A História sempre se constrói com causas e consequências; buscar fontes, investigar fatos, formar conhecimento é papel de qualquer cidadão.
Ponte dos Suspiros- Ponte Antonio Dias (Ponte de Marília de Dirceu), Ouro Preto, MG
MARIA DOROTÉIA DE SEIXAS, A MARÍLIA
Nos longes, a amada encantou-se com o Tomás. Aos trinta e poucos anos, o poeta a conquistou com seu linguajar encantador de mocinhas. Derrubou sobre ela, a Maria Dorotéia, seu neoclassicismo mineiro. Não fosse ela, em seus vinte e poucos anos, tão apaixonada por palavras, talvez não se tivesse deixado encantar pelo doutor egresso da Europa. Não era ele um guapo rapaz em tenra idade mais; era leitor de Rousseau, Petrarca, Virgílio, tinha gado e terras, fora juiz de fora em Beja, Portugal, e por fim, Ouvidor Geral em Vila Rica. Já Maria Dorotéia era jovem, de tenra pele e lábios vermelhos, de família tradicional de grande prestígio em terras mineiras.
Noivos estavam, quando Tomás foi degredado para Moçambique, por sua participação na Conjuração Mineira. Suas Liras seriam lidas por séculos em Marília de Dirceu. Casou-se em África, teve filhos, enriqueceu e nunca mais retornou a Vila Rica.
Maria Dorotéia perdeu o noivo, por quem estava encantada, perdeu seus versos, sua estima. Contava-se nos longes que a Marília de Dirceu morreu, aguardando ainda que o seu Tomás regressasse a Vila Rica.
Como o naturalista francês Auguste Saint-Hilaire, que chega a Vila Rica em 1817, refere-se à popularidade dos versos de Gonzaga: “Por muito tempo ainda encantarão o viajante até sob os humildes ranchos e nos lugares mais solitários”.
UMA SEMANA INTEIRINHA PARA SENTIR E REFLETIR: AMOR, AMORES
A MOÇA MODERNA DE OURO PRETO Cursava Ciências Sociais e Antropologia na UEG, num tempo em que moças faziam, no máximo, História. Sophia se encantava com o ontem, muito mais do que com o presente real vivido. Muitas decepções a obrigavam a fugir para ilhas encapsuladas por pensamentos, filosofias e razões. Eram anos dourados. Eclodira a bossa-nova no Rio e tudo parecia ir bem. Mas havia um anátema sobre as cabeças. Será que só Sophia percebia aquilo? Suas grandes pesquisas nas bibliotecas da cidade a empurravam para conclusões nefastas. Não sabia o que viria, mas pressentia que seria uma noite longa, muito longa. Nascera em Ouro Preto, deixara para trás as Geraes e fora buscar carreira universitária no Rio. No curso, só homens. Nos debates, só homens. Nos convites para artigos só se liam nomes masculinos. Sophia gostava de poesia. Era fascinada por Manuel Bandeira e, em uma tarde em Botafogo, chegou a conhecê-lo. Olhou magneticamente para as pernas dela. Sophia era morena, de grandes olhos verdes e muito capciosamente apresentou-se . “Meu nome é Sophia, poeta. Que pena não ser uma Teresa, não é?”. Ele riu e conversaram um pouco enquanto caminhavam, lado a lado na calçada em frente à Enseada. Lindo cenário para um encontro com um poeta como Manuel Bandeira. Embora fosse uma mulher que desbravasse ambientes dominados por homens, Sophia era romântica. Muito. O amor estava com ela nas histórias que lia, nos poemas que lia, no passado que descobria e estudava. De que amor estamos falando? Seria platônico, ficcional, lírico? Qual seria? 1º de abril de 1964 reservara a eclosão do terrível. A UEG perseguida, professores foragidos, exilados. O hoje chegara de botas, a cavalo e em sirenes também. Sophia, então, refugia-se em seu mundo mineiro, na sua vila rica. Encontra asilo político e social na arquitetura do passado, nas ruas do passado, nas personagens do passado. Começa a escrever. De tudo um pouco. Ensaios sobre sociologia, antropologia, contos, poemas e começa a ensinar em uma Escola Estadual da cidade de Ouro Preto. Sua trajetória fora interrompida, com argumentos irrefutáveis. Viver era resistir. Nas noites frias da vila, ao voltar da Escola com livros nas mãos, sempre tinha a companhia de Gérson, o colega professor de Português – um declamador de poemas românticos, de poemas de Vinícius e alguns de Manuel Bandeira. Foram aprendendo a se amar. De que amor estamos falando?
