Era sua primeira mostra. Aguardara décadas até germinar-lhe a coragem da exposição. Esperara décadas até que lhe fosse inoculada a vontade de exibição. Apascentara suas crias sempre em terreno resguardado de observações. Preservara áreas de terra, água, fogo e ar. Fizera as tintas com suas próprias mãos, compusera o tecido das telas com cada um de seus retalhos percorridos. Formatara suas molduras, uma a uma, em madeira de lei.
Era sua primeira mostra. Ele também estaria lá. Eles também estariam lá. Depois de décadas de aleitamento, maturação e verve. As nuances todas na mostra agora, as tonalidades, as subtonalidades, o monocromático, o policromático tudo frente a frente a todos.
Era sua primeira mostra. Licenciosamente, libidinosamente, despudoradamente o seu eito, a sua lavra à vista de todos, à crítica de todos. Talvez fosse melhor desistir, não ir, recolher todas as telas, guardá-las outra vez no sótão para revê-las, sozinha, quando desejasse, quando precisasse. O receio do exposto, o temor do menosprezo, o pavor do ridículo …
Bendito seja aquele que sabe ENCANTAR pelo que ENSINA.
“Professor idealizador da Escola da Ponte em Portugal sua experiência como educador e pesquisador o levou a formatar uma metodologia alternativa que foi capaz de criar uma escola sem aulas, turmas ou provas; o sucesso de seu modelo de ensino que vem sendo inspiração mundial há 40 anos revolucionou o papel de Portugal no cenário da pedagogia mundial; é reconhecido internacionalmente como a maior referência em termos de inovação em educação.”
Conheci José Pacheco, fazendo o curso sobre a Escola da Ponte, antes de conhecê-lo pessoalmente. Digo isso porque conheci seus professores, seus alunos, seus projetos de ensinagem e aprendizagem e sua visão de mundo.
Tempos se passaram, José Pacheco veio viver no Brasil, e aí o conheci, gente de carne e osso, um homem mais ou menos da minha idade e com a mesma visão de mundo que a minha.
Foi então que pude tocar nele, abraçá-lo e dizer-lhe, quase sem palavras, tudo que sempre quis lhe dizer.
Na vida há raízes de homens. Sei bem que as há.
TIÃO ROCHA e o CPCD
Quando o conheci aqui na Estação Ponto de Partida, em Barbacena, MG, agradeci a ele o quanto tinha aprendido com tudo que ele sempre produziu e confessei que eu tinha muito orgulho de ser uma brasileira como ele também é. Os abraços fraternais que nos demos foram muito significativos.
Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava.
Adélia Prado
SEMEADURA
não sei
nunca soube
não pude
nunca pude
não leio
não escrevo
não compreendo
nunca fui
nunca pude
não sei
Conceição chegara cedo, arrumara as carteiras, espalhara livros, revistas, papeis, lápis e cadernos pelo ambiente. Quem seriam eles? Como chegariam? O que desejariam? Quais os seus sonhos?
Um a um foi chegando, sem destreza ao sentar-se. Uma vergonha imerecida lhes percorrendo as vontades, um mutismo em seus semblantes. O que estariam pensando, que sonhos teriam ainda, que disposição aqueles corpos trazidos pelas mãos da labuta ainda teriam para aprender? E mais o quê?
Precisava ouvi-los em corpo e alma, que dissessem de seus sonhos, de seus saberes cotidianos, de suas necessidades. Precisava ouvi-los. Conceição sentia isso.
“A dona Conceição daqui nóis chama de dona Ceição, pode ser ancim? É mais facio”.
“Pode, claro” Era a senha, o sinal de fumaça do afeto aspergido no ambiente. E eles precisavam de afetos, desde a atenção, ao respeito, ao toque, à compreensão, ao estímulo para seguir, sem desistir.
A cada fim de tarde uma ensinança, uma força maior que a de cavar a terra, de lavrar a terra, de colher da terra. Uma força superior. Uma força de abraçar o mundo.
Seguem, mesmo em dias de chuva forte e trovoadas, seguem, mesmo em tardes de luto e doença. Seguem.
A REGA
Dona Ceição aprende a cada fim de tarde uma lição nova. Aprende que seu Tomás desmaiou porque almoçou às 11 da manhã e às 8 da noite tinha fome. Aprende que ganhar um potinho de plástico com doce de mamão é afeto verdadeiro. Aprende que alisar os braços ásperos da dona Maria faz diferença. Aprende que receber a atenção de seus alunos a faz gigante, muito melhor. Aprende que o que sabe e reparte faz mudar vidas, mesmo sendo ela ainda tão nova e tão inexperiente. Aprende que ensina e o que lhes ensina a torna uma fada madrinha pra eles, realizando seus sonhos mais remotos.
Aprende que há beleza em todos os lugares, que tudo é lirismo, é poesia. Então, verseja.
