a parques de diversões. Na 1ª, na Bahia. Na 2ª, em São Paulo. Estávamos lendo, concomitantemente, poesias concretas, e eles adoravam forma + conteúdo, desenhavam com palavras. Ouvimos Domingo no Parque, de Gilberto Gil e nos deliciamos com suas imagens poéticas.

O professor de Física elaborou uma série de questões para serem respondidas a partir de dados e cálculos sobre os brinquedos etc. Nas artes, concretizaríamos um livro de poemas, um jornal etc.

Lembro-me que pedi para me encontrar com a gerência do PlayCenter antes. Expus o projeto e solicitei que entrássemos antes para realizarmos o que desejávamos sem público etc. O gerente trouxe o diretor da empresa e ouviu atentamente os passos do trabalho. Fez uma ressalva, nos atenderia, mas gostaria de ter em mãos, depois, os poemas para colocá-los em totens de acrílico na frente de cada brinquedo, com créditos etc. Isso foi muito motivador para a criação dos poemas. E assim o fizeram. Aqui alguns deles:

OBSERVAÇÃO: Idas ao PlayCenter com grupos de amigos de escola representavam, naquela época, o que depois tornaram-se as viagens a Porto Seguro etc. Hoje, não existem mais, talvez elas não motivassem mais jovens em 2020, mas a essência desse trabalho é o que importa. Tive colegas professores de Matemática que ensinavam geometria, montando formas geométricas com palitos de churrasco e elástico de pressão, para calcularem ângulos, resolverem problemas . Depois, esculpindo pedras de sabão, e observando, analisando o que seria apenas abstrato em cálculos e fórmulas. Os gregos demoraram muitos e muitos anos para chegarem às formulações matemáticas etc. foram resultado de muitas observações, análises e comparações. Às vezes, a escola formal se esquece dessa gênese e não sabe nem explicar aos nossos meninos por que estão estudando determinado conteúdo, qual a sua validade etc. apenas seguem livros didáticos e apostilas – ”porque é conteúdo de nono ano, oras”. Lamentável. E os seus meninos, se interessam pelo quê?

Veja, aqui no blog, outros projetos na categoria Trabalhos realizados com alunos

https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/trabalhos-realizados-com-alunos/

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Gilberto Gil

Amores correspondidos

DOCE É O AMOR
O que é isso,
que apelido tem
que codinome tem
que alcunha tem
que diminutivo tem
que sinônimo tem
que antônimo tem
que química tem
que receituário tem
que disfarces tem
que fantasias tem
que lemas tem
que contraindicações tem
que efeitos colaterais tem
que desenganos tem
que tropeços tem
que feridas tem
que encantos tem
que sedução tem
que encaixes tem
que desassossegos tem?
Doce é o amor?

ENCONTROS
Ama-se o amor
Ama-se a busca do outro em si mesmo
Ama-se um acordo de pensamento que batiza encontros
Ama-se um gesto, um riso, um toque, um olhar
Ama-se um jeito, um comportamento, uma capacidade
Ama-se um cheiro, uma seiva, uma pele.

SAUDADES INTERNAS
Saudade de beber vinho no mesmo copo e sempre.
Saudade de dançar samba sem parar, de rodopiar e de rir muito com isso.
Saudade de falar dos maiores problemas nacionais em cadeiras duras de botecos
Saudade de companheirismo, cumplicidade, parceria
Saudade de grandes brigas teóricas, históricas e poéticas.
Saudade de colo canhoto, de mãos ásperas, de barbas por fazer.
Saudade de poder chorar sem pejo, de blasfemar sem penitência e de solfejar o nada.
Saudade de correspondência interna.