CONFESSIONAIS I É um ponto é uma meta é um rumo. Persigo sigo avanço. II Entranhas, noites, sussurros, segredos histórias, cumplicidades, desvãos Um leque, uma moeda, um retrato um terço um meio um décimo de vidas um centésimo de tristezas um milésimo de revelações. Revelações de últimos meses, de últimos dias e horas. Confidências insuspeitáveis. III Bato à porta, que fechada, me permite contemplações Bato à porta, que inerte, me permite reflexões. Bato à porta, que signo, me conduz a leituras internas. Adentro o adro sagrado, profana que ainda sou. Bato à porta. IV Cruzeiro de joelhos ainda que doam e sangrem feito penitência ignorada. Cruzeiro do madeiro bento Cruzeiro da Senhora do Carmo respondendo por mim entendendo a mim respondendo a mim. Cruzeiro cheio de luz dos dias frios de junho. Minas escorrendo sempre por minhas veias. V Luzes em penumbra altares, sinos e santos toalhas brancas, presépios, mistérios, ritos de vida e de morte, encontros domésticos, casuais, sacramentados, flores brancas, perfume de rosas, jasmins, camélias e cravos brancos Silêncios sigilosos de evocações Humanos, sagrados pecadores.
É dia Há pedras Há marcas Há dores Há gritos Há ferros Há fogo Há brasas Há mortes.
Quem vem lá? É noite. Há choro Há cortes Há súplicas Há berros Há arrependimentos Há delações Há entregas Há torturas Há conspirações. Há corpos. Há retalhos de corpos. Há deflagração de ódio.
Para sempre.
ORAÇÃO
CONFIDÊNCIAS A MINEIROS Nesse século dezoito, nas pedras em que vivo, correm notícias ao pé do ouvido são encontros secretos de vontades rebeldes são encontros secretos de amores proibidos percorro becos e vielas salto calçadas em ritmo lépido contorno esquinas atravesso pontes salto muros Ali está ele lá estão também eles. Há luz na morada de uns Há espera nas derramas dos outros Tenho ouro em mim.
TESTEMUNHOS
PATAS DE CAVALOS Há que se ter medo. Há que se ter cuidados Há que se ter ouvidos, olhos e mãos de entender. Há que se confidenciar a poucos. Há que se omitir de muitos. A pata, a opressão, a chibata, a inaceitação. Seguem-nos, cercam-nos, amordaçam-nos Calam-nos, sem perdão. São muitos.
TELHADOS, EIRAS E BEIRAS No cume do sonho a liberdade No alto do monte a reflexão Saltando por bandas, perseguindo uma flama, a vez Juntando pedras e marcas a torre de um ideário libertador Telhados, eiras, beiras escondem presságios devastadores O que nos esperará ao final dessa outra derrama?
PAZ Mundo, mundo, mundo você é muito maior que meu leito minha mesa minha casa meu homem . Não posso esquecer a rua, a cidade, o país. Meu mundo é muito maior do que uma rima.
RIBANCEIRA o pó da covardia empalidece a história no limiar da ação o medo ancestral na esteira da glória a fraqueza do caráter os compadrios coloniais a hipocrisia social contumaz o acordo dos cavalheiros semelhantes tudo repete o teatro dos costumes chicote nas mãos do capataz vilões mascarados de mocinhos sinhozinhos em gritos estridentes sangue correndo pernas abaixo dores em chagas sociais jogos de poder desenhando hipocrisias eternas falta coragem de formar fileiras falta coragem de traçar rumos falta coragem de tomar as rédeas a ribanceira espia os declínios a ribanceira não expia as culpas
Poesias: Odonir Oliveira
Fotos de arquivo pessoal: Ouro Preto e Mariana (agosto de 2017)
Arcadismo? O mito do herói? A devastação mineral nas Minas Gerais? A Conjuração Mineira? Século XVIII.
Tantas questões e tão distantes de 90 jovens paulistanos, em 1994. Como pegar o conhecimento com as mãos? Como nos apropriarmos dele sem possibilidades de recuo depois? Indo encontrar os lugares, deixando-nos invadir pelos caminhos e, sobretudo, percorrendo-os.
