Domingos de infância

Lembrança do mundo antigo

Clara passeava no jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
o guarda-civil sorria, passavam bicicletas,
a menina pisou a relva para pegar um pássaro,
o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era
tranquilo em redor de Clara.

As crianças olhavam para o céu: não era proibido.
A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo.
Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos.
Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas,
esperava cartas que custavam a chegar,
nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava
no jardim, pela manhã!!!
Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!

Carlos Drummond de Andrade, in Sentimento do Mundo, 1940

DOMINGOS DE INFÂNCIA
Nos meus anos de menina, depois do almoço de sábado, acompanhava meu pai pela horta, já tinha uns 9 ou 10 anos. Enquanto ele tratava daquelas dezenas, quase centena, de bananeiras, eu subia nas goiabeiras. A mais alta era a branca e a vermelha a mais fácil de subir, quase estendendo-se em degraus a me chamar. Cuspia as cascas, alguns machucadinhos etc. Limpava no vestido ou no short de algodão as goiabas, nada de lavar, teria de descer, e o bom era ficar lá em cima comendo, olhando a horta, que mais parecia uma chácara de tão grande. Ficava depois do muro do quintal, tudo pertinho. Era a aula de agricultura com meu pai. Minha mãe não gostava que ficasse lá sozinha, temia meninos chegarem etc. bobinha a minha mãe. Devia era me proteger de alguma cobra, de um prego enferrujado, de um caco de vidro … bobinha a minha mãe.
No sábado, ao fim da tarde, meu pai matava um frango e aparava o sangue. Entrava com ele, saído do galinheiro e colocava na bacia da pia. Eu adorava. Segunda parte do sábado feliz era a aula de Ciências da minha mãe. Ela me ensinava sem ensinar como mestra que faz. Vez ou outra explicava sobre o fel, sobre os miúdos, sobre os ovinhos amarelinhos que ainda virariam ovos e talvez pintinhos. Temperava tudo para o dia seguinte. Depois eu e ela escolhíamos feijão e deixávamos de molho para o dia seguinte. Se tivesse tempo bom, mais tarde eu ia brincar de pique-bandeira na frente de casa ou andar de bicicleta. A minha era emprestada. Só meu irmão e minha irmã mais velha é que tinham as deles. A porta da minha casa tinha uma janelinha que dava para o alpendre e de lá minha mãe, de tempos em tempos, ia ver se eu estava ali, quando não me via, saía e deparava comigo voando lá no fim da rua. Eu ouvia o chamado e voltava.
Nos almoços de domingo tinha sempre macarrão, mas … macarrão mineiro, quer dizer, com pouco molho de tomates, só pra dar uma cor, nada desses molhos italianos de hoje. Mineiros comem arroz e feijão – frescos – todos os dias, inclusive com macarrão, comida de domingo, dizia a vovó. O frango era refogado, com pouco tomate e bem temperadinho. Antes do almoço minha mãe fazia os miúdos, como aperitivos pra nós, eu e meu irmão gostávamos do coração, da moela, e os outros do fígado, do sangue etc. Aí a gente petiscava. Meu pai ia moer a cana na moenda feita por ele. Eu ajudava, limpava a cana, mas não raspava – ele não queria que me machucasse – e ia dando a ele. Saía aquele caldo maravilhoso, peneirado, que eu carregava pra dentro de casa – sem derramar – e voltava pra pegar mais. Na geladeira, o néctar dos deuses se preparava para nos embriagar. Meu pai dizia: “Da nossa horta”.
As sobremesas eram as nossas frutas. (Até hoje nunca como uma apenas.) Tínhamos muitas variedades no quintal. Era só colher.
Como também era só colher os antúrios de muitas cores e ficar namorando as orquídeas.
Minha mãe sempre descansou após o almoço. “Tá dormindo, mãe?” ”Só descansando os olhos”. Mas depois, de arrumarmos a cozinha, íamos caçar parasitas nas árvores da Rio-Petrópolis, as vandas. Minha mãe cuidava delas como cuidava dos filhos. Meninota, tinha até ciúme daquilo.
Mais tarde, andávamos de bicicleta, batíamos papo, falávamos dos cantores da Jovem Guarda etc. Tínhamos muitos amigos na mesma rua, com as mesmas idades, estudando na mesma escola, com pais recebendo salários muito parecidos da mesma fábrica, a FNM.
Quando ando pelas ruas mineiras e sinto o cheirinho de refogado de tomates na panela, adivinho logo, vai ter macarrão, vai ter frango. Como nos domingos de minha infância.