FLORAÇÃO
Na rota, um porto
Na reta, um ponto
insípido inóspito infértil
No tronco, uns galhos
Nos galhos umas folhas
secas opacas estéreis
Alma no trajeto
Curvas no caminho amargo
Gotas de perfumes
Pingos de cores
Chuvas de flores
fertilidade, sedução
produção
Poesia
Caminhos doces então.
FRUTIFICAÇÃO
A frutescência é segura. Passam-se as estações. O brilho das folhas mostra que tudo vai dar certo ali. As flores perfumam sem perfumar, de fato. Perfumam com sorrisos, com cantorias, com contação de causos, com afetos e solidariedade repartidos. Perfumam com a LEITURA DE MUNDO feita aos pouquinhos, de carreirinha e depois ligeira, com prazer e gosto. Perfuma porque acende a criticidade, a contestação, os questionamentos. Perfuma porque ensina à dona Ceição que ela está no caminho certo, iluminando com conhecimento e afeto as vidas.
PURA POESIA !
Texto e poesias: Odonir Oliveira
Fotografias do mineiro adoçado com as águas do rio Doce: Sebastião Salgado
1º Vídeo: Canal Gravadora Galeão
2º Vídeo: Canal Odonir Oliveira
3º Vídeo: Canal Alfredo Pessoa
NOTA
O atual governo quer liberar até 40% o ensino a distância para o ensino médio. Para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), a proposta é permitir que 100% do curso seja feito fora da escola.
O ensino online, além de implicar na redução do número de professores e, consequentemente, no fechamento de escolas, impede que pessoas sem acesso à internet continuem estudando. Profissionais e especialistas em Educação são unânimes em afirmar que esse é mais um duro golpe na educação e na qualidade do ensino de todo o país.
“É a terceirização da escola pública”, denuncia a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), em nota divulgada na semana passada.
“Ao invés de investir na formação, na contratação, na valorização de professores e em quadros técnicos administrativos, na infraestrutura e na ampliação de escolas e turnos integrais, o governo ilegítimo, fiel à Emenda Constitucional (EC95), que implantou o mais cruel ajuste fiscal da história do país, opta por precarizar ainda mais o ensino médio brasileiro (e EJA)”, diz trecho da nota.
Notícia que circulou no dia 26 de março de 2018, em vários veículos de informação do país.
Meu amigo querido, só você é capaz de me compreender e guardar com cadeado meus sentimentos.
Mas estou apaixonada pelo Paulo. Ele finge que não sabe. Ou sabe e brinca com meus sentimentos. Acho que vou morrer.
Ontem no hi-fi na casa da Cristina, eu achei que ele fosse ficar dançando só comigo, mas nada deu certo. A Vera chamou ele pra irem lá fora… e ele foi, querido amigo, ele foi. Por que, querido diário, por quê?
O Maurinho veio dançar comigo, né. Eu dancei. E depois quando colocaram aquele disco de capa preta do Roberto, uau, ele só queria ficar comigo. Gosto dele porque é engraçado, um pão, mas é só, né. Você entende?
Eu queria mesmo era ter ficado dançando todas as lentas do Roberto com o Paulo. Adoro seus olhinhos azuis, aquela carinha de danado, safado. Mas comigo não é não, viu. É um pão mesmo !!!!! Às vezes fico em dúvida de quem é mais pão, se ele ou o George Harrison. Ah, mas é diferente, né, você me entende. Por isso colei o pôster do George aqui na parede do meu quarto, bem grandão. Durmo e acordo olhando pro George. Já o Paulo, posso ver todo dia, toda hora, mora aqui na esquina, né.
Mas por que ele não ficou comigo no hi-fi? Eu sei que ele gosta de mim. Ah, mas também o Jorjão dança samba bem pra chuchu. Dançamos muuuuito!!!! Estava com aquele cheiro de cigarro, credo, reclamei e ele me disse “Sou homem, né.” Pode isso? Achei muito babaca a resposta dele. Não fumo porque é tudo de ruim. Cheiro ruim, boca ruim, fede na roupa e pra beijar então, uau, que horrível!!! Pior é que esses meninos todos só querem fumar agora. Acho uma babaquice enorme, só pra provar que já são homens. Ah, e beber também. É uma cuba-libre depois da outra, será que é pra ter mais coragem de chegar nas meninas, por medo de levar um não? Eu bem que fiquei sacando isso. Bicho, é muita bobajada, pô.
Imagino que estou beijando o Paulo.
A Márcia é tão linda, né. Aquele cabelão louro, meu Deus, os meninos ficam todos na paquera dela, mas ela é muito novinha ainda, nem pensa em namorar nem nada, é um charme, e quando crescer, nossa vai ser só gamação. Escrevi no caderno de recordações dela ontem. Já entreguei.
Vou ter que tomar uma atitude com o Paulo. Ele fica todo ciumento com meus amigos aqui na varanda de casa, não gosta que eles falem palavrão perto de mim, imagina só, e na verdade acho que ele quer seu meu dono. Será que ele é tímido? Não, acho que não. Detesto menino tímido, dá uma canseira, ô saco, viu. Vou resolver isso. Mas gosto dele. Nem pensar em fazer joguinho de ciúmes como a Míriam faz com o … , você sabe, já te contei, né. Acho horrível, e se faz de santinha pros pais e até com as meninas. Acho uma sonsa, essa Míriam.