Poesias: Odonir Oliveira

Vídeos:

1- Canal Carla Reis

2- 4 e 5: Facebook

3- Canal Sèbastien Semal

Sessões de terapia

ALMAS HUMANAS
a vida segue um script
corriqueiro
comum
nasce-se
cresce-se
ama-se
procria-se
envelhece-se e morre-se
O que intriga
o que difere
o que interessa
são as almas humanas
quais os seus mistérios
quais as suas sombras e penumbras
de que se ocultam
o que lhes interessa mostrar
seres imperfeitos são perfeitos
seres imunes às paixões são doentes
seres refratários a dores e sofrimentos
são artificiais
são cabotinos
são cruéis

A série SESSÃO DE TERAPIA sempre foi essencial, e por que não dizer genial também. Acompanhei-a desde a 1ª temporada cujo terapeuta Theo, Zécarlos Machado, conduzia muito bem as sessões, individuais ou em duplas. Agora na 4ª temporada, o terapeuta é Caio, Selton Melo, anteriormente diretor das demais temporadas. Das primeiras vezes, amigas minhas em SP diziam detestar a série, afirmando ficarem angustiadas, agoniadas assistindo. Preferiam ver outras diversões. Observava que eram pessoas que jamais haviam feito terapia. Ao contrário, como avestruzes, fugiam delas, não queriam o auto conhecimento, a evolução, voar. Homens então! Não se falasse em DRs, quanto mais em abrir-se, despojar-se de suas virilidades de antanho, de sua arrogância, de suas ”pavonices”. Jamais! Fato é que para quem se esconde de si em si, talvez submeter-se a catarses alheias, pode ser salutar. Enxergar-se em espelho emprestado (como nas tragédias gregas) pode ser o início de uma caminhada. Aventurem-se. Assistam às temporadas anteriores e a essa que ainda está sendo exibida no GNT.

1ª, 2ª e 3ª temporadas
4ª temporada

Eros e Thanatos
Reza a lenda que aqueles que vivem apenas do hedonismo, na verdade, têm em si um forte instinto de morte. Esta os persegue , como se fosse chegar amanhã, ou hoje à noite. Daí essa luta diária entre Eros e Thanatos – vida e morte – tão flagrantes naqueles que estão sempre à beira dos precipícios, entregues … a um vício qualquer, vulneráveis a um domínio externo … São corpos e mentes que adoram riscos, perigos, a boêmia, a vida sem lenço nem documentos – digamos assim.
Sem dúvida é uma escolha do modo de se viver. Para isso, não se deve carregar bagagem – penso eu – filhos, amigos, afetos parceiros – apenas uma mochila leve, um boné, óculos escuros, para que se possa cumprir as rotas almejadas.
Thanatos, na verdade, é o grande companheiro dos hedonistas. Está ali sempre com eles em suas mochilas.

HEDONISMO
Hedon, instinto, prazer fim último,
único
propósito de vida
EPICURISMO
medo da dor medo de sofrer
medo da entrega
Medo.

NO BAR
Sozinho mastiga uns versos e uns torresmos sequinhos
pede a branquinha e ouve a música que toca
ouve a música interna que toca
mastiga uns versos internos
quase de cor.
O parceiro desconhecido senta ali
quer saber o que fala sozinho para si mesmo o outro.
Bebem pinga
bebem galhofas
bebem exageros
bebem mulheres
comem mulheres
de todos os tipos e jeitos
riem delas românticas, melosas, carentes
entregues a seus beijos e abraços
Obedecem ao ritual
do falo imposto
do falo exposto
do macho imposto
do macho exposto.
Bebem.
Comem.
Alguém traz um banjo
A cidade fascina o banjo.

DEDO DO MEIO
Grupo de terapia. Apenas homens e o terapeuta corporal.
Um grosso colchão está preso por ganchos no suporte da parede. Cada um deverá esmurrá-lo o quanto conseguir, gritar e colocar todos os seus ódios ali. Tudo é permitido.
Há um enorme dedo do meio que pende acima do colchão, aludindo à libertação.