PREMISSAS GERAIS
A quem vai viajar com jovens, filhos dos outros
Jovens em grupo se transformam. E longe de casa, mais ainda. Há que se fazer ”combinados”. E cobrar que sejam cumpridos.
A possibilidade de problemas graves acontecerem como consumo de ilícitos, acidentes físicos, gástricos e outros mais é quase inevitável. Há que se ter paciência, amorosidade, disciplina e compaixão também. Todos fomos jovens. A repressão só acelera processos que aconteceriam de forma mais branda e tolerável talvez. ( Uma professora e amiga, mais velha que eu, sempre se recusava a viagens pedagógicas com ”filhos dos outros”, com pernoites e outros encaminhamentos. Acreditava ser muita responsabilidade para se assumir). Portanto, os pais e responsáveis devem receber, antecipadamente e por escrito, tudo o que for combinado.
Combinados feitos, é necessário ter-se bem claros, numa apostila talvez, os objetivos pedagógicos e interacionais da viagem. A relação entre os alunos, que fora dos limites da escola muda bastante. São 24 horas de convívio. (Muitos amigos não suportam tanta convivência assim, até em viagens de turismo). Outro aspecto é a interação com ”os locais”, nas cidades em que se visita. Qual o respeito que se deve ter, as diferenças de comportamento, os olhares e tudo o mais. É preciso ensinar, refletir sobre as peculiaridades locais e transformar diferenças em ganhos – que os alunos levarão com eles para outras viagens. E para sempre.
5 DIAS DE CONTATO COM MINAS GERAIS
90 meninas e meninas saem de São Paulo para as cidades históricas de MG. Eles têm 15 e 16 anos. São do Colégio Galileu Galilei, estão no 1º ano do ensino médio. Partem na 2ª feira de manhã e retornarão na 6ª feira. Com programação para todas as manhãs, tardes e noites.
Acompanham-nos no estudo do meio, eu, Odonir, professora de Língua Portuguesa e Literatura, os professores Luiz de Campos Jr, de Geografia e Eduardo, de Filosofia, e 3 guias da empresa de turismo pedagógico que nos daria suporte estratégico: reserva em pousada em Mariana, reservas em restaurantes, museus, igrejas, mina, desde a parada em Lavras, passando por Congonhas do Campo, Mariana, Ouro Preto e recomendações específicas sobre alguns procedimentos. Por exemplo, não se podia entrar de bermudas nas igrejas das cidades históricas.
OCASO
No anfiteatro de montanhas
Os profetas do Aleijadinho
Monumentalizam a paisagem
As cúpulas brancas dos Passos
E os cocares revirados das palmeiras
São degraus da arte de meu país
Onde ninguém mais subiu
Bíblia de pedra-sabão
Banhada no ouro das minas
Oswald de Andrade
A apostila, densa. Há muitos poemas e textos com os quais se discutiria a existência de Tiradentes ou a sua não existência. O professor de Filosofia os desafiava a encontrar provas concretas de sua existência. O que aconteceu quando visualizaram a assinatura de Joaquim José da Silva Xavier, em um recibo emitido a um pedreiro por obras em sua casa. Viram isso na Casa de Contos, onde morreu enforcado Claudio Manoel da Costa.
Na lateral do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, em companhia dos profetas de Aleijadinho, ouvimos ‘‘Evocação das montanhas” e, olhando aquelas montanhas, criaram poemas e os ilustraram. De arrepiar a emoção estética ali presenciada.
Em frente à Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Mariana, discutimos o mito do herói. Já haviam lido e relido textos sobre as barbas de Tiradentes, a respeito de ter sido uma recriação da República – em busca de heróis – e outros. O professor Eduardo, de Filosofia, encaminhava a discussão. Quando olhamos ao redor, havia homens, mulheres e crianças que não estavam gostando nem um pouco daquela prosa. Tive que chamá-los de lado e explicar-lhes tratar-se de um desafio pedagógico, de um encaminhamento para busca de provas em Ouro Preto – a Vila Rica – etc. Entenderam. Isso é se ter respeito com ”os locais”. Depois, nós, professores, socializamos com os alunos o episódio ocorrido. E aprenderam também com ele.
A DESCIDA À MINA
O impacto na descida de 315 m e o cenário mexeram com todos. O estudo geológico e histórico sobre os séculos XVII e XVIII foi vivenciado na Mina da Passagem.