Estou respondendo o caderno de Questionário da Martinha. O Paulo já respondeu uma porção de coisas iguais as que eu vou responder, caramba. Verdade!!!! Nossa, mais uma, outra, meu Deus, igualzinho a mim. Não é possível. E escreve sem erros, hem, difícil isso. Os meninos todos erram. Mais que as meninas. Verdade.
Ah, peguei emprestado um livro. Vou ler, depois conto o que eu achei, tá legal?
Vou dormir, olhando pro George e pensando nos olhinhos azuis do Paulo.
Há esconderijos tantos, quanto a quantidade de estrelas nos céus.
É noite ali. Duas grandes aves fazem galhardos voos por sobre a imensidão do mar. Gostam de mar. E rodopiam e se inclinam e se abaixam e se tocam e decolam e vão e vêm. Primo de Fernão Capelo, Gusmão aprendeu muito sobre ele, mesmo sem tê-lo conhecido. Aprendeu. Era de garbo inconfundível, diziam que herdara tal brilho e lepidez da linhagem Fernão Capelo. Fato é que, com lindas penas negras, era cobiçado por aves de portes outros, de timbres e sagas menores. Despertava inveja.
Dormia nas areias, mas tinha predileção por altos picos e até por cordilheiras. Era assim Gusmão.
Já Filomena era de porte menor, mais alvissareira, acostumada aos mesmos ninhos, aos arredores. Gostava de pesca, mas também de frutas. Saboreava o vento, mas admirava o calor do sol. Era de pouca linhagem, plebeia no reino das aves, talvez. Voava. Voava muito, durante muitas horas. Mirava os de terra de maneira desconfiada. Estava com seu ângulo de pássaro sempre mais aberto.
Quando geminada a Gusmão, precisava ter fôlego maior porque seus planos de voo eram sempre muito mais arrojados e ambiciosos. Seguia em bando, muitas vezes a seu lado, outras vezes na segunda ou na terceira fila. Seguia.
Naquela manhã uma graúna já havia elaborado a estratégia a executar. Outros, como dois albatrozes, um carcará e até umas jandaias, saíram dos cantos mais recônditos e seguiram as cartas de voo anunciadas.
Começaram por atacar Filomena que, de morfologia e etimologia idênticas, não entendera todos aqueles ataques orquestrados, vindos dos quatro pontos cardeais e de várias tonalidades. Não conseguiu detectar o perigo a tempo. Aturdida, foi bicada muitas e muitas vezes até cair nas pedras do penhasco, à beira-mar. Ferida, muito ferida. Ferida de morte.
Gusmão nem percebera os ataques sofridos por Filomena, distraído que era, e encantado com seus grandes voos. Quando deu por si, já era tarde. Ficou sem entender e sem encontrar Filomena mais.
Certa tarde, o sol declinava no horizonte, quando a gaivota Gusmão avistou uma mancha nos rochedos. Teve vontade de ir ver o que era, mas seu último voo estava atrasado e precisava proceder a seu desfile vespertino.
No dia seguinte, na alvorada, Gusmão sobrevoou os rochedos e nada viu. Deu em seu próprio corpo várias voltas, mergulhou fundo como se fosse no mar, nada encontrando ali.
Professor é aquele que mesmo em momentos de diversão, deleite, encontra ali um vínculo, um link a ser feito também com seu ofício de ensinar.
Conheci pessoalmente Fernando Sabino numa noite de novembro de 1991. Fui assistir a uma mesa-redonda da qual ele participava, em São Paulo. Ao final, ficamos conversando, autografou seu último livro que eu havia levado e foi mineiramente o contador de “causos”, que eu previa.
Contei a ele o trabalho que estava desenvolvendo com meus alunos do Colégio Galileu Galilei, nas sextas séries. Conforme eu lhe contava, seus olhos ficavam cada vez mais atentos. Pediu que lhe mandasse alguma coisa deles pra ele ler. Dando-me seu endereço e telefone em Ipanema, no Rio. Enviei as cartas dos meninos e meninas; nelas eles contavam do que mais haviam gostado no livro lido, faziam perguntas e mais algumas meninices tantas. Fernando respondeu uma por uma e mandou para o colégio.
O livro lido era o lindo O menino no espelho.
A SEDUÇÃO
No ano seguinte, as cartas enviadas pelo autor Fernando Sabino foram o start para as novas turmas de sextas séries também quererem ler a obra. “Que livro legal é esse, né, Odonir, o autor até responde a gente. Também quero ler”.” Eu também. “.”Eu também.”
Então vamos fazer de um limão vários jarros de limonada, por que não?
LEITURAS INICIAIS
Iniciamos com o texto “Menino”. Lemos as frases e pedi que marcassem apenas aquelas que seus pais diziam para eles. Foi muito bacana. Houve quem marcasse poucas e quem tivesse assinalado muitas. Rimos, e concluíram que uns eram bem mais “levados” do que outros. Coisas que a infância vai perfumando, como poesia.
