Liberdade ainda que tardia VIII

Teatro colonial

“Eu, Marília…”

Lira I

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,

Que viva de guardar alheio gado;

De tosco trato, d’ expressões grosseiro,

Dos frios gelos, e dos sóis queimado.

Tenho próprio casal, e nele assisto;

Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;

Das brancas ovelhinhas tiro o leite,

E mais as finas lãs, de que me visto.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Eu vi o meu semblante numa fonte,

Dos anos inda não está cortado:

Os pastores, que habitam este monte,

Com tal destreza toco a sanfoninha,

Que inveja até me tem o próprio Alceste:

Ao som dela concerto a voz celeste;

Nem canto letra, que não seja minha,

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Mas tendo tantos dotes da ventura,

Só apreço lhes dou, gentil Pastora,

Depois que teu afeto me segura,

Que queres do que tenho ser senhora.

É bom, minha Marília, é bom ser dono

De um rebanho, que cubra monte, e prado;

Porém, gentil Pastora, o teu agrado

Vale mais q’um rebanho, e mais q’um trono.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Os teus olhos espalham luz divina,

A quem a luz do Sol em vão se atreve:

Papoula, ou rosa delicada, e fina,

Te cobre as faces, que são cor de neve.

Os teus cabelos são uns fios d’ouro;

Teu lindo corpo bálsamos vapora.

Ah! Não, não fez o Céu, gentil Pastora,

Para glória de Amor igual tesouro.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Leve-me a sementeira muito embora

O rio sobre os campos levantado:

Acabe, acabe a peste matadora,

Sem deixar uma rês, o nédio gado.

Já destes bens, Marília, não preciso:

Nem me cega a paixão, que o mundo arrasta;

Para viver feliz, Marília, basta

Que os olhos movas, e me dês um riso.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Irás a divertir-te na floresta,

Sustentada, Marília, no meu braço;

Ali descansarei a quente sesta,

Dormindo um leve sono em teu regaço:

Enquanto a luta jogam os Pastores,

E emparelhados correm nas campinas,

Toucarei teus cabelos de boninas,

Nos troncos gravarei os teus louvores.

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Depois de nos ferir a mão da morte,

Ou seja neste monte, ou noutra serra,

Nossos corpos terão, terão a sorte

De consumir os dois a mesma terra.

Na campa, rodeada de ciprestes,

Lerão estas palavras os Pastores:

“Quem quiser ser feliz nos seus amores,

Siga os exemplos, que nos deram estes.”

Graças, Marília bela,

Graças à minha Estrela!

Post originalmente publicado aqui no blog em 25 de agosto de 2017

Versos de Tomás Antonio Gonzaga in Marília de Dirceu

Fotos de arquivo pessoal: Ouro Preto, MG, agosto de 2017

Vídeo: Canal igordrm

Natal, notícias e descobertas

BÁRBARA E AS CIDADES HISTÓRICAS
Fora em um tempo que antecedera ao Natal que Bárbara foi conhecer as cidades históricas mineiras. Era 1994, e seu encantamento pela prosa mineira nascera bem antes. Não perderia a oportunidade de conhecer aquelas ruas, vielas e igrejas do século XVIII. O convite dos amigos da universidade viria a calhar. Aceitou. Ficariam em casa de parentes deles em São João Del Rey.
No 1º dia acordaram bem cedo e foram conhecer Sabará. Que encanto, repetia Bárbara aos amigos.
No 2º dia foi a vez de Congonhas do Campo, quase não conseguiu deixar a Igreja de Bom Jesus de Matosinhos, a sala dos ex-votos, o enorme adro com os Profetas de Aleijadinho, os Passos, o Centro Cultural da Romaria… a cada rua, descida e viela era envolvida por uma religiosidade ímpar ali.
No 3º e no 4º dias foi conhecer o berço das Minas Gerais, Mariana, e respirou Liberdade em Ouro Preto. Pensou em não voltar mais pra São Paulo, ficaria para sempre naquele entardecer, naquelas pedras, naquelas ruazinhas estreitas. Para sempre.
No 5º dia e no 6º dias, descansaram em São João Del Rey, no aconchego dos familiares dos amigos, ouvindo causos e prosas repletas de mineiridades do café da manhã ao jantar. Visitaram o Memorial Ferroviário, a Igreja de São Francisco de Assis, o Memorial Tancredo Neves, o Solar dos Neves, a linda Catedral de Nossa Senhora do Pilar, por fim fizeram visita à Lagoa Azul e a cachoeiras de São João. Bárbara andava por terrenos conhecidos, embora nunca tivesse estado por lá.
No 7º dia, tomaram a Maria Fumaça e foram a Tiradentes. Já era dia 23 de dezembro e ela voltaria na tarde de 24 para São Paulo.
Ao ver e ouvir Tiradentes, percebeu seu encontro eterno com a cidade. Talvez de tudo que ouvira muito antes, somando-se àquilo que bebera em doses sensíveis durante a última semana, decidira, seria ali onde permaneceria até o fim de seus dias.
Em todos os Natais seguintes não precisaria retornar. Ali já seria o seu retorno, a volta a casa. Decidiu.

