Hora de chegar, hora de partir…

FUGA
Não são jardins,
não têm fragrâncias
as flores que se exibem aqui.
Não há cores,
não têm do dia os tons do laranja
nem da noite o perfume das damas
magnólias rosas cravos e jasmins.
Fuga dos exílios de mim.
Fuga dos exílios de peles gotas sementes.
Fuga do desterro opressor de décadas.

JANELA
Era sol
Era água
Era lago, lagoa, rio.
Era amanhecer
Era entardecer
Era anoitecer
Era madrugada em sintonia
Era madrugada em sinfonias.
Era gelosia centenária
Era veneziana secular
Era peitoral histórico.
Era janela dos olhos.
Era explosão do sentir.

RETÁBULOS
Sagrados aros
altares expostos
falares repostos
ouvires devotos.
Minas serras
Minas terras
Minas entranhas
Minas estradas
Minas, mineiros guardiões.
Minas, mineiros paixões.
Um dedo, um sonho, um medo
Uma rebelião.
Uma porta
Uma retorta
Um arco
Uma janela composta
Um olhar distante
Montanhas em tela.
Inspiração
Entrega
Expiação.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Damiao Almeida

2-3-4- Canal Odonir Oliveira

A flor do Lobo

A ÁRVORE DO LOBO-GUARÁ

Nesse consórcio

nesse latifúndio de à meia

uns plantam

outros semeiam

uns comem

outros cantam

Nesse mutirão de tarefas

uns vêm de dia,

outros de noite.

Companheiros

em pelos e asas,

em completa adequação.

Natureza ensinando

a sua lição.

Poesias: Odonir Oliveira

Vídeos: Canal Odonir Oliveira

Crônica de domingo

Durante mais de uma década, no Rio de Janeiro, lia crônicas aos domingos no Jornal do Brasil. Meu pai só comprava esse jornal, mais denso e mais caro, aos domingos. Quando comecei a dar aulas, já em São Paulo, a Editora Ática lançou a Coleção Pra Gostar de Ler, com vários volumes de crônicas – quase 100% já lidas por mim no Jornal do Brasil. Os grandes cronistas Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade sempre foram meus amigos nos passeios literários dos domingos, até mais do que à praia, bem, às vezes também os levava comigo, junto com a esteira.

O FILTRO D’ÁGUA E O PODER PATERNO

Quando se é bem pequena, existe um medo de apanhar dos pais que a gente se pela, mesmo que não se esteja acostumada a apanhar. É assim como se os pais tivessem a chancela, a licença para “bater nos filhos”. E quando estão com raiva, noossa, sai debaixo que a força é maior (mesmo que sejam eles que fiquem com dor nas mãos) é uma prerrogativa dos pais poder bater nos filhos. Ou era. Amigos apanhavam de cinto, gritavam etc.

Nunca fui arteira, dissimulada e irresponsável em não assumir o que fazia. Já ia contando logo. Minha mãe era a do discurso, falava por horas, dissertando, narrando, exemplificando o acontecido etc. Já meu pai era mais compreensivo, pesava numa balança sensível o erro e concluía que entre erros e acertos – no meu caso, por exemplo – a balança estava mais a favor. Mas é verdade que eu não gostava de desagradar meu pai. “Eu lá trabalhando e vocês arranjando confusão em casa”.

Quando meu irmão do meio brigou e acertaram uma pedra no vidro do balcão da padaria, só meu pai teve que pagar. Não se eximiu, assumiu o prejuízo e pagou. Quando aos 12 anos, caí do morrinho e quebrei a perna: tíbia, calcanhar e perôneo; levada ao Pronto Socorro no centro do Rio de ambulância, acompanhada pelo meu irmão mais velho (no dia de seu aniversário, imagine); meu pai foi nos buscar e voltou na ambulância comigo. “Eu lá trabalhando e vocês arranjando confusão em casa”. Mas fez um coçador de varinha de bambu pra eu coçar dentro do gesso porque me incomodava; gostava de me ver lendo e estudando, mesmo sem poder ir à escola em Petrópolis. Pesava na tal balança e…