MENINO
Menino, vem pra dentro, olha o sereno! Vai lavar essa mão. Já escovou os dentes? Toma a benção a seu pai. Já pra cama!
Onde aprendeu isso menino? – coisa mais feia. Toma modos. Hoje você fica sem sobremesa. Onde é que você estava? Agora chega, menino, tenha santa paciência.
De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe? Isso, assim que eu gosto: menino educado, obediente. Está vendo? É só a gente falar. Desce daí, menino! Me prega cada susto…para com isso! Joga isso fora. Uma boa surra dava jeito nisso. Que é que você andou arranjando? Quem te ensinou esses modos? Passe pra dentro. Isso não é gente para ficar andando com você.
Avise seu pai que o jantar tá na mesa. Você prometeu, tem de cumprir. Que é que você vai ser quando crescer? Não, chega: você já repetiu duas vezes. Por que você está quieto aí? Alguma coisa está tramando…não anda descalço, já disse! – vai calçar o sapato. Já tomou remédio? Tem de comer tudo, você tá virando um palito. Quantas vezes já te disse para não mexer aqui? Esse barulho, menino! – teu pai tá dormindo. Para com essa correria dentro de casa, vai brincar lá fora. Você vai acabar caindo daí. Pede licença a seu pai primeiro. Isso é maneira de responder à sua irmã? Se não fizer, fica de castigo. Segura o garfo direito. Põe a camisa pra dentro da calça. Fica perguntando, tudo você quer saber! Isso é conversa de gente grande. Depois eu te dou. Depois eu deixo. Depois eu te levo. Depois eu conto. Agora não, depois!
Deixa seu pai descansar – ele está cansado, trabalhou o dia todo. Você precisa ser muito bonzinho com ele, meu filho. Ele gosta tanto de você. Tudo que ele faz é para seu bem. Olha aí, vestiu essa roupa agorinha mesmo, já está toda suja. Fez seus deveres? Você vai chegar atrasado. Chora não filhinho, mamãe está aqui com você. Nosso Senhor não vai deixar doer mais.
Quando você for grande, você também vai poder. Já disse que não, e não, e não! Ah, é assim? – pois você vai ver só quando seu pai chegar. Não fale de boca cheia. Junta a comida no meio do prato. Por causa disso é preciso gritar? Seja homem. Você ainda é muito pequeno pra saber essas coisas. Mamãe tem muito orgulho de você. Cale essa boca! Você precisa cortar esse cabelo.
Sorvete não pode, você tá resfriado. Não sei como você tem coragem de fazer assim com sua mãe. Se você comer agora, depois não janta. Assim você se machuca. Deixa de fita. Um menino desse tamanho, que é que os outros hão de dizer? Você queria que fizessem o mesmo com você? Continua assim que eu te dou umas palmadas. Pensa que a gente tem dinheiro pra jogar fora? Toma juízo menino!
Ganhou agora mesmo e já acabou de quebrar. Que é que você vai querer no dia de seus anos? Agora não, depois, tenho mais o que fazer. Não fica triste não, depois mamãe te dá outro. Você teve saudades de mim? Vou contar só mais uma, tá na hora de dormir. Vem que a mamãe te leva pra caminha. Mamãe te ama, viu! Dá um beijo aqui. Dorme com Deus meu filho!
Pedi que fizessem o mesmo com seus pais. Agora seriam eles a reconhecer as frases mais usadas com o filho. E pedi que os pais lhe dessem outro título (Na verdade, fora sugestão de uma aluna. “Odonir, esse título do Fernando Sabino e muito bobo; você já ensinou a não dar título bobinho pros nossos textos, né”). Queria que as meninas e os meninos fortalecessem o conceito e a arte de se dar títulos, ideia central, certa inovação a despertar interesse em quem vai ler etc. Essa interação com a família é de suma importância, posto que integra a família com a escola, ensina o que se ensina por lá, ou até mesmo propicia aos pais se lembrarem do quão meninos já foram. Tudo alegria.
Faz muitos anos, entretanto me recordo de alguns títulos – talvez pela criatividade dos pais – “The mamas and the papas“, “Mãe é tudo igual”, “Criança é graça”, ” A arte de ser pai de aluno de uma professora crítica”. Cada um leu o “seu” e aí deram outros. Foram votados os mais interessantes etc.
“SEMEANDO INFÂNCIA”
Nas próximas aulas, propus que narrassem a aventura ou o fato mais antigo de suas infâncias, aquele de que se lembrassem. Sentados em grupos de 4, começaram a lembrar e ir contando aos parceiros. Eu caminhava pelos grupos, aqui-ali mediando os relatos orais, orientando datação, localização, envolvidos na trama, desfecho etc. Depois eles próprios haviam aprendido e faziam uns com os outros. Votaram no mais interessante, mais arriscado, mais terrível de cada grupo. Depois foram à frente da classe narrar as aventuras vividas. Foi muito interessante notar quantos adjetivos, quanta expressividade havia ali naqueles relatos. Relatos orais na escola, língua oral, devolver o discurso para os meninos – fundamentais a quem aprende e a quem ensina.
