Lembrança do mundo antigo
Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era
tranquilo em redor de Clara.
As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava
no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de Andrade, in Sentimento do Mundo, 1940
DOMINGOS DE INFÂNCIA
Nos meus anos de menina, depois do almoço de sábado, acompanhava meu pai pela horta, já tinha uns 9 ou 10 anos. Enquanto ele tratava daquelas dezenas, quase centena, de bananeiras, eu subia nas goiabeiras. A mais alta era a branca e a vermelha a mais fácil de subir, quase estendendo-se em degraus a me chamar. Cuspia as cascas, alguns machucadinhos etc. Limpava no vestido ou no short de algodão as goiabas, nada de lavar, teria de descer, e o bom era ficar lá em cima comendo, olhando a horta, que mais parecia uma chácara de tão grande. Ficava depois do muro do quintal, tudo pertinho. Era a aula de agricultura com meu pai. Minha mãe não gostava que ficasse lá sozinha, temia meninos chegarem etc. bobinha a minha mãe. Devia era me proteger de alguma cobra, de um prego enferrujado, de um caco de vidro … bobinha a minha mãe.
No sábado, ao fim da tarde, meu pai matava um frango e aparava o sangue. Entrava com ele, saído do galinheiro e colocava na bacia da pia. Eu adorava. Segunda parte do sábado feliz era a aula de Ciências da minha mãe. Ela me ensinava sem ensinar como mestra que faz. Vez ou outra explicava sobre o fel, sobre os miúdos, sobre os ovinhos amarelinhos que ainda virariam ovos e talvez pintinhos. Temperava tudo para o dia seguinte. Depois eu e ela escolhíamos feijão e deixávamos de molho para o dia seguinte. Se tivesse tempo bom, mais tarde eu ia brincar de pique-bandeira na frente de casa ou andar de bicicleta. A minha era emprestada. Só meu irmão e minha irmã mais velha é que tinham as deles. A porta da minha casa tinha uma janelinha que dava para o alpendre e de lá minha mãe, de tempos em tempos, ia ver se eu estava ali, quando não me via, saía e deparava comigo voando lá no fim da rua. Eu ouvia o chamado e voltava.
Nos almoços de domingo tinha sempre macarrão, mas … macarrão mineiro, quer dizer, com pouco molho de tomates, só pra dar uma cor, nada desses molhos italianos de hoje. Mineiros comem arroz e feijão – frescos – todos os dias, inclusive com macarrão, comida de domingo, dizia a vovó. O frango era refogado, com pouco tomate e bem temperadinho. Antes do almoço minha mãe fazia os miúdos, como aperitivos pra nós, eu e meu irmão gostávamos do coração, da moela, e os outros do fígado, do sangue etc. Aí a gente petiscava. Meu pai ia moer a cana na moenda feita por ele. Eu ajudava, limpava a cana, mas não raspava – ele não queria que me machucasse – e ia dando a ele. Saía aquele caldo maravilhoso, peneirado, que eu carregava pra dentro de casa – sem derramar – e voltava pra pegar mais. Na geladeira, o néctar dos deuses se preparava para nos embriagar. Meu pai dizia: “Da nossa horta”.
As sobremesas eram as nossas frutas. (Até hoje nunca como uma apenas.) Tínhamos muitas variedades no quintal. Era só colher.
Como também era só colher os antúrios de muitas cores e ficar namorando as orquídeas.
Minha mãe sempre descansou após o almoço. “Tá dormindo, mãe?” ”Só descansando os olhos”. Mas depois, de arrumarmos a cozinha, íamos caçar parasitas nas árvores da Rio-Petrópolis, as vandas. Minha mãe cuidava delas como cuidava dos filhos. Meninota, tinha até ciúme daquilo.
Mais tarde, andávamos de bicicleta, batíamos papo, falávamos dos cantores da Jovem Guarda etc. Tínhamos muitos amigos na mesma rua, com as mesmas idades, estudando na mesma escola, com pais recebendo salários muito parecidos da mesma fábrica, a FNM.
Quando ando pelas ruas mineiras e sinto o cheirinho de refogado de tomates na panela, adivinho logo, vai ter macarrão, vai ter frango. Como nos domingos de minha infância.
Poesia e texto: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal
Vídeo: Canal Odonir Oliveira