Mas foi bem antes disso, quando tinha uns 9 anos, que resolvi colocar uma cadeira, subir nela, soltar as garras do filtro de porcelana verde, pegar a vela e lavá-la. Por que quis fazer isso, sozinha, sem minha mãe ver, alguém perguntaria. Deduzam e concluam as respostas. Fato é que a vela escorregou das minhas mãozinhas na pia e se quebrou. Era um filtro de porcelana verde, lindo. Meu pai preferia os de barro, como o tenho até hoje. Mas minha mãe achava muito caipira filtros de barro. Fato é que eu a quebrei. Minha mãe tinha o hábito da sesta “Não estou dormindo, estou descansando os olhos”. Ouviu o barulho da vela na pia e me viu sair correndo pro quintal e de lá para a horta. Sumi. Meu pai voltaria da FNM às 17 h e saberia do acontecido.

Quando escureceu, desci da goiabeira branca e fui entrando sorrateira pelo quintal. Ao chegar na cozinha, minha mãe disse:

-Seu pai tá danado com você por causa da vela do filtro.

Não estava em casa, jantara e saíra para a reunião no Sindicato dos Metalúrgicos. Mas iria voltar, né. Há um lapso na minha memória sobre o desfecho desse episódio, mas sei que não foi negativo. Meu pai costumava suavizar jocosamente o fato de eu volta-e-meia derrubar a água da garrafa plástica na mesa de refeições, entre outras tantas coisas. “Essa menina pegou em ninho de anum, não é possível”.

Se não me falha o sentir, foi depois daquele episódio com a vela do filtro que eu passei a não ter mais medo de apanhar. Não que eu menosprezasse a possibilidade de ter que apanhar, mas passei a achar que se viesse a apanhar, aquilo não seria mais a pior das coisas a me acontecer.

A base do filtro é essa. Ainda teria uma tampa por onde passava o canudinho com a água que vinha de cima, da vela. Herdei-a de minha mãe e a uso como vaso para galhos e flores secas.

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Titãs

Escritores favoritos – II

Walt Whitman nasceu em 31 de maio de 1819, no estado americano de Nova Iorque. Teve poucos anos de estudo formal, mas trabalhou em diversos periódicos dos Estados Unidos. Em 1855, publicou a primeira versão de seu livro Folhas de relva, que era ampliado em cada edição, sendo a nona e última publicada em 1892. O poeta, que faleceu em 26 de março de 1892, em Camden, no estado americano de Nova Jersey, foi precursor do modernismo. Sua poesia inova ao utilizar o verso livre, pouco comum para a época. Seu poema mais conhecido é “Canção de mim mesmo”, pertencente a seu famoso livro Folhas de relva.

POR TI, DEMOCRACIA

Vem, tornarei o continente indissolúvel,
farei a mais esplêndida das raças
que o sol jamais clareou,
farei terras magnéticas divinas
com o amor dos camaradas,
com o duradouro amor dos camaradas.
Hei de plantar o companheirismo
denso como o arvoredo a margear
todos os rios da América,
ao longo das margens dos grandes lagos
e pelos prados todos
farei cidades inseparáveis
umas com os braços nos ombros das outras
com o bem humano amor dos camaradas.

A ti, ó Democracia, de mim,
é isto – para te servir ma femme!
A ti, por ti, vou estes cantos entoando.

(pp. 62 e 63)

11.

forma dela surge,
ela vem menos guardada que nunca
e ainda assim mais guardada do que nunca,
os grosseiros e sujos
entre os quais ela passa
não a tornam grosseira nem suja,
ela adivinha os pensamentos ao passar
e a ela nada se pode esconder
mas nem por isso é menos delicada
e atenciosa – é a mais bem-amada
sem nenhuma exceção,
não tem motivos par e não teme,
maldições, brigas, canções de duplo sentido,
expressões chulas são para ela inócuas
quando ela passa calada que vai,
bem segura de si,
coisas assim não chegam a ofendê-la,
ela as aceita assim como as aceitam
as leis da Natureza,
forte como ela é
-também ela é uma lei da Natureza
e lei mais forte do que ela não existe.