Ah, narrei o meu também. Professores devem se juntar aos alunos, sendo com eles também um aprendiz. Lembrei meu aniversário de 5 anos, com bolo de roda- gigante, bonequinhas vestidas nas cadeirinhas e docinhos de moranguinhos, deliciosos, tudo feito por minha mãe lá em Xerém, RJ. Eles adoraram.
PRODUÇÃO DE TEXTO
Pedi que agora escrevessem a sua aventura. Leram para os parceiros do grupo. Aproveitei e fiz rodízio entre os integrantes. É muito importante diversificar. A convivência de alunos com mais dificuldade de escrita e outros com bastante facilidade– sendo mediadores, os ajudando- ensina a tolerância, a solidariedade e estimula a competência– creio eu.
Produziram. Na hora em que foram ler, um menino fez a observação régia “Seu texto quando você contou era bem mais legal que agora que você leu”. Refleti com eles os porquês dessa observação. Fui encaminhando a discussão para que percebessem a distância que havia- tradicionalmente- entre a norma culta falada e a escrita e que podiam conhecer ambas e usá-las como desejassem, quando preferissem ou fosse necessário etc. A famosa adequação da linguagem à situação de uso.
NOTA DE CONTEXTUALIZAÇÃO
Cumpre lembrar que esses meninos e meninas não tinham mais de 12 anos. Idade em que se é bastante criança ainda, mas se nega isso ao extremo. Meninos só gostam de meninos, reproduzem comportamentos masculinos clichê, difundidos há décadas, e meninas também reproduzem as feminices todas. Há um confronto enorme de ideias, de sentimentos entre eles, chegando até a algum tipo de violência – física ou velada. A crueldade se espalha como perfume. Prefiro tirar deles o perfume. Sempre. Portanto, é preciso ensinar-lhes a lidar com sentimentos como ódio, raiva, agressão – naturais – mas transformando-os. E arte, criatividade é o “canal”, porque tem como matéria-prima os afetos, as sensações.
Foram feitas várias edições. E foi porque eu corrigi, com caneta vermelha? NÃO. Os leitores, o público leitor ao qual se destinavam aqueles textos é que deveria opinar. Passaram a fazer as críticas por escrito, em bilhetinhos, que eram presos por clips e entregues ao escritor. “Acho que tem muitas palavras repetidas”. “O final ficou sem graça.” “O título já conta tudo.” ” Tem muita troca de letras.” “Gostei, achei bem interessante. ” “Melhore a pontuação, tá faltando vírgula demais aí” etc.
Por fim, pedi que reescrevessem os textos e os ilustrassem com desenhos, colagens, o que fosse pertinente às aventuras vividas.
Ah, virou livro, né. Lindos livros até com grãos de feijão e de arroz, simulando uma narrativa ligada a um prato de sopa puxado pela toalha da mesa e derrubado na cabeça da menina; outro narrou o dia em que se perdeu na CEASA; outro a neve de onde havia morado e o frio sentido. Tantas narrativas da infância.
Lemos Drummond, então.
Lembrança do mundo antigo
Clara passeava no jardim com as crianças. O céu era verde sobre o gramado, a água era dourada sob as pontes, outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados, o guarda-civil sorria, passavam bicicletas, a menina pisou a relva para pegar um pássaro, o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranqüilo em redor de Clara. As crianças olhavam para o céu: não era proibido. A boca, o nariz, os olhos estavam abertos. Não havia perigo. Os perigos que Clara temia eram a gripe, o calor, os insetos. Clara tinha medo de perder o bonde das 11 horas, esperava cartas que custavam a chegar, nem sempre podia usar vestido novo. Mas passeava [no jardim, pela manhã!!! Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
APERFEIÇOANDO LEITURAS
Começamos a ler crônicas. Usando a Coleção Pra Gostar de Ler, v. 1,2,3,4. No início de cada um dos volumes lidos há um tipo de biografia: fotobiografia, auto biografia, biografia …
Depois das biografias e de terem aprendido muito sobre FERNANDO SABINO, propus a leitura de O menino no espelho, então.
Pareciam íntimos do autor. Sabiam que era botafoguense roxo, tocava bateria, o nome de todas as suas obras, que fora nadador campeão, quase profissional, que morava em Ipanema e que era “amigo da Odonir”. Facilitava, é ou não é?
Foram lendo capítulo a capítulo, de várias maneiras. Havia dias em que fazíamos leitura compartilhada em classe, outras vezes dramatizavam o capítulo lido em casa. Ilustravam os capítulos, reescreviam alguns finais etc. A obra traz histórias quase independentes umas das outras, com o fio condutor do personagem Fernando e seu duplo Odnanref. Chegaram a fazer seus auto-retratos, atribuindo a eles seus nomes ao contrário também. O meu, por exemplo, ficou Rinodo. Só alegria. Poesia inoculada em todos.