1. Cristóvão era o nome dele. Tivera um pai sardônico a vida inteira. Menosprezara o garoto, depois o rapaz e, por fim, o ignorava quando adulto. Casara com uma mulher negra e o pai, italiano carcamano, jamais aceitara isso, nem tão pouco se importava com seus 3 netos. Cristóvão pedira, quando mocinho, que lhe ensinasse a dirigir, ao que o pai se negara e dissera que não iria ser bom motorista nunca, que desistisse daquilo. Cristóvão arranjou uns “bicos”, recebeu por eles, pagou as aulas de direção e não só tirou a carteira de motorista, como também  na categoria  “profissional”- como o pai. Com prazer, apresentou-a a ele que, sem admiração, lhe disse “Ah, conseguiu?” E só. Seu pai já está morto. Cristóvão agora esmurra o colchão, grita com todas as suas forças todos os palavrões, o nome do pai e chora, baba, sua e urina de pavor. De joelhos, cobre com as mãos o rosto e chora convulsivamente. Os outros 4 homens o abraçam, até que volte ao seu eixo.

2. João era o nome dele. Filho caçula, depois de 4 irmãos. Adocicado pela mãe que lhe descascava laranjas e colocava creme dental na escova, mesmo quando já estava na faculdade. Sempre teve enorme dificuldade em assumir algo. Qualquer coisa. “Mas não foi culpa minha foi dele, dela” etc. Tudo que quis teve, mesmo com sacrifícios enormes dos pais, quis ser surfista foi; quis ser da Igreja Messiânica foi; quis estudar inglês em curso caro, estudou; quis ter carro teve. Arrebentou com o carro, teve que ser guinchado para o ferro velho. Namorou, noivou e casou sem ter condições de manter família. Jamais assumindo sua responsabilidade com a esposa e depois com o filho – a quem considerava a razão da discórdia entre ele e a esposa “Nunca mais foi mulher, depois que virou mãe, Deus me livre”. Os anos foram passando, foi abandonando tudo que lhe exigisse qualquer responsabilidade. As cervejas, a maconha, a cocaína lhe maltrataram o cérebro, a saúde, o amor, a vida. Era um derrotado e sem jamais admitir que fosse um adicto necessitando mudar, se tratar. Tudo lhe escapou das mãos. João começa a socar o colchão, mas não se impõe, vai ficando lento, enfraquecido, fala frases desconexas como se delirasse, até que cai e fica de olhos fechados no chão, como num transe. Depois de um tempo, é erguido pelos outros e levado a sentar-se.

3. Jair era o nome dele. Tivera muitas perdas durante a vida. Bem pequeno perdera o pai tragicamente assassinado em um assalto. Uma década mais tarde perdera um irmão de   mal súbito no campo de futebol, na flor da idade. Jair trancara o peito. Nada de amar mais. Só alegria, só bebedeiras, bares, prostíbulos, música, dança. Amava, na verdade amava sim. Mas não conseguia retenção de amor. Era tudo rápido, fluido, volátil e inesquecível porque só registrava flashes de esplendor. Negava-se a qualquer conversa cobradora, a qualquer cena de mau-humor. Só alegria. Trancou o compartimento do cérebro para emoções amorosas. Tinham que ser fugazes e se não fossem assim delas fugiria a léguas. Foi indo. Era como se não tivesse memória emocional real. Simplesmente esquecia. Com facilidade. E assim partia para outras e outras e outras. É óbvio que o álcool o acompanhava. Sempre. Estava ali para socar o colchão, mas nem via qualquer necessidade de terapia, de ter que se expor. Julgava-se bem resolvido e se sentia bem daquele jeito. Foi o primeiro a socar o colchão, mas antes passou no boteco e bebeu quase uma garrafa da branquinha preferida. Estava solto, solto. Ficava assim leve quando embriagado. E cheio de coragem. Esmurra o colchão, faz várias vezes a postura do Foda-se com o dedo do meio, daquele jeito bem rock ‘n’ roll . Chora e chama pelo pai, pelo irmão, chama-os a voltar. Faz uma retrospectiva de sua vida – como se os 2 estivessem ali ouvindo – ri, gargalha e chora. Não consegue socar o colchão. Perdoa a Deus ou a quem os levara de sua vida tão cedo. E chora. Não muito.