Imprevisto foi o incidente em que alunos entraram em um dos lagos. Um deles pisou ali, sem tênis, e cortou o pé. Isso envolveu socorro, atendimento com sutura e comunicação aos pais em SP. Imprevistos que ocorrem e devem ser tratados com calma e atenção em viagens com alunos.
VISITAS EM OURO PRETO
Museu da Inconfidência (antiga cadeia de Vila Rica).
Casa de Contos – onde morreu Cláudio Manuel da Costa, declamação de poemas da sua lavra no interior do espaço.
Ponte de Marília de Dirceu e criação de um texto dramático de conversa entre os dois- ali sentados na ponte. Leituras posteriores nos saraus, à noite.
Visitas a todas as igrejas históricas de Ouro Preto
EM MARIANA
Visita a todas as igrejas históricas.
Visita à Câmara.
SARAU NAS NOITES DO HOTEL PROVIDÊNCIA, EM MARIANA
Criação de varal com poemas e produções de textos ilustrados.
Cantorias, em luau, no pátio interno do Hotel Providência (colégio das freiras), onde estávamos hospedados.
Sarau lítero-musical, aos moldes do século XVIII.
Lira I
Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,
Que viva de guardar alheio gado;
De tosco trato, d’ expressões grosseiro,
Dos frios gelos, e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal, e nele assisto;
Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
Das brancas ovelhinhas tiro o leite,
E mais as finas lãs, de que me visto.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Eu vi o meu semblante numa fonte,
Dos anos inda não está cortado:
Os pastores, que habitam este monte,
Com tal destreza toco a sanfoninha,
Que inveja até me tem o próprio Alceste:
Ao som dela concerto a voz celeste;
Nem canto letra, que não seja minha,
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
Mas tendo tantos dotes da ventura,
Só apreço lhes dou, gentil Pastora,
Depois que teu afeto me segura,
Que queres do que tenho ser senhora.
É bom, minha Marília, é bom ser dono
De um rebanho, que cubra monte, e prado;
Porém, gentil Pastora, o teu agrado
Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.
Graças, Marília bela,
Graças à minha Estrela!
[…]
Tomás Antonio Gonzaga
CARTAS CHILENAS e a CONJURAÇÃO MINEIRA
Visita à UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) Faculdades de Humanas, Departamento de Letras, em Mariana. Conversa com o professor Ronald Polito, especialista em Tomás Antonio Gonzaga, reflexões sobre a vida, obra e o exílio do poeta em Moçambique, sua relação com Maria Doroteia de Seixas, a Marília, seu posterior casamento e vida abastada em África.
Alunos muito participantes, fazendo perguntas e interagindo com o professor. Manusearam documentos históricos de T. Antonio Gonzaga e textos de correspondências entre ele e seu pai. Segundo o especialista, encontrados em bibliotecas de Lisboa e do RJ.
Observações psico-pedagógicas
É preciso saber que nem tudo sai exatamente como se espera a partir do planejamento, em um estudo de meio de 5 dias, em outro estado, como esse foi. Há imprevistos de toda ordem, mas cabe aos educadores – afinal são eles os adultos na situação – cabe a eles manterem a calma, atentarem aos objetivos previamente estabelecidos e tomarem as decisões necessárias, como alterações de ”certas rotas”, por exemplo.
Esse Projeto foi o 1º de muitos que desenvolvemos com essa moçada, até o 3º ano do ensino médio.
Anos mais tarde, em 1999, desenvolvi outro Projeto sobre Minas Gerais, com alunos do 8º ano da EMEF Rui Bloem, em SP. Foram motivados por esse Projeto. Desafiei-os “Vocês também podem fazer igual ou parecido? Se quiserem, nós faremos”. É claro que não teríamos condições materiais de viajar até MG, o público era outro. Mas garanto que estudaram e gostaram bastante do projeto desenvolvido “Encontra-me em Vila Rica, por favor”.
Sempre que posso, retorno aos nossos caminhos aqui em MG. Fico olhando outros jovens percorrendo as mesmas ruas e os mesmos becos. Lembro de vocês. Muito.
Confesso que foi a partir desse estudo, em 1994, que comecei a amadurecer a ideia de vir viver definitivamente em MG. O que ocorreu anos atrás.