Digo alegria porque CRIAR é mágico. O professor que levanta cedo e não se sente autor, criador do seu trabalho está condenado a ser um ” dador de aulas”, triste dele. É preciso ENCANTAR-SE para também ENCANTAR – penso eu.
O HAPPENING
Telefonei do colégio para contar ao “meu amigo” Fernando o trabalho. Mas mal comecei a falar, ele me disse que estaria dali a 2 semanas em São Paulo – iria assistir a um show da filha Verônica Sabino – e queria conhecer “minhas meninas e meus meninos”. Não precisava me preocupar com nada, com passagem hospedagem porque ele estaria indo de qualquer maneira para o show. Adorei. Contei às crianças. Preparamos um happening para abraçá-lo – ora, ora.
Fizeram muitos cartazes – sob a forma de placas – que iriam carregar nas mãos com tudo aquilo que sabiam dele, desde ser botafoguense, ser mineiro, nadador, até baterista. Pintamos faixas com os nomes dos personagens e mensagens deles para o autor. Uns meninos se caracterizaram como os personagens do livro. Havia uma bateria num palquinho e a banda dos alunos do colegial a postos.
Pais e funcionários do Colégio Galileu Galilei presentes .
A CHEGADA
O motorista o trouxe, e eu fui buscá-lo na entrada que tinha uma escadaria da portaria até o pátio. Ele me beijou e logo foi dizendo “Olha, eu sei que essa criançada é muito tímida. Pega um mais desinibido, e ele me faz uma pergunta. Dali eu emendo e vou falando solto. Não gosto desse negócio de palestra não. E eles são pequenos, né. Pode ser?”
Nada disse, aliás, acho que falei que seria assim.
Quando entrou no pátio, a banda tocou o hino do Botafogo. As crianças, mais de 100, o aplaudiram, levantaram os cartazes. Juro, pensei que ele fosse ter um problema de saúde ali, tamanha a sua emoção. Ia andando no palco, lendo os cartazes, gesticulando, ouvindo o hino, aplaudindo os meninos. Um ESPETÁCULO INENARRÁVEL aqui, podem crer. Tanto que me lembro tão bem dele até hoje.
Contou muitas situações vividas por ele, a mudança do nome para Fernando Sabino, sugerida por Mário de Andrade, sua relação com a natação, (narrada em O Encontro Marcado) com sua infância e que as histórias do livro eram todas verdadeiras, mostrando, inclusive, o canivetinho vermelho – que dá nome a um dos capítulos da obra. Autografou todos os livros das crianças e um para minha filha também.
Depois me pediu para levar TODOS OS CARTAZES para o Rio. Queria tê-los com ele para nunca mais esquecer aquele dia em São Paulo. Adoramos.
Terminou tocando bateria, um solo de jazz, que disse adorar. Mas já sabíamos.
AVALIAÇÃO E RESGATE
A auto avaliação dos alunos foi excelente. Muitos passaram a GOSTAR DE LER ali, dessacralizando um autor, tornando-o de carne e osso. Assim eles próprios dali pra frente poderiam ser escritores também. Publicados ou não.
Também leram quase a obra completa de F. Sabino, nos anos seguintes.
Na verdade, alguns estão por aí hoje escrevendo, e muito bem. Vez ou outra encontro com algum na “nuvem”.
Apresentei esse trabalho em alguns Congressos de Educação com o título de “Um encontro com Fernando”. Na oportunidade havia vídeo, fotos e muitos dos trabalhos realizados pelos alunos – que ficaram com o Colégio, todavia.
Trabalhos de meus alunos são sagrados, não me desfaço deles. Até porque há quem possa se inspirar neles para seguir seus próprios ramais e caminhos, não é mesmo?
Observações: 1- O filme mostrado no trailer O menino no espelho é de 2014 . Uma sugestão é depois de lida a obra, assistirem ao filme e compararem a linguagem de Fernando Sabino à do filme, por exemplo.
2 – Fernando Sabino morreu em 2004. Encontrei ex-alunos, na época, que lamentavam sua morte como a de alguém de sua família. E era.