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Odonir Oliveira

Trem de ferro, Manuel Bandeira

TREM DE CARGA

Nos dormentes,
vagões vazios
dormem
solitários
de vozes
risos abraços beijos.

Despedidas ausentes
chegadas ausentes
encontros e reencontros
ausentes.

Carga pesada
fantasma
que apita
chegadas
partidas
sem paradas
sem estações sentimentais
sem coloridos de saias e calças roçantes nos corpos
sem cheiro de corpos roçando os sentidos
sem massa de almas
desejos súplicas.

Vagões de carga apenas
suportando o peso das remessas diárias,
eternamente.

COMO ENCANTAR MENINAS E MENINOS COM POESIAS?
Ah, ninguém gosta de poesia. Poesia é de difícil interpretação.
Nos tempos atuais a moçada não tem paciência nem concentração pra ler poesia não.
Até eu que sou professora tenho dificuldade pra entender poesia …

Quantas vezes ouvi isso de colegas professores ou de pessoas distantes da poesia, meu Deus! Sempre preferi aspergir poesia nesses comentários, assim, como borrifar perfume em sua pele, em suas mãos.
A sedução pela poesia é algo promissor – sinto e penso eu – porque humaniza as pessoas, tira delas ódios encruados, alheamentos sociais, insensibilidades tantas, e as modifica lentamente.
Um livro de poesias pode ser lido de trás pra frente, pelos títulos do índice, por temas, pelos nomes dos poetas, nossa, por tantas escolhas … O Google está aí para confirmar isso. Qual foi o termo de busca? A saber.
Num país como o nosso, com tantas desigualdades socioculturais, na maior parte das casas não há livros (apenas os didáticos de distribuição oficial nas escolas públicas, talvez). Não se oferece leitura de livros aos meninos, mas os celulares sim. Como fazer de um limão muitos jarros de limonada?
Cabe aos professores – por seu ofício – seduzir ao prazer de ler e de escrever. É preciso deixar os alunos criarem , fazerem suas interpretações, suas releituras, brincarem com as poesias, tal qual jogam games, ouvem rap, as batidas do funk, e se deleitam com memes.
VÊM PRA CÁ, MENINOS, VÊM MOSTRAR TODA SUA CRIATIVIDADE. VOCÊS SÃO CAPAZES DE MARAVILHAS. ACREDITEM!

A seguir, crianças e jovens, seguramente seduzidos por professoras e professores, recriam os versos do meu poeta mais coloquial, o Manuel Bandeira. ( Desde menina eu já o adorava por seu poema PORQUINHO-DA-ÍNDIA – já revelado aqui nesse blog). Parabéns pelas realizações, professores e alunos!

Sobre Bandeira, leia aqui no blog: “Estrela da vida inteira? Bandeira”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/04/17/estrela-da-vida-inteira-bandeira/ “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2019/08/04/a-unica-coisa-a-fazer-e-tocar-um-tango-argentino/ “Tangos e tragédias”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/03/10/tangos-e-tragedias/ “Tudo métrica e rima e nunca dor”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/01/31/tudo-metrica-e-rima-e-nunca-dor/

Sobre TRENS, leia aqui a categoria: https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/trens/ – e TRABALHOS REALIZADOS COM ALUNOS, leia aqui: https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/trabalhos-realizados-com-alunos/