TIRADENTES

MÃOS DO DESTINO
Que traçado é este, destino, que insistes em me fazer trilhar?
Por que me fizeste acreditar na leitura de minha mão?
Como conseguiste aspergir de morenice essas minhas noites de luar?
Quando estaria mais perto a estrela que me sorria e tão alto luzia ?
Que rota é essa de ramais tortuosos que me estendes sem termo ou chegada?
Responde, destino, que não suporto mais ter que desvendar-te!

Há aqui nesse blog uma categoria Natalhttps://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/natal/ onde podem ser lidas e ouvidas muitas histórias e poesias de Natal.

Poesia: Odonir Oliveira

Foto de arquivo pessoal

Vídeo: Canal Maria Bethania

Marianas

APAIXONADA PELO DIA

Como não olhar você
chegando pela estrada
De um lado, oeste
De outro, leste
De um lado dia
De outro, noite
De um lado noite
Do outro vermelhidão
Fogueira incendiando céu, ar, imensidão?
Como não adivinhar você
Belo, forte, bravo, conquistador?
Como não adivinhar você,

Novo dia,
Que se abre dessa escuridão?

ELA SE CHAMA MARIANA
Foi no fim dos anos de 1970 que se conheceram na UFOP. Foi atração primeira no barzinho na rua de pé-de-moleque. Ela não era de Minas Gerais; ele, sim.
Foram viver em repúblicas próximas, mas seu curso era de Humanas, portanto em Mariana. Ele cursava engenharia, em Ouro Preto. Mas … morando em Mariana.
Naqueles anos, a agitação universitária era fatal. Ele fora presidente do Centro Acadêmico, e ela lia livros de artes, poemas, estudava arquitetura colonial . E sonhava.
Foram amados e amantes durante todo o tempo da universidade. E depois, ainda se encontraram em cidades outras. Não haviam permanecido em Minas Gerais. Ele estaria vivendo no exterior e Mariana, na maior metrópole do país.
Nos anos 2000, Mariana apresentara sintomas de cegueira precoce, aos poucos, mas cegueira. Afirmavam que ficaria cega, mais cedo ou mais tarde.
Cega ou não, resolvera volver aos 17. Mudou-se para Mariana. Continuaria seu trabalho com esculturas e decidiu que ali permaneceria até o fim de seus dias.
Ao chegar à cidade, percorreu de logo a estação. Sentou-se num banco da gare – como se esperasse por alguém – fez isso muitas vezes depois.
Encontrou uma casa com requintes de simplicidade, como buscava. Bem perto, estabeleceu seu ateliê e daria aulas – trabalho voluntário – àqueles que se interessassem por esculturas e arte. Devolveria à cidade o que recebeu da Universidade Federal.
Aos fins de tarde costumava visitar pontos em que vivera grandes alegrias na cidade. Era um estado de contemplação único. Sempre uma espera, sempre uma recordação, sempre um encanto.
Mariana percorria Mariana como se fossem as mesmas, ela e a cidade.
Observando visitantes entre as duas igrejas, fotografou em si os momentos que ali também estivera sentada, naqueles degraus.
Recolheu–se à Igreja e rezou agradecendo a oportunidade de poder estar vendo e vivendo tudo aquilo de novo. Não estava cega. Via, via tudo aquilo que ainda precisaria ver. Agradeceu.