“No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim”, Fernando Sabino, em “No fim dá certo”, crônicas, Record, 1998
Texto: Odonir Oliveira
Foto de arquivo pessoal
1º Vídeo: Canal Cinesystem Cinemas
2º Vídeo: Canal Baiana Salvador
3º Vídeo: Canal Odonir Oliveira
Leia também outros trabalhos realizados com alunos aqui:
Categoria à direita: “Trabalhos realizados com alunos”
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
POIESIS
“Me deem algum céu em fogo, Neve em dia de verão. Me deem vidas em jogo. Rastros de morte no chão. Amores com ousadia. Frisson de riscos de giz. Que eu faço uma poesia. Ué, já fiz.” (Millor Fernandes, Poemeu)
” Há na poesia, costumava dizer Drummond, evidentemente quando vivo, o encanto de uma fantasia que se cristaliza em realidade. Por trás de sua colocação aparentemente trivial, encontramos um belo veio por onde começar a percorrer os sinuosos caminhos do termo poesia e da radicalidade de sua significação. O dito drummondiano evidencia o que há de mais arcaico no termo: a poesia faz algo com quem dela se aproxima, primeiramente com o poeta, que maneja cartas desconhecidas dele próprio para compor um jogo que modifica regras e surpreende os jogadores (como no Poemeu de Millor); em seguida surpreende o leitor que atesta o valor de obra do poema quando sente em si tais efeitos capturado que é na teia da cristalização de fantasias verossímeis. Amigo de Psicanalistas, o poeta de Itabira recusou-se até o fim a uma análise. Considerava que sua poesia era o meio suficiente e necessário para, ao final de sua vida, poder abrandar o rigor que trouxe consigo das montanhas e poder, no ocaso de tudo, perdoar o seu pai e dar um destino singular ao seu desejo. Sua poesia cristalizava-se, em sua vida, na forma de uma repetição de antigos modelos, mas repetição com diferença. Embora vivesse com poesia no gabinete de seu amigo e empregador Gustavo Capanema, poesia era o que o libertava de sua “escravidão em Papelópolis”, era o avesso do trabalho prático (oposição à práxis) que ocultava com a repetição do igual essa chama que se cultivada transformar-se ia no fogaréu do poema. ”
DIA DA POESIA? POESIA NÃO TEM DIA. POESIA É TODO DIA
CAMÕES, O AMADOR
Como mocinhas de 15 anos poderiam entender sonetos de Luís Vaz de Camões, depois de 500 anos? E ainda virem a gostar de ler poesias, serem capazes de transformar aquela sintaxe clássica dos sonetos camonianos em entendimento, degustação, apreciação e prazer? Como eu, sua professora, poderia fazer germinar essas sementes?
FAZENDO NASCER O DESEJO
Curso de magistério, CEFAM da Escola Estadual Experimental Dr. Edmundo de Carvalho, Vila Romana, São Paulo, duas turmas de 35 alunas iniciam seus estudos de literatura. Era preciso ensinar a elas o gosto por ler, encantá-las, pois só assim fariam o mesmo com seus futuros alunos. Idade de namoros, flertes, iniciações amorosas. Então… vamos de Vinícius de Moraes. E vamos falar de amores !
RODA DE CONVERSA
Discussão sobre a letra da canção, sua poesia, os versos, o eu-lírico masculino ou feminino, a concepção de amor do poeta, semelhante ou diferente das delas ? Tantas perguntas fornecendo matéria-prima para entender não só os sonetos de V. de Moraes, mas depois os de Camões.
Uma das turmas era mais irrequieta, mais dinâmica, mas menos reflexiva e aplicada. Entretanto, adoravam desafios, desafiou bastou. A outra, bem mais dedicada e amadurecida.
Só possuíamos os meus 2 exemplares com os sonetos camonianos. Fizemos muitas cópias, e sentadas em grupos de 4, começaram a ler os sonetos. Pedi que escolhessem os seus preferidos, fossem trocando sonetos e ideias. Achavam difícil a linguagem, a sintaxe contorcida, diferente da norma culta a que estavam acostumadas, até mesmo na escrita de outros poetas. Fomos indo.
Propus-lhes um desafio: que pesquisassem sobre a vida de Camões e de Vinícius de Moraes, procurassem pontos comuns em ambos, mesmo com 5 séculos de diferença. Quem eram aqueles homens, onde viveram, o que escreveram, como viveram e morreram. Tratava-se de ensinar a pesquisar, a fazer uma pesquisa orientada, portanto.
A retomada das pesquisas foi muito interessante e debatida em roda de conversa. Uma delas disse que Vinícius havia recebido o espírito do Camões, parecia ter reencarnado no poetinha. Rimos e propus que desenhassem essa tal metamorfose de um em outro. Começavam a entender as características do lirismo. Os desenhos ficaram geniais e os afixamos no mural.
Nos últimos anos do século XX, a imagem tinha tomado a vez e a voz da comunicação, poemas concretos, vídeo clipes … atraíam as jovens, gostavam de ver e de criar também.
Na sequência propus a leitura dos poemas escolhidos, mas em casa, num fim de semana.
Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar; não tenho, logo, mais que desejar, pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada, que mais deseja o corpo de alcançar? Em si somente pode descansar, pois consigo tal alma está ligada.
Mas esta linda e pura semideia, que, como um acidente em seu sujeito, assim como a alma minha se conforma,
está no pensamento como ideia: [e] o vivo e puro amor de que sou feito, como a matéria simples busca a forma.
NAMORANDO CAMÕES
A tarefa era ler o poema escolhido para várias pessoas, para o namorado, o pai, a mãe, o vizinho, o irmão, a avó, o porteiro, o zelador, o rapaz da cantina … O objetivo era sentir a reação dos ouvintes, apurar as leituras e, talvez, já conseguir caminhos de interpretação. O que seu namorado achou, sua mãe compreendeu, seu vizinho quis saber de quem era o poema- perguntas simples para afinar a música, digamos assim.