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Lilian Arradi

2- Canal Wilton Carvalho

3- Canal Maria Ramos

4-Canal Adriano Gallinari

5- Canal Paulo Golin

6- Canal Aline Begossi

Ana Maria e a poesia

Gravação de 1960

JUVENIL

A noite cai

Numa névoa

A nuvem vai

Muda o vento

Abre o tempo

Renova-se a noite

Invade o céu

A estrela única

Enamorada, pisca ingênua

A encantar a menina

Página aberta do livro

O verso companheiro consigo

Esperando o doce lirismo

Seu parceiro de poesia

Invadem, assim, o céu

As estrelas em fantasia

Poesia: Odonir Oliveira

Imagens retiradas da Internet

Vídeo: Canal Juca Chaves – Topic

Vinícius de Moraes: acervo digitalizado

O QUE TINHA DE SER
Vinícius de Moraes e Tom Jobim

Porque foste na vida
A última esperança
Encontrar-te me fez criança
Porque já eras meu
Sem eu saber sequer
Porque és o meu homem
E eu tua mulher

Porque tu me chegaste
Sem me dizer que vinhas
E tuas mãos foram minhas com calma
Porque foste em minh’alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser

Documentário que explicita o processo de criação da poesia de Vinícius, incluindo “manuscritos”. Excelente

Sobre Vinícius de Moraes, leia aqui no blog: “Vinícius, Vininha, esse soube amar”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/03/19/vinicius-vininha-esse-soube-amar/ “Vinícius, o preto mais branco do Brasil” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/12/07/vinicius-o-branco-mais-preto-do-brasil/ “Nós somos um poema”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/03/11/nos-somos-um-poema/ e no GGN, “Vinícius, Vininha de Moraes, é melhor ser alegre que ser triste”https://jornalggn.com.br/editoria/cultura/vinicius-vivinha-de-moraes-e-melhor-ser-alegre-que-ser-triste/

Vídeos:

1- Canal Caetano Veloso

2- Canal Vinícius de Moraes

“Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas”

Num texto publicado em agosto de 1957, o escritor João Guimarães Rosa faz uma declaração de amor ao Estado de Minas Gerais, palco principal de sua obra mais importante: Grande Sertão: Veredas. (Texto publicado na revista “O Cruzeiro”, em 25 de agosto de 1957.)

Minas é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a constante emergência, a verticalidade esconsa, o esforço estático; a suspensa região — que se escala. Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. Aguarda-nos amparada, dada em neblinas, coroada de frimas, aspada de epítetos: Alterosas, Estado montanhês, Estado mediterrâneo, Centro, Chave da Abóbada, Suíça brasileira, Coração do Brasil, Capitania do Ouro, a Heroica Província, Formosa Província. O quanto que envaidece e intranquiliza, entidade tão vasta, feita de celebridade e lucidez, de cordilheira e História. De que jeito dizê-la? MINAS: patriazinha. Minas — a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas — a gente não sabe.

Sei, um pouco, seu facies, a natureza física — muros montes e ultramontes, vales escorregados, os andantes belos rios, as linhas de cumeeiras, a aeroplanície ou cimos profundamente altos, azuis que já estão nos sonhos — a teoria dessa paisagem. Saberia aquelas cidades de esplêndidos nomes, que de algumas já roubaram: Maria da Fé, Sêrro Frio, Brejo das Almas, Dores do Indaiá, Três Corações do Rio Verde, São João del Rei, Mar de Espanha, Tremendal, Coromandel, Grão Mogol, Juiz de Fora, Borda da Mata, Abre Campo, Passa Tempo, Buriti da Estrada, Tiros, Pequi, Pomba, Formiga,  São Manuel do Mutum, Caracol, Varginha, Sete Lagoas, Soledade, Pouso Alegre, Dores da Boa Esperança… Saberei que é muito Brasil, em ponto de dentro, Brasil conteúdo, a raiz do assunto. Soubesse-a, mais.

Sendo, se diz, que minha terra representa o elevado reservatório, a caixa-d’água, o coração branco, difluente, multivertente, que desprende e deixa, para tantas direções, formadas em caudais, as enormes vias: o São Francisco, o Paranaíba e o Grande que fazem o Paraná, o Jequitinhonha, o Doce, os afluentes para o Paraíba, e ainda; — e que, desde a meninice de seus olhos-d’água, da discrição de brejos e minadouros, e desses monteses riachinhos com subterfúgios, Minas é a doadora plácida.

Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas.

[…]

Continue lendo aqui: “A declaração de amor de Guimarães Rosa a Minas Gerais” https://www.revistabula.com/21511-a-declaracao-de-amor-de-guimaraes-rosa-a-minas-gerais/

Sobre Guimarães Rosa, leia aqui no blog: “O sertão é confusão em grande demasiado sossego”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/04/20/o-sertao-e-confusao-em-grande-demasiado-sossego/ “Guimarães Rosa, o médico no escritor”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/12/06/guimaraes-rosa-o-medico-no-escritor/ “Bordando Rosa” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/06/01/bordando-rosa/ “O sertão é dentro da gente”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2019/10/18/o-sertao-e-dentro-da-gente/ “Guimarães Rosa, mire e veja”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/01/21/guimaraes-rosa-mire-e-veja/ “A colheita é comum, mas o capinar é sozinho” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/01/21/guimaraes-rosa-mire-e-veja/ “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/10/19/qualquer-amor-ja-e-um-pouquinho-de-saude-um-descanso-na-loucura-g-rosa/ “O senhor sabe o que é silêncio é a gente demais”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/02/08/o-senhor-sabe-o-que-silencio-e-e-a-gente-mesmo-demais-g-rosa/ “Na terceira margem do rio: a de dentro” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/08/02/na-terceira-margem-do-rio-a-de-dentro/

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Odonir Oliveira

“O samba agoniza, mas não morre”

A filosofia dos grandes poetas polvilha lirismo, canela e açúcar em nossos ouvidos. De onde é que brotam os poetas? Germinam das vivências, das experiências reais, das dores individuais e coletivas? De onde? A se constatar. “Eu não penso no meu problema mais de uma hora. E eu tenho vários. Não deu? Amanhã eu penso neles”.”A gente não pode disciplinar o progresso. Mas pode disciplinar a gente em relação ao progresso”– Nelson Sargento

OBRIGADA POR SUA EXISTÊNCIA, NELSON SARGENTO.

Vídeos:

1- Canal Pê

2- Canal Renato Moço

Sonhos

SONHANDO COM JUNG

Deitara já madrugada alta. Havia percorrido dois ou três sujinhos do Centro, descera a Consolação. Ao avistar um parça num sujinho, entrava. Bebia, ria com eles de algumas aventuras bravateiras, e seguia. Parecia envolto em uma procissão, sei lá, em um cortejo contínuo. Tudo profanamente sacro, demais. Trançando as pernas e as ideias, abriu os flancos para os sentimentos, as sensações. Aquela mulher ali perto, cabelos negros e lisos, presos no alto da nuca, lhe inspirava quereres. Chegou perto, falou com ela, ouviu nada do que ela disse, passou a mão na sua cintura e foram. Seguiram até o apartamento dela. Na madrugada, as luzes do sonho.

Sempre se dissera um respeitador dos direitos das mulheres. Gostava das que se entregavam facilmente, sem exigências, sem pré-requisições, sem cobranças de fiador. A vida com elas era maravilhosa. Eram as melhores. Depois, cada um pro seu lado e outras noites, outros bares, outros sujinhos, outras noites, outros bares, outros sujinhos …

Naquele sonho, um farolete iluminava sua testa, esbranquiçava sua visão, quase cegando sua tão destemida racionalidade. Enxergou mulheres se arrastando a seus pés, clamando por seus carinhos, gritando por sua atenção, denunciando suas contradições. Ao ver a cena, a seus pés, com todas aqueles corpos e corpos se arrastando feito ofídios a lhe enroscar as pernas, acometeu-lhe uma terrível sensação de que errara a vida inteirinha, não respeitara – como acreditava – as mulheres, apenas penetrava suas grutas como um desbravador voraz, iludindo-as de que estava lhes fazendo bem, envergando a bandeira do viver por viver. Era um paraíso às avessas o cenário em que se encontrava. Acordou.

FREUD EXPLICA?

1989. Depois do que assistiu na TV, seus piores pesadelos ainda estavam por vir. Bebeu duas doses de uísque, cowboy, nada bastava. Esperara tanto, ansiara tanto, lera tanto, se manifestara tanto … nada bastava. Um show pirotécnico explodia em sua cabeça, milhões de fogos de artifício guardados por décadas espocavam de sua boca. Era desejo, era verdade, era a festa tantas vezes adiada, tantas vezes sufocada. Era implosão agora? Seria mais uma implosão? Não era possível, depois de tantos anos, depois de tantas batalhas e campanhas!

Foi deitar em estado de embriaguez. Não suportaria tudo aquilo de novo. Era preciso fugir. Assim, oniricamente, se viu sentada nos joelhos do mais novo opressor, sendo acariciada por ele, sendo beijada por ele, entorpecida por seu cheiro macho. E gostando daquilo. Eva era prazer enevoado, corpo entorpecido, estática, inerte, passiva da ação do macho. Estava em seu colo, sentia suas pernas musculosas, sua energia – tão exposta em camisetas aos domingos- refletia nela a sua masculinidade tátil. Era mãos presas, olhos fixos, boca emudecida, perplexa, exaurida, frágil. Onde estaria naquele 1989? Num céu de lua cheia, o contorno do país. Tudo era símbolo, ícone, de futuros? Acordou.

Textos: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Imagem da placa retirada da Internet.

Vídeo: Canal Instituto Piano Brasileiro

Na morada

MORADAS REFÚGIO
Avisto um paraíso
refúgio de anos
sossego de buscas
oásis de penúrias.
Posso me adonar de ti?
Posso me embeber de ti?
Posso me entregar a ti?
Adentrando cômodo a cômodo,
meus olhos desfrutam de ti
encanto-me com tuas paredes,
com teu chão de histórias.
Eu, uma Helena de Troia mineira,
raptada por ti.
Regozijo de perfumes
Regozijo de lirismos
Regozijo de paisagens
Regozijo de melodias
De onde conheço
essa moradia abandonada?
Estive aqui antes?

NA ROTA, UM RUMO
Depois de tantas buscas, Laura encontrava seu paraíso. Viu de longe seu palacete emoldurado pela porteira. Imantada por silêncios e cantos de pássaros, perseguiu a trilha. Era fresco aquele ar, era claro aquele céu. Os verdes eram cheios de tons e subtons. Sentiu-se alegre, sentiu-se leve, sentiu-se flor.
Há quanto tempo procurava aqueles silêncios parceiros, aquelas asas de borboletas, aquele canto de riacho, ah, há quanto tempo!
Seu olhar penetrava o território com ares de posse, de posse lírica. Bebeu versos, respirou estrofes, adivinhou poemas. Laura lia arco-íris nas folhagens, ouvia sinfonias nas flores das árvores. Laura na rota, Laura no rumo.
Nunca mais saiu dali. Era como se tivesse estado em um vaso, mas ao chegar ali, suas raízes haviam transpassado o vaso e se grudado ao chão. Ninguém tiraria Laura mais dali. Enraizara-se.

Parabéns, filha, completando mais outro ano de vida. Todas as alegrias e muita saúde. Beijo.

Texto e poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Henrique Gama

Outonos

MUITOS E MUITOS OUTONOS

Já estive folha em tantos e tantos outonos, que nenhum deles me surpreende mais. Convivi com muitas mulheres, colegas de trabalho, cotidianamente competitivas, enciumadas, engenheiras de planos mefistofélicos para armadilhas de enredar pessoas, oferecendo-lhes pisos ensaboados e derrubadas fatais. Nas escolas onde trabalhei, pude conviver com muitas disputas, muitas rivalidades entre professoras. Dizem que quem se preocupa em destruir as qualidades de outros é porque se sente muito inferiorizado e o faz para vingar-se do bom desempenho alheio. Nunca quis ser a sempre desconfiada, com um pé atrás, com um olho no gato e outro no peixe. Acredito que viver assim é muito ingrato, desconfia-se de tudo. Há sim traições a amizades, intrigas, maldades, mas as máscaras caem fatalmente. Mulheres, muitas vezes, são ardilosas, sabem fazer uma cama de gato e envolver os outros (não estou livrando homens, mas costumam ser mais distraídos).

Durante a juventude, cheguei a alertar amigos que determinadas pessoas estavam sendo falsas, convincentemente falsas, mas a vaidade de alguns não permitia que enxergassem que estavam sendo manipulados com açúcar e com afeto. Mais tarde, na vida adulta, sinalizei a colegas de trabalho que observassem mais argutamente certas posturas, que não precisavam seguir o que eu apontava, mas que fossem mais atentos. Cheguei a ouvir que estava errada (nem era equivocada, mas errada) que não eram homens de se envolver com mulheres de tal tipo etc. O mesmo se dava com amigas mais próximas. E quando se dispara um alerta, corre-se o risco de ser entendida como a que faz intrigas e tudo mais.

Percebo que há pessoas que desenvolvem um dom de iludir, de ludibriar, de enredar, de convencer até com certa racionalidade e credibilidade a quem desejam. Na terceira idade, adquiri mais facilidade em reconhecer comportamentos falsos, sentimentos falsos, bajuladores, interesseiros, manipuladores. E ainda assim me surpreendo a cada dia com novos engenhos que se jogam aos nossos pés. Essa mania de acreditar nos seres humanos!

Penso que viver muitos outonos deve nos conduzir a ter maior experiência com o ser humano. Aqueles que querem se dar bem com todos, sem qualquer dissidência, ruptura, os que fazem apenas política da boa vizinhança porque não se revelam nunca, não dizem o que estão pensando nunca, sempre afáveis, bonachões, os engraçados com as outras pessoas, livro-os de mim. Ou não têm nenhuma capacidade de reflexão, são imaturos demais, não elaboram, nem aprofundam vivências ou são grandessíssimos cabotinos, mascarados, cínicos. Tenho poucos amigos no Facebook. Só aqueles que me conhecem.

Outonos deitam folhas ao chão.

MULHER DE OUTONOS
Calem-me aqueles que conseguirem.
Não vai ser fácil.
Aprendi a escrever com letras maiúsculas o de dentro de mim.
Não consigo mais esquecer como se faz.
Beiro as últimas estações de uma existência
Delas colho flores nas primaveras
Recolho folhas secas e murchas nos outonos.
Ensandeço e ardo nos verões
Quedo semimorta de cansaço nos invernos de meu sofrer.
Não quero mais amores que já tive.
Não quero mais emoções que já vivi.
Não quero mais dores que já senti.
Não aceito mais meios, terços e quartos.
Gosto de inteiros, cheios, amplos e grandes.
De tudo que estiver comigo
seja o que for
seja quem for.
Sou mulher.
Estou nos outonos de mim.
Faltam-me poucos meios-dias e meias-noites
Assim desejo-os inteiros.

OUVINDO O CORAÇÃO
Por mais de trezentos dias ouvi meu coração
Por mais de trezentos dias ouvi seus suspiros e contestações
Nada desprezei, nada sufoquei, nada neguei.
Dias, tardes, noites de escutas atentas e aflitas.
Portas abertas, portas fechadas, portas trancadas.
Janelas abertas, janelas fechadas, janelas trancadas.
Melodias, poemas, minhas estradas, lagos, cachoeiras, estrelas.
Transfigurações de viagens idílicas em caminhos de terra vermelha e poeira.
Moldura de telas pintadas a esmo, sem tintas ou pinceis.
Qual voo cego sem rumo nem porto, alcei espaços e tempos.
Nunca houvera antes voo de tamanha amplitude em meu coração.
Ah, que novo setembro inaugure beirais!

Texto e poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Analysexavie