ANOS E ANOS: “E assim se passaram dez anos”, diz a canção, é o que observo, de longe, de perto, com gente ao redor… Sempre “seduzi” homens por meus versos, mesmo antes da Internet, quando liam meus originais etc. mas poucos foram os que tiveram coragem de se aproximar de mim, manifestar intenções pessoais etc. Conversar então! Às vezes telefono para amigos homens e percebo um temor de se aprofundarem em temas filosóficos, em fazerem reflexões e até sobre filmes, poesia. Leio isso como falta de coragem, como uma antecipação de não se sentirem à altura de estabelecerem uma conexão dialógica etc. Medo. Homens que eu já considerei muito até, na hora do vamos conversar, estão com pressa, inventam tarefas etc. No entanto… Eu, não. Adoro ouvir o que pensam os homens, saber do que sabem, aprender algo diferente sobre o que fazem etc. Nunca tive pavor de diálogos. Eu me garanto. Sou ou posso ser como um homem. Claro, no que vale a pena ser.
CARA Pisar a grama molhada sentir nos dedos os verdes encharcados de chuva manter-se firme evitando escorregadelas fatais caminhar vagarosamente apoiar-se em galhos firmes sentar-se à sombra ouvir o vento sorver perfumes nos ares deliciar-se com sabores novos esticar-se na grama molhada mirar-se no espelho das águas um rosto, uma jornada, um tempo.
CORAGEM Tomar o timoneiro de si Ventos a leste Ventos a oeste Argonauta madura Maruja maturada em tonéis de carvalho em tonéis de machado em tonéis de rasera Oliveira firme, raízes portentosas, Ventos ao norte Ventos ao sul Sem rumo certo Velas incertas de ventos muitos. Espada, escudo, armadura deitados ao chão. Peito exposto a tiros de canhão mares afora mares a dentro. Chegadas e partidas praias desertas conchas e pedras luas e