A função social da leitura de Camões ampliou-se muito, mas muito mesmo. A diretora da escola foi convocada para falar sobre, as pedagogas, outros professores, enfim, Camões circulou na área. E bastante. O resultado foi uma grande mobilização sobre o tópico e familiarização com o poeta. Sabiam muito sobre ele agora.
ESCREVENDO AS BIOGRAFIAS
Criação de texto coletivo e criativo com a biografia de Camões (cada turma fez a sua produção)
Se as penas com que Amor tão mal me trata
Permitirem que eu tanto viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;
E se o tempo, que tudo desbarata
Secar as frescas rosas sem colhê-las,
Mostrando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em bela prata;
Vereis, Senhora, então também mudado
O pensamento e aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.
Suspirareis então pelo passado,
Em tempo quando executar-se possa
Em vosso arrepender minha vingança.
O QUEBRA-CABEÇAS DOS TEMAS CAMONIANOS
As imagens iriam ajudar. Expliquei que haveria plantões individuais comigo para que discutíssemos qual a melhor representação gráfica, o desenho – colorido ou não – do soneto “de cada uma” . Propus que fizessem em papel vegetal e que a interpretação escrita pudesse ser lida por baixo do desenho, que estaria, portanto, sobreposto a ela – camadas de interpretação. Então, seriam duas formas de interpretação: a visual e a escrita.
Datilografaram os poemas sobre os desenhos em papel vegetal e também as curtas interpretações sobre eles. O objetivo era a síntese interpretativa e não um texto longo. Transformaríamos o conjunto dos poemas em um livro. Cada turma elaboraria capa interessante, índice, acrescentaríamos a biografia e os desenhos e interpretações. Mas … como fazer um índice … por ordem alfabética– propôs alguém. Não aceitei, pois que tinha um objetivo chegar aos temas camonianos ( Isso é muito simples de se “estudar” em apostilas e livros didáticos – sabe-se – sob a forma de itens, com exemplos prontos, sem descobertas, sem criatividade, sem interpretação, sem nada. Os alunos decoram para a prova e acabou. Não aprendem a fruição dos poemas, nada).
Desafiei-as a começarem a falar – veja, oralmente – sobre o que conversáramos nos plantões, sabia que iriam reconhecer intersecções entre os temas dos poemas de umas e de outras. Começamos, e na lousa, foram escrevendo as ocorrências. Chegaram aos temas, talvez não com as palavras da crítica literária, mas chegaram. A decodificação fui fazendo junto: a fugacidade do tempo, amor platônico, amor libertador, morte, perda do amor, a existência humana, beleza, amor não correspondido, conflito, conversa com o amor, amor submisso, sonho e saudade da amada … Virou índice.
APRESENTAÇÃO DOS LIVROS DE POEMAS
Minha introdução
Índice por temas e os nomes dos poemas e as páginas
Biografia de Camões
Poemas e interpretações
SARAU LÍTERO-MUSICAL
Declamação dos poemas (acompanhadas por violão ou piano, com caracterização das alunas)
Plateia: pais, colegas e professores
A capa do trabalho de uma das turmas, a da direita, ” Uma releitura da lírica camoniana”, deteriorou-se porque era feita também em papel vegetal, o livro vinha enrolado nela, qual um pergaminho, e fechado com um lacre. Anos depois a refiz de forma simplificada, apenas para conservá-lo melhor.
DURAÇÃO DO TRABALHO: cerca de 4 semanas
2º ano de magistério- Nível Médio
Minha introdução
BIOGRAFIA DE CAMÕES
ALGUNS POEMAS E INTERPRETAÇÕES
OBS: Muito se falou ali sobre amor, namoros, concepções amorosas, dor, perdas etc. Esse é um dos projetos e sequência didática de que mais me orgulho. Primeiro, porque realizado em uma escola pública, estadual, com menos recursos materiais do que outras do ensino privado. Entretanto, com professores dedicados a um trabalho coletivo e respeitando a individualidade das alunas. Segundo, porque saber ler e interpretar textos – não só os escritos, mas discursos vários – é fundamental para qualquer cidadão. E obter cultura enriquece, depois disso não há retrocessos.
Durante uma década pude apresentar esse trabalho em congressos e cursos, concretizando a ideia de que jovens podem gostar de ler, saborear poemas etc. Muitos dos problemas da educação não são de aprendizagem, mas de “ensinagem“- penso eu. Guardei por 28 anos esse material comigo, sobrevivendo a diversas mudanças de residências e de estados. Algumas imagens estão muito clarinhas, desgastadas por manipulações e pela ação do tempo. Mas trabalhos de meus alunos são sagrados, não me desfaço deles. Até porque há quem possa se inspirar neles para seguir seus próprios ramais e caminhos, não é mesmo?
Leia também outros trabalhos realizados com alunos aqui:
Categoria à direita: “Trabalhos realizados com alunos”