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NO DIA EM QUE ME TORNEI MÃE
Ih, mas isso faz muito tempo! - ouviria eu no presente de interlocutores que não conhecem o pretérito-mais-que-perfeito, o pretérito perfeito, sequer o pretérito imperfeito. Convém estudá-los, ou pelo menos vivê-los. Você vive de passado - concluiriam - saiba-se que o pretérito nem sempre é perfeito, na maioria das vezes é pretérito imperfeito, perdura, denota continuidade, permanência, é durativo, entendeu?
Desde a primeira confirmação da maternidade, me fiz ser completo. Amava o pai do ser que chegava em mim e isso era o mais importante. Era dele que queria ter sementes, fazer jardins.
Da primeira audição do coraçãozinho do bebê, um baticum rapidíssimo de nos deixar surpresos, jovens de vinte e poucos anos que éramos. O pai chorou no consultório, de mãos dadas comigo.
Os meses seguintes foram de estudos e de preparação para a chegada do fruto do meu ventre. Mãe e pai lendo, se informando sobre parto natural, em casa, trazendo galhos e gravetos para o ninho. Nada de grandes enxovais, exibições de vitrines em bebês, éramos assim, pensávamos sem ostentação nenhuma.
Fui antes do pai para o Farol de Itapuã, para a comunidade onde já estavam nossos amigos havia quase um ano. O médico, em Salvador, achou que eu era louca em querer fazer um parto Leboyer, em casa, seriam riscos para a criança, que eu estava sendo irresponsável, e muito mais. Isso antes de me examinar, em uma preleção habitual talvez. Após os últimos exames, disse que eu teria quase cem por certo de chance de ser bem-sucedida no parto, pois o bebê já estava bem encaixado, eu engordara apenas 9 quilos, era jovem, sem problemas de saúde etc. Meu bebê não quis expor-se, quis manter sua privacidade e o médico não lhe soube o sexo. Assim, saí dali sem saber se eu teria em meus braços a Carla ou o Ricardo. Tudo natural. Tudo simples. Tudo normal.
Avisei ao pai por telefone que tudo já estava pronto. Poderia vir de São Paulo para participar do parto com nossos amigos. Era uma comunidade de 5 amigos e eu. Naqueles dias tínhamos ainda o médico e sua esposa médica, que viviam pertinho de nossa casa, e tinham vindo de Santos conosco, seu filho de 9 anos e um casal de amigos visitantes, parentes de uma das companheiras da comunidade. Seria um parto coletivíssimo, portanto. O primeiro em nossa comunidade.
Depois do almoço, após o banho, comecei a secar meus cabelos e senti as primeiras contrações. Comuniquei aos meus amigos e ao Carlos, o psicólogo reichiano, mentor de meus exercícios pré-parto, desde caminhadas nas areias do Farol de Itapuã, até os aeróbicos na esteirinha de Yoga etc. Ele me disse exatamente assim "Não te falei que era só o marido vir que seu bebê viria ao mundo?". Calma, porque em nenhum momento em toda a gravidez me atormentei com qualquer fato. Estava entre amigos queridos e me sentia amada pelo pai de meu bebê.
Fomos ao aeroporto buscar o pai do bebê e ainda tive muitas contrações, de meia em meia hora. Fui calmamente ler revistas, enquanto aguardávamos o avião que chegaria de São Paulo.
Mais ou menos às 18 horas, desce o pai do bebê com valise e filmadora para registrar o parto em Super8. Foi quando lhe disse que estava tendo contrações desde depois do almoço. Ele, apavorado, quis ir logo para casa, achava que nosso bebê já iria nascer.
"Fique tranquilo, demorará talvez umas 9 ou 10 horas"- acalmou-o o amigo Carlos.
Assim foi. Deitei-me. Não comi mais nada. Quando sentia sede, meus amigos médicos molhavam meus lábios. Ficaram na sala todos deitados no nosso sofá, num grande colchão de casal, coberto por colcha de retalhos e muitas, muitas almofadas. Ali era o nosso ninho comunitário, cheio de muito carinho, toques e afetos, uma família que abastece, que nutre, que supre. Segurança ampla e irrestrita. Todos os medicamentos foram providenciados anteriormente e esterilizados - exigências de meus dois amigos médicos para fazerem o parto. Além disso, todos estavam a postos, caso fosse necessária a minha ida ao hospital. Variant com tanque cheio, tudo preparado, portanto.
Aos poucos, as contrações foram aumentando. Carlos pedia que eu gritasse, assim como um samurai em ataque, era natural, era preciso. Não foi. Minha filha nasceu às 6 da manhã, linda, saudável e naquele momento foi colocada sobre minha barriga, recebendo carinho do pai e muitas lágrimas de todos. Em seguida, o banho de imersão em água na mesma temperatura em que estava meu corpo. Vestida apenas com uma bata de algodão para que livre estivesse. Deitaram-na no berço balanço com cordas de macramê presas nas madeiras do teto, para que eu a balançasse da cama a seu lado. Todo o mobiliário foi construído por meus amigos, Ri, arquiteto e artista plástico, Ro, artista plástico também. Carlos costurou o lindo mosquiteiro de tule azul clarinho, colamos muitas estrelinhas e luinhas com paetês nele. Era a Carla, a afilhada prometida aos nossos amigos Carlos e Tê. Não posso me esquecer de que Carlos, o terapeuta, o padrinho, lavou todas as roupas de cama usadas no parto, pois não tínhamos máquina de lavar.
Parto normal. Peitos cheios de leite, Carla tinha preguiça de mamar. Compramos a bombinha e a dor ao sugar meus peitos era enorme. No dia em que iríamos começar a amamentação na mamadeirinha... Carlos aconselhou "Dê o peito a ela de novo, Odô, hoje ela vai aceitar". Assim foi. Amamentei-a por quase um ano ainda. Depois já em São Paulo.
Ah, mas hoje isso faz 45 anos!
Canta aí, João Nogueira, canta aí porque é que a gente compõe, verseja, canta aí.
Cervantes escreveu:
“Sabe, Sancho, todas essas tempestades que acontecem conosco são sinais de que em breve o tempo se acalmará e que coisas boas têm de acontecer; porque não é possível que o bem e o mal durem para sempre, e segue-se que, havendo o mal durado muito tempo, o bem deve estar por perto."
Em, Dom Quixote.
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Texto: Odonir Oliveira
Foto de arquivo pessoal
Vídeo: Canal João Nogueira – Tema
A descrição é minuciosa, cuidadosa, humanizadora! Como não se emocionar? 45 anos estão logo ali…
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Obrigada, poeta.
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