Poesia e texto: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal

Vídeos:

1- Canal Simone

2- Canal JoaoBoscoVEVO

Amor, amores III

UMA SEMANA INTEIRINHA PARA SENTIR E REFLETIR: AMOR, AMORES

A MOÇA MODERNA DE OURO PRETO
Cursava Ciências Sociais e Antropologia na UEG, num tempo em que moças faziam, no máximo, História. Sophia se encantava com o ontem, muito mais do que com o presente real vivido. Muitas decepções a obrigavam a fugir para ilhas encapsuladas por pensamentos, filosofias e razões. Eram anos dourados. Eclodira a bossa-nova no Rio e tudo parecia ir bem. Mas havia um anátema sobre as cabeças. Será que só Sophia percebia aquilo? Suas grandes pesquisas nas bibliotecas da cidade a empurravam para conclusões nefastas. Não sabia o que viria, mas pressentia que seria uma noite longa, muito longa.
Nascera em Ouro Preto, deixara para trás as Geraes e fora buscar carreira universitária no Rio. No curso, só homens. Nos debates, só homens. Nos convites para artigos só se liam nomes masculinos. Sophia gostava de poesia. Era fascinada por Manuel Bandeira e, em uma tarde em Botafogo, chegou a conhecê-lo. Olhou magneticamente para as pernas dela. Sophia era morena, de grandes olhos verdes e muito capciosamente apresentou-se . “Meu nome é Sophia, poeta. Que pena não ser uma Teresa, não é?”. Ele riu e conversaram um pouco enquanto caminhavam, lado a lado na calçada em frente à Enseada. Lindo cenário para um encontro com um poeta como Manuel Bandeira.
Embora fosse uma mulher que desbravasse ambientes dominados por homens, Sophia era romântica. Muito. O amor estava com ela nas histórias que lia, nos poemas que lia, no passado que descobria e estudava. De que amor estamos falando? Seria platônico, ficcional, lírico? Qual seria?
1º de abril de 1964 reservara a eclosão do terrível. A UEG perseguida, professores foragidos, exilados. O hoje chegara de botas, a cavalo e em sirenes também. Sophia, então, refugia-se em seu mundo mineiro, na sua vila rica. Encontra asilo político e social na arquitetura do passado, nas ruas do passado, nas personagens do passado. Começa a escrever. De tudo um pouco. Ensaios sobre sociologia, antropologia, contos, poemas e começa a ensinar em uma Escola Estadual da cidade de Ouro Preto. Sua trajetória fora interrompida, com argumentos irrefutáveis. Viver era resistir.
Nas noites frias da vila, ao voltar da Escola com livros nas mãos, sempre tinha a companhia de Gérson, o colega professor de Português – um declamador de poemas românticos, de poemas de Vinícius e alguns de Manuel Bandeira. Foram aprendendo a se amar. De que amor estamos falando?

Sobre as semanas dos namorados, leia: ‘‘Amor, amores I” – /https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/06/06/amor-amores-i/ “Amor, amores II” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/06/07/amor-amores-ii/ E em outros junhos aqui no blog: ”Amor começa tarde VII” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/06/12/amor-comeca-tarde-vii/ “Dias dos namorados VII”https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2019/06/12/dias-dos-namorados-vii/ “Amar o amor” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/06/11/amar-o-amor/ “Amor, 12 de junho” https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2016/06/11/amor-12-de-junho/

Texto: Odonir Oliveira

Imagem retirada da Internet

Vídeo: Canal Mundo Dos Poemas

O poeta mineiro narra

O Amor

Romério Rómulo

apossado
o amor chega
te aplica uma gravata destravada,
te morde até o tudo ser um nada,
te arrebenta a veia chamuscada.

o amor chega
te diz uma razão sobressalente,
te esmurra o queixo até quebrar um dente,
te faz se ver um verme de repente.

o amor chega
no salto estapafúrdio de um cavalo,
no canto estarrecido de um galo,
no estertor de um sino só badalo.

o amor chega
sem avisar de nada e chuta a porta,
sem perguntar se alguma coisa importa,
sem se inteirar se é viva ou se é morta.

o amor chega
da garganta traduz um brusco vento,
do estômago teu faz um tormento,
do intestino realiza o excremento.

daí, então
banguela, idiota a entender de nada,
chegado o amor, esqueces, e demente
num esforço frouxo que te sai dormente
ainda tens força pra gritar: amada!

Leia mais sobre Romério Rómulo aqui no blog: Doses homeopáticas do lirismo de RR https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/07/19/doses-homeopaticas-do-lirismo-de-rr/

Fotos de arquivo pessoal: Ouro Preto

Foto do poeta: Facebook de Romério Rómulo

Vídeo: Canal Instituto Piano Brasileiro

Night Club

O companheiro das noites

Gostava de sair do jornal e ir àquele lugar. Sentar-se no último assento vermelho do balcão, acender um cigarro e ficar ouvindo o quarteto de jazz que ali se apresentava. Não estavam sempre lá. Nas segundas, quartas e sextas pelo menos estavam. Gostava de ficar sozinha, sem os outros jornalistas ou focas por perto. O Bar não ficava próximo ao jornal. Gostava de ouvir o jazz penetrando sua alma. Lembrava de tantos momentos, chegava a revisitar duas ou três décadas de caminhadas, presenças e parcerias. Foram tantas revistas as que tingiu com suas palavras, foram vários jornais e até aquele livro de poemas sensuais há duas décadas. Quanto já havia escrito !

Primeiro na Olivetti mecânica, depois nas máquinas elétricas, depois a recepção das notícias por telefone, por telégrafo, por telex, por fax e, por fim, por computadores e celulares. Parecia ter 200 anos de idade, tamanha a retrospectiva que passava por sua cabeça ali. Mais uma sequência de jazz, improvisos, outro uísque, sempre puro, outro cigarro. O trânsito lá fora começava a se acalmar, buzinava menos, freava menos, rodava menos.

Vez ou outra, encomendava algo nacional ao quarteto, para além dos improvisos jazzísticos. Freguesa de unha e carne, era sempre atendida. Por quê? Porque era brasileira desde o berço e amava sua terra, sua gente. Enquanto ia ouvindo o que tocavam, resgatava percursos vividos.

Agora, por exemplo, com essa música, recordara-se daquele jornal de bairro, mas com estirpe, onde fizera grande e fiel público leitor; era distribuído pelo bairro, gratuitamente, aos domingos. Exemplares atirados nas garagens das casas pelos entregadores, deixados nas portarias dos prédios, nos estabelecimentos comerciais, com grandes tiragens, anúncios às fartas. Passou a ser muito lida. Enfrentou intrigas de jornalistas mulheres, invejando seu reconhecimento, por enredos, fofocas e puxadas de tapete, até ser dispensada de forma vil. As outras, vitoriosas, permaneceram por lá, enoveladas em seu martírio de rivalidades, deboches, ciúmes, competições e maledicências. Ela se foi. Se havia algo que não suportava era ser acusada de vitimização.

Acende mais um cigarro, o garçom atende o seu pedido, traz mais um uísque, uma água mineral e um couvert com pasta e petiscos italianos. Outro dia, já experimentara os sírios; hoje, os italianos. Saboreia, lentamente, ouve ”Garota de Ipanema” e lembra, ah como lembra, daquele freela que fez no Rio. De freela passara a ser contrato temporário, e durou. Escrevia na coluna de cultura: crônicas, poemas, cobria lançamentos, fazia críticas de obras literárias, de filmes. Bastante lida, bastante elogiada, com leitores cativos e fiéis, amigos jornalistas homens, em especial, bom papo e muito respeito. Sem cantadas e gracejos, os colegas entendiam que ela gostava – e preferia – estar só, sem despertar as invejas de sempre, as maledicências. Não foi suficiente. Enrodilhada em um rodamoinho de gente cabotina de último degrau, teve e-mails pessoais revelados publicamente, sofrendo difamações e massacre pessoal, coisa de assassinato de reputação mesmo. Quase perdeu o juízo, deprimiu-se, quase enlouqueceu. Sentiu-se a mais feia das mulheres, a mais ingênua das mulheres, a mais crédula e infantil das mulheres por haver considerado os que a rodeavam como pessoas sinceras, de bom nível intelectual, social e moral. Queria se explicar. Queria era morrer. De vergonha. Sumir. E foi o que fez.

Agora, já meio zonza, bebe sua água com gás, passa a sardela na fatia de pão italiano e se recorda do homem amado. Tanta trama, tanta tinta imprimindo linhas e linhas de desafetos, tantas laudas de deboches e menosprezos em páginas e páginas, em colunas de disfarces e tramas. Stardust. Ouve a canção derradeira e entende que aquele último amor havia sido o último mesmo. Nem deveria ter existido, nem deveria ter sentido, nem deveria ter deixado aberta a porta da emoção, ao encantar-se outra vez. Lê no celular o poema do lírico de Ouro Preto, que tanto aprecia.

O amor

apossado
o amor chega
te aplica uma gravata destravada,
te morde até o tudo ser um nada,
te arrebenta a veia chamuscada.

o amor chega
te diz uma razão sobressalente,
te esmurra o queixo até quebrar um dente,
te faz se ver um verme de repente.

o amor chega
no salto estapafúrdio de um cavalo,
no canto estarrecido de um galo,
no estertor de um sino só badalo.

o amor chega
sem avisar de nada e chuta a porta,
sem perguntar se alguma coisa importa,
sem se inteirar se é viva ou se é morta.

o amor chega
da garganta traduz um brusco vento,
do estômago teu faz um tormento,
do intestino realiza o excremento.

daí, então
banguela, idiota a entender de nada,
chegado o amor, esqueces, e demente
num esforço frouxo que te sai dormente
ainda tens força pra gritar: amada!

Romério Rómulo

Pede a conta, cumprimenta, como sempre, apertando a mão dos músicos do quarteto, as do barman, do garçom, e vai embora. Volta numa outra noite. Sempre volta.

Homenagem à jornalista francesa que me lê frequentemente. Merci.

Leia mais aqui na categoria:

”Escutadora de histórias de mulheres”

https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/category/escutadora-de-historias-de-mulheres/

Texto: Odonir Oliveira

Poema: Romério Rômulo

Imagens retiradas da Internet: telas do pintor André Kohn

Vídeo: Canal Dr. SaxLove

Vila Rica

TEMPLOS

colônia ação
colônia produção
colônia expropriação
suor, sangue, morte

colônia servidão
ouro devassidão
terra devassidão
minas devassidão
geraes espoliação

colônia entregue
colônia lesada
pátria esfolada
pátria esfomeada
lesa-pátria
acabada

CONFESSIONAIS
I
É um ponto
é uma meta
é um rumo.
Persigo
sigo
avanço.
II
Entranhas, noites, sussurros, segredos
histórias, cumplicidades, desvãos
Um leque, uma moeda, um retrato
um terço
um meio
um décimo de vidas
um centésimo de tristezas
um milésimo de revelações.
Revelações de últimos meses, de últimos dias e horas.
Confidências insuspeitáveis.
III
Bato à porta,
que fechada, me permite contemplações
Bato à porta,
que inerte,
me permite reflexões.
Bato à porta,
que signo, me conduz a leituras internas.
Adentro o adro sagrado, profana que ainda sou.
Bato à porta.
IV
Cruzeiro de joelhos
ainda que doam e sangrem feito penitência ignorada.
Cruzeiro do madeiro bento
Cruzeiro da Senhora do Carmo
respondendo por mim
entendendo a mim
respondendo a mim.
Cruzeiro cheio de luz dos dias frios de junho.
Minas escorrendo sempre por minhas veias.
V
Luzes em penumbra
altares, sinos e santos
toalhas brancas, presépios, mistérios,
ritos de vida e de morte,
encontros domésticos, casuais, sacramentados,
flores brancas,
perfume de rosas, jasmins, camélias e cravos brancos
Silêncios sigilosos de evocações
Humanos, sagrados pecadores.

OFERECIMENTO


ESTRADA, DERRAMA, ÓDIO

Passadas largas
tropeços
Passadas curtas
tormentas

Passadas trôpegas
Medo.

Quem vem lá?

É dia
Há pedras
Há marcas
Há dores
Há gritos
Há ferros
Há fogo
Há brasas
Há mortes.

Quem vem lá?
É noite.
Há choro
Há cortes
Há súplicas
Há berros
Há arrependimentos
Há delações
Há entregas
Há torturas
Há conspirações.
Há corpos.
Há retalhos de corpos.
Há deflagração de ódio.

Para sempre.

ORAÇÃO

CONFIDÊNCIAS A MINEIROS
Nesse século dezoito, nas pedras em que vivo,
correm notícias ao pé do ouvido
são encontros secretos de vontades rebeldes
são encontros secretos de amores proibidos
percorro becos e vielas
salto calçadas em ritmo lépido
contorno esquinas
atravesso pontes
salto muros
Ali está ele
lá estão também eles.
Há luz na morada de uns
Há espera nas derramas dos outros
Tenho ouro em mim.

TESTEMUNHOS

PATAS DE CAVALOS
Há que se ter medo.
Há que se ter cuidados
Há que se ter ouvidos, olhos e mãos de entender.
Há que se confidenciar a poucos.
Há que se omitir de muitos.
A pata, a opressão, a chibata, a inaceitação.
Seguem-nos, cercam-nos, amordaçam-nos
Calam-nos, sem perdão.
São muitos.

TELHADOS, EIRAS E BEIRAS
No cume do sonho a liberdade
No alto do monte a reflexão
Saltando por bandas, perseguindo uma flama, a vez
Juntando pedras e marcas a torre de um ideário libertador
Telhados, eiras, beiras escondem presságios devastadores
O que nos esperará ao final dessa outra derrama?

PAZ
Mundo, mundo, mundo
você é muito maior que meu leito
minha mesa
minha casa
meu homem .
Não posso esquecer
a rua,
a cidade,
o país.
Meu mundo é muito maior do que uma rima.

RIBANCEIRA
o pó da covardia empalidece a história
no limiar da ação o medo ancestral
na esteira da glória a fraqueza do caráter
os compadrios coloniais
a hipocrisia social contumaz
o acordo dos cavalheiros semelhantes
tudo repete o teatro dos costumes
chicote nas mãos do capataz
vilões mascarados de mocinhos
sinhozinhos em gritos estridentes
sangue correndo pernas abaixo
dores em chagas sociais
jogos de poder desenhando hipocrisias eternas
falta coragem de formar fileiras
falta coragem de traçar rumos
falta coragem de tomar as rédeas
a ribanceira espia os declínios
a ribanceira não expia as culpas

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de arquivo pessoal: Ouro Preto e Mariana (agosto de 2017)

Vídeos:

1- Canal Orquestra Ouro Preto

2- Canal Hawk Filmes

O Drummond menino cresce

Miguel é bisneto de Drummond; repare nas semelhanças

SEMBLANTE

O rosto é o mesmo
fino,
oval,
triangular?

Sei que é Drummond presente.
Os dedos ágeis
o sorriso meigo
o ritmo no corpo inteiro.
Concentração única
encantamento melódico
olhar lânguido.

Pianista de versos
Poeta de melodias.


O MENINO QUE LEVITAVA

Ao clarear do dia o menino abria olhos arregalados
De beber o mundo.
Mas era pouco.
Montava seu cavalo alado
Como se dançasse com ele.
Era doce o menino.
E partia ao encontro de seus marimbondos
de suas rãs e lagartixas.
Morcegos eram como flores do campo.

A tarde tinha a estrela vésper sempre a sua espera
E nela menino, cavalo e aventuras seguiam,
bebendo cada folha, cada árvore, cada trilha.
Mas era pouco.

Depois, pisar na água era um barulho celestial
Era cócega
Era música
Era verso
Era poesia.

Desmanchar rotas citadinas
Mergulhar no escuro de grutas cavernas, barcos e estradas.
Era pouco
Porque o menino ria, ria, mas ria tanto,
que de prazer levitava.

E de baixo, em terra firme,
ninguém o alcançava
E não era pouco !

DRUMMOND PERCORRE OURO PRETO

Um anjo barroco desceu
nas montanhas
fez ritmo e movimento.
Pousado nas pedras, nos muros,
decalca o pórtico da igreja
enfeita com seus cabelos de anjo
a paisagem estática
empresta frescor aos versos
de marílias e dirceus esculpidos nas calçadas

Vem, menino anjo,
Minas é sua.

Leia também: Um Drummond menino

Um Drummond menino

Poesias: Odonir Oliveira

Fotos de meu livro de poemas de Drummond, FAREWELL, póstumo.

Vídeos:

1-2-3-4-5: Canal peiedragranja ondaalta

6 e 7: Canal Pedro Drummond