(pp.83 e 84)

CERTA VEZ NUMA CIDADE

Certa vez eu passei
por uma cidade bem populosa,
guardando no meu cérebro impressões
para futuro emprego,
com suas mostras, sua arquitetura,
costumes, tradições,
embora dessa cidade eu agora
me lembre apenas de uma mulher
que encontrei por acaso
e me deteve por amor de mim
e juntos estivemos
dia por dia e mais noite por noite
-posso afirmar que só me lembro mesmo,
dessa mulher que se apegou a mim
apaixonadamente,
de quanta vez andamos, nos amamos,
de novo nos deixamos,
de novo ela a pegar-me pela mão,
e eu sem precisar ir:
vejo-a bem perto a meu lado
de tristes lábios trêmulos
calados.

(pp. 57 e 58)

A NOVA PESSOA QUE VEM A MIM

A nova pessoa que vem a mim
é você?
Ouça um conselho, para começar:
eu sou com certeza bem diferente
do que você imagina.
Você imagina encontrar em mim
seu ideal?
Acha tão fácil assim eu me tornar
seu amante?
Pensa que minha amizade
é fonte de satisfação sem impureza?
Julga que eu seja fiel e digno de confiança?
Além dessa fachada,
do meu jeito macio e tolerante,
você não vê mais nada?
Acha que vem avançando
em bases realmente firmes
na direção de um homem realmente heroico?
Pela cabeça nunca lhe passou,
ó sonhador,
que tudo isso pode ser maya, ilusão?

(p.63)

Leia aqui no blog outros de meus escritores preferidos: Escritores preferidos –  https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/escritores-preferidos/

Fotos de arquivo pessoal: setembro de 2017- Parque Estadual do Rio Doce, PERD.

Vídeo: Canal Odonir Oliveira

Meus guias

Há quem siga gurus, heróis, mitos… também tenho meus guias. A eles devo o que sou – pela observação, pelos exemplos, por sua magnitude, permitindo-me contemplações.

Guimarães Rosa

GUIAS DE ASAS

Esperem, me guiem

vocês são muito velozes

vou devagar

tenham calma

isso, me levem a ele

peguem minhas mãos com suavidade

borboletas são anúncio de rio

obedeço porque têm toda a sabedoria

conduzem meus passos

fazem asas de meus pés

beijam meus olhos

abraçam meus ouvidos

o rio ri

já ouço seu riso bem perto

o rio faz-se voz e vez

estou aqui

CORRENTEZAS

jorra água

jorra flor

jorra aroma

jorra folha

jorra flor

jorra cor

jorra dor

jorra verso

jorra amor

corre o rio

corre a flor

corre o tempo

corre o vento

corre o verso

corre o amor

curso de rio

decurso do tempo

percurso do verso

correnteza do amor

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Odonir Oliveira

Efeito Pigmalião

PIGMALIÃO REVISITADO

-Mãe, sei que você não gosta de opinar sobre namoradas, mas vou telefonar amanhã porque quero te contar umas coisas e saber outras, tá – escreveu o filho, rapaz solteiro, na mensagem.

No dia seguinte, eu ouvi atentamente tudo, perguntei o que queria saber de mim, o que ainda não sabia por si mesmo etc. Depois de ouvir tudo apenas lhe disse:

-Cuidado para não ser um Pigmalião e depois vir a se decepcionar com o resultado da “criatura”, em relação ao esforço de seu “criador”. Não tenho nem experiência com isso, nunca quis moldar ninguém com meu cinzel… tenho pouco a te responder. Informe-se, observe e sinta se não é o PRAZER de fazer a outra na sua fôrma autoral, acompanhar seu desenvolvimento, suas mudanças o que lhe agrada. Isso é completamente narcísico, até com os filhos que criamos o é. Preste atenção.

Lembro-me de ter acompanhado a novela Pigmalião 70, da TV Globo, quando morava no Rio. Pouco aprendi sobre o mito, seus efeitos etc. Na época, novelas eram altamente formadoras de valores, de moda, cortes de cabelo (o “corte pigmalião”, por exemplo, era o de Tônia Carrero na novela, e todo mundo queria igual). Lembrava-me pouco do enredo, mas relendo-o agora me veio rapidamente à memória.

O relato mitológico


Em vários relatos da mitologia grega e na obra “As metamorfoses” do poeta romano Ovídio, conta-se que Pigmalião era um rei triste e solitário que vivia na ilha de Chipre. A única paixão do rei era a escultura e, por este motivo, decidiu esculpir a estátua de mármore de uma mulher perfeita e ideal. Quando terminou a escultura, colocou o nome de Galateia.

Embora estivesse totalmente satisfeito com sua obra, o rei se sentia frustrado porque não podia amar uma mulher de mármore. Seu amor impossível chamou a atenção da deusa Afrodite, que comovida com o sentimento sincero do rei fez com que Galateia se tornasse uma mulher verdadeira, de carne e osso.

Desta maneira, o rei Pigmalião decidiu casar com sua amada Galateia e, segundo a tradição mitológica, da união de ambos nasceu a ilha de Pafos. […]

A ideia fundamental


Na década de 1960, os psicólogos Rosenthal e Jacobson fizeram uma experiência com um grupo de professores e alunos. Comunicou aos professores que seus alunos haviam passado e superado uma série de provas que demonstravam suas capacidades mais elevadas.

No final do curso os alunos obtiveram excelentes resultados acadêmicos. O curioso sobre esta experiência é o fato de que estas provas iniciais nunca ocorreram. […]

Os pesquisadores tiraram a seguinte conclusão: os bons resultados obtidos foram devidos ao fato de os professores terem grandes expectativas em relação aos seus alunos.

Na área da psicologia, esta experiência demonstra que as expectativas de uma pessoa podem influenciar de forma favorável ou desfavorável no rendimento dos outros. Assim, quando um pai diz ao filho que espera muito dele, é bem provável que o mesmo reaja positivamente, pois as palavras de um pai servem para potencializar a autoestima e a motivação pessoal. Obviamente, para que o efeito Pigmalião-Galateia funcione corretamente, é necessário que as expectativas projetadas estejam baseadas em possibilidades reais de sucesso e não em suposições.

Uma estratégia que pode ser incorporada no contexto do ensino.

As conclusões do efeito Pigmalião-Galateia têm sido úteis para ativar todo tipo de estratégia no campo da educação. Assim, psicólogos, pedagogos e educadores empregam este recurso para motivar seus alunos em seu processo de formação.“[…]

Fonte: Conceitos.com https://conceitos.com/efeito-pigmaliao-galateia/

Texto: Odonir Oliveira

Imagem retirada da Internet

Vídeo: Canal Mania Mundo Musical

Os mais lidos

Os mais lidos aqui no blog (de 2015 a 2023), surpreendem por seu conteúdo e por sua forma. Muitos leitores, talvez por não serem da área da literatura, apreciam apenas os conteúdos do que se escreve, não dando importância à forma como tais conteúdos foram escritos. Assim, frente a uma tela, a uma escultura, querem apenas interpretá-la, sem se importarem com a emoção estética. Tudo que produz tal emoção conseguiu isso por usar uma forma, uma fórmula; no caso da literatura, pela escrita: uso de vocabulário, estruturas paralelísticas, adjetivações adequadas, substantivações precisas, verbos de enunciação eficazes etc. Isso só se consegue com hábito de leitura. FORMA e CONTEÚDO caminham juntos no sentido de provocar uma emoção estética em quem lê. Quase nunca é a mesma que conduziu o EMISSOR a produzi-la, mas sem dúvida, será alguma a que atingiu o RECEPTOR. Esses posts são os mais lidos do meu blog. Interessante saber por quê. Uns são de contos, crônicas; outros, de poesias.

SÓ NOS RESTA VIVER: DE CORPO E ALMA

Acabara de completar 70 anos. Nos últimos tempos já não acreditava em quase mais nada do que acreditara no passado. Leitora de Castañeda,  Rajneesh, Tagore, precisava mudar daquele mar, daquela casa quase caiçara em que vivera 10 anos. Queria mato, pedra, rio, cachoeiras,  montes. Nada mais de barulho de ondas quebrando na areia, daqueles coqueiros solitários à noite  …

Fazia artesanato, pintava e era bastante reconhecida por seu trabalho. Depois dos filhos adultos, resolvera ir viver no mar, mas no mar parceiro e não no mar turístico, de férias ou feriados prolongados. Foi assim que escolheu viver ali, quase monasticamente, indo ao arraial mais próximo apenas para buscar uma coisa ou outra.

Agora 70 anos. Rascunhara uns escritos nos intervalos da arte que produzia, mas eram sem alma, sem corpo, sem som, sem melodia, sem cor. Ali a areia já lhe dera tudo o que poderia ter bebido. Escutar o mar, à noite, ver as luas em fases deslumbrantes, tudo aquilo havia passado. Nada era mais como as novidades dos primeiros anos de exílio voluntário naquele paraíso. Não era igual mais.

Sempre fora tida por observadores de plantão como uma alma inquieta, insatisfeita, curiosa, necessitando de desafios, mas ainda seria assim? Achava que não. Queria quietude, sossego, paz, deitar e acordar com bem-te-vis e maritacas, de vez em quando colher rosas e amores-perfeitos num jardim, queria apenas isso. Ou talvez umas frutas colhidas no pé, umas verduras miúdas e terra para pisar. Sempre preferira andar descalça.

Não tinha mais o corpo físico de antes, aos 40 ou 50. Seus seios não eram mais aqueles que os homens gostavam de admirar sob camisetas femininas; suas coxas e pernas não eram mais para consumo externo- gostava de dizer- seus cabelos brancos não seriam tingidos nunca. Era uma mulher que parira filhos, amamentara filhos, cuidara de sua casa, trabalhara sempre para pagar suas contas. Nunca dependera, nem quisera, qualquer ajuda dos pais de seus filhos. Para as crianças, bastava carinho, atenção, compreensão e alguns presentes recheados de ternura dos pais. Era o bastante.

Tomada a decisão. Tudo ficaria para trás. Iria para o mato, para a serra. Iria para a vida. Cena final. Estaria ali a alma de seu discurso escrito? Não sabia. Foi.

Começo difícil. Adaptação difícil. Resolvida a ser e estar só, sem dependência afetiva de ninguém. Seguiu com seus dois gatos, companheiros inseparáveis e fieis.

Cerca de um ano depois de estar vivendo ali na serra, conheceu um homem, devia ter uns 2 ou 3 anos a menos que ela. Conheceu não seria o verbo adequado, ficou sabendo pelo dono da pousada de que se tratava de um cineasta ou poeta, não tinha certeza. Vinha ali muitas vezes, era de outra cidade. Nunca falou com ele, mas a interlocução parecia clara entre os dois. Em princípio relutou contra aquela atração. Parecia ser encrenca certeira e não fora para aquela serra em função daquilo.

Na pousada havia um grande mural onde os hóspedes escreviam mensagens, quase sempre clichês. Ele passou a deixar ali diariamente algum poema, alguma letra de canção, até uma imagem. Quando ela passava no final da tarde encontrava ali vestígios dele. Passou a conhecê-lo por seus textos, imagens … Acreditava que sim.

Passou a se habituar com ele, com suas pegadas, com sua sensibilidade, com seu toque incomum. E quando saía dali, ia para casa, sentava de frente para o pico, cobria-se com a manta de sempre e, ouvindo canções, escrevia. Escrevia o que dele brotara, o que ele semeara. Passou a pendurar no mural da pousada seus poemas, timidamente, mas logo recebeu comentários elogiosos de hóspedes e dos donos da pousada pela qualidade do que havia criado. Ele passou a elogiá-la também, por escrito, sem nunca tê-la visto, sem nunca haver tocado nela.

Ao contrário dele, com a curiosidade de toda mulher,  procurara saber quem era aquele homem, por que lhe causara tamanha impressão. O que tinha aquele visitante que lhe provocara o que tantos, e há tanto tempo, jamais haviam conseguido. Queria desvendar aquele mistério, queria entender mais a si mesma do que a ele. Quem era aquele cúmplice, aquele passageiro ao lado, aquele comparsa.

Ao contrário dela, com a objetividade de todo homem, nunca quis conhecê-la, nunca demonstrara qualquer interesse físico por ela, sequer um telefonema, um recado particular…

Na serra, ficava a olhar o telefone, queria fazer contato com ele – o número já tinha conseguido na pesquisa – mirava o pico, bebia um conhaque e escrevia. Nunca foi atrás dele. Nunca avançou na liberdade que ele parecia querer gozar sem a presença dela. Nunca beijou sua boca, nunca tocou em seus braços, nunca teve seu corpo aquecido por ele. Nunca.

Aos 70 anos não era mais a mulher que um homem gostaria de ter a seu lado, podia concluir e até entender, visto que a objetividade masculina é indiscutível. Mas o que a conduzira até ali? Qual a razão de ter conhecido aquele homem?

Durante mais de um ano isso a atormentou quando caía a noite, o nevoeiro descia, e a xícara de chocolate quente queimava seu peito. Sabia o seu valor, sabia o que tinha de particular. Tinha autoestima considerável e sabia de seus limites também. Mas e ele?

Agora descobrira, apesar da dor, das feridas abertas. Concluíra que a função daquele amor – era amor –  a função daquele episódio com ele era provocá-la, fazê-la escrever. Com corpo e alma.

(Junho de 2017)

Texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Edson Cerqueira Felix

Reflexões daqui da ilha

CARNAVAL, FESTA DA CARNE?
Nas décadas de 50 e 60, no século passado, os leitores das revistas O Cruzeiro, Manchete, Fatos e Fotos, aguardavam a 4ª feira de Cinzas para se deliciarem com as fotos das mulheres “vestidas” e fantasiadas para os bailes do Municipal, do Copa, do Sírio Libanês, de outros clubes cariocas famosos. Sempre mulheres lindas, roliças, bronzeadas e em largos sorrisos. Eram motivação para desejos vários: modelos para mulheres reais e cotidianas se espelharem, se compararem etc; para homens as desejarem e as copularem em seus banheiros, solitariamente. A quem serviram essas publicações por décadas?
A revista Playboy, idem, e as nacionais também. O corpo feminino exposto a visitações sempre. O que hoje denuncia-se nas novas gerações de rapazes que se educaram vendo filmes pornô pela Internet, já acontecia antes; o fascínio pelo exterior sempre foi assim. E não no varejo – o que seria até natural – mas no atacado.
Certa vez, uma moça de 20 e poucos anos, irmã de uma modelo famosa que frequentava a casa de meu irmão respondeu ao ser indagada sobre seu carro importado caríssimo, estacionado embaixo, no prédio, “É meu. Paguei com credicorpo”. Nesse carnaval de 2023, vi sua sobrinha, com todas as transparências em dia na Sapucaí, reclamando disso e daquilo.
Uma atriz global retrucou que quando eram os homens que ganhavam com a nudez feminina, ninguém reclamava, agora que as mulheres querem faturar elas mesmas com seus corpos, todos reclamam. Impossível não ser risível. Os fins justificam os meios? Equívoco estrutural.
A exposição competitiva nas redes sociais acontece por diversas razões; as “celebridades” recrutam seguidores, com isso se vendem a patrocínios – quase sempre não para seus trabalhos, mas para seus cofres; já as “mulheres comuns” seguem isso e pegam carona em vidas de celebridades, de exposição, seja para comprovar que têm machos consigo, que têm patrocinadores consigo, que não estão sós. Pena.
Tenho uma filha à beira dos 44 anos. Linda, 1,80 de altura, magra, olhos verdes, uma profissional da comunicação. Vive fora, jamais expôs com quem vive, onde está, não gosta sequer que se postem fotos nos países onde viveu “Mãe, não posta na bosta do Facebook, hem”. Às vezes fico tentada a mostrar como é linda por dentro e por fora, como sempre lutou pelo que quis, como não se submete ao jugo e ao chicote masculino. Se amar, precisa se sentir amada, caso contrário, sai fora, não aceita calada, não se submete, nem se humilha. Sempre pagou suas contas. É linda mesmo!
Claro, somos o que aprendemos a ser, com os modelos e exemplos que tivemos, e reproduzimos isso. Mulheres se equivocam – a meu ver – usando as mesmas argumentações masculinas por “direitos iguais”; não são direitos, ao contrário são escravizações ao machismo estrutural, tão arraigado, mas tão arraigado, que só por nós – as outras mulheres – pensarmos de forma diferente, já seremos etiquetadas como retrógradas, de outra geração, velhas, antifeministas, invejosas…
Pena.
Fico aterrorizada: como podem escrever que uma menina de 7 anos já está ficando uma mocinha. Bem, na Índia já poderia até ser e estar casada com um garoto. Aqui, por favor, NÃO!
Sejamos responsáveis, né.

Dias atrás assisti no Canal Curta a um documentário “Grupo de Bagé”https://www.canalcurta.tv.br/filme/?name=grupo_de_bage&fbclid=IwAR269qf9OYpNkmiSsHrOIFg4A-RLpl41xw1y35JyOfZpyh6gl7IipjTnAbU -“O Grupo de Bagé foi um movimento artístico surgido no Rio Grande do Sul dos anos 40, protagonizado pelos pintores e gravadores Glênio Bianchetti, Glauco Rodrigues, Carlos Scliar e Danúbio Gonçalves.” E nele, pude ver o poeta mineiro, Romério Rômulo, amigo de Carlos Scliar, chorar. Achei lindo!

Leia mais em: Meninas de 10 a 14 anos de idade são maioria das vítimas de estuproshttps://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-02/meninas-de-10-14-anos-de-idade-sao-maioria-das-vitimas-de-estupros Quando o corpo da mulher dava dinheiro para os homens ninguém criticava a nudez-https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2023/02/quando-o-corpo-da-mulher-dava-dinheiro-para-os-homens-ninguem-criticava-a-nudez-diz-deborah-secco.shtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compfb&fbclid=IwAR2Mqu9_6eXAm_Hqd_avjRe5do1jhZYsmqw4AS2OjqTFz88daq-9E5Y7WKA A exuberância de Paolla Oliveira aos 40 na avenida é privilégio de poucashttps://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-exuberancia-de-paolla-oliveira-aos-40-na-avenida-e-privilegio-de-poucas-por-nathali/?fbclid=IwAR0-Pc-2-4hue-IcUWg2XKbPBdqsIdv1Ql_mPkrKMr2dih5sO0F73RLQcIk

Texto: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal: minha saudosa e inesquecível paineira

Vídeo: Canal bolachapretafilmes

Meu amor último

“SE QUERES SABER…”
-Mas como é que pode, você não tem medo de andar por essas matas, rios, lagoas, assim sozinha, pode ser atacada.
-Não, não tenho. Sou bicho do mato, é claro que calço botas, me protejo, mas tenho medo, cada vez mais medo, é de gente mesmo. Não ataco cobras, não persigo animais, não faço escárnio de suas incapacidades, de suas perdas de asas, de patas… sigo minhas motivações. Sozinha sim. Aí são só alegrias, enlevos, desenhos de Van Gogh em mim, pra mim, desde barulhos de riachos, a voos de pássaros, de borboletas… Outro dia mesmo uma delas, linda, em vaários tons de azul, ficou fazendo coreografias pra mim, bem pertinho do rio. Na ânsia contemporânea de fotografá-la, de filmá-la, não me permitiu fazê-lo (como os beija-flores aqui em casa também), dançava e se escondia, pensava eu que tivesse ido embora, voltava, era como se me ensinasse mais uma vez a contemplá-la apenas e não a querer aprisioná-la em imagens para eu poder revê-la sempre, fora do seu habitat.
Maravilhada fico.
E isso me basta.

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos: Canal Odonir Oliveira

A praça é do povo

CHEIRO DE GENTE

braços pernas passos

passo e compasso

respiração suor

graça traço laço

emanação contemplação religião

união de olhares

união de falares cantares contares

união de igualdades

união de cores de peles de oportunidades

união de sensibilidades

democraticamente, ver sentir saber

usufruir conquistar usufruir

cheiro de gente

calor de gente

gosto de gente

gente que é gente

Poesia: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Caetano Veloso