Entendo que terapias são tratamentos caros para grande parte da população. Entretanto, muitos priorizam viagens, bens materiais, imóveis a tratarem de sua saúde psíquica. Ademais, há muitos tratamentos em Universidades particulares e públicas gratuitos ou com pagamentos em forma de troca, num escambo emocional – digamos assim. Na verdade, é preciso TER CORAGEM para se fazer terapia. Enfrentar a si mesmo, sem máscaras e disfarces não é para qualquer um. É preciso querer ser mais saudável e lidar de forma mais saudável com os outros. Verdadeiramente.

Poesias e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Instituto Piano Brasileiro IPB

Demoras

NA PELE DAS ÁGUAS

Uivo para a rua
Uivo para montanhas lagos lagoas.
Na percussão do meu pensamento
A batera do meu sentimento.
Namoro a ponte
Namoro na ponte.

Empino o sax
Desejo a tarde
Cobiço a noite
Cobiço-a à noite

O cheiro é um
O gosto é outro
Na pele das águas.

No nervo da luz
No músculo retesado do braço
Da perna firme em marcha
Marcha calma, trôpega, insinuante, feroz,
que enlevada pela luz bruxuleante do dia
logo vai se encontrar com a noite
A um idílio completo.

Timbilas: instrumento tradicional moçambicano, da família dos xilofones, constituído por um número variável de lâminas de madeira fixas sobre cabaças de diferentes tamanhos que funcionam como caixas de ressonância, que se toca com duas baquetas dotadas de um anel de borracha na ponta (https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/timbilas)

Poema: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: Minas Gerais

Vídeos:

1 e 3: Canal Mundo dos Poemas

2- Canal nora balaban

“Meu filho de cuca legal”

COMO CONHECI JOÃO MARCELO
Em 1982, já no fim do ano, fui buscar minha filhota no berçário ”Angeli Domus”, no finzinho da Rua Joaquim Eugênio de Lima, esquina com a Estados Unidos, nos Jardins, em SP. Já estava lá dentro, quando vi chegar o Rogério, irmão da Elis – seus 2 filhos também ficavam nesse berçário. Dizia à diretora que estava com pressa porque deixara o carro aberto na rua e apenas o João Marcelo dentro dele. Eu havia comparecido ao velório de Elis, meses antes, no Teatro Bandeirantes, ali perto na Av. Brigadeiro Luiz Antonio.
Não tive dúvida. O filho da Elis estava com 12 anos naquela época. Fui lá fora, andei um pouco; ele já não estava dentro do carro. Fechou-o e aguardava encostado no muro do berçário. Era um menino magrinho, de cabelos escuros, ainda com a expressão da mãe.
Juro, quis abraçá-lo, beijá-lo, acarinhá-lo … mas meu pejo e respeito à maior cantora desse país me fez ser moderada. Voltei lá dentro, peguei minha filhota de 3 anos. E com ela no colo, me dirigi ao meu carro, sentando-a na cadeirinha, fechando a porta e dando a volta no carro. João Marcelo assistia a tudo, atento.
Não resisti, cheguei perto e lhe disse Eu gostava muito da sua mãe. Ele, apenas mexeu a boca. Não me recordo se só balançou a cabeça ou se agradeceu com palavra, faz muitos anos.
Entrei chorando no carro, liguei o rádio, e fiquei procurando uma FM em que estivesse tocando Elis.
Minha filha dormiu na cadeirinha.

MOMENTO MUITO ESPECIAL: João Marcelo, com a expertise de Ronaldo Bôscoli e a sensibilidade de Elis, fala sobre o disco. Nele Elis canta o ”filho de cuca legal”, que havia nascido 2 anos antes, em 1970 . O nome de João era homenagem a João Saldanha, técnico da Seleção Tri-campeã, ( excluído por Médici e substituído por Zagalo). Ouvi isso da própria Elis, enquanto grávida.
1986 e 2015

DEDICATÓRIA: À minha amiga Leila Aliel leitora, diária via Facebook, de tudo que publico, em especial quando narro minhas memórias. Gosto muito de ser lida. Beijo.

Poemas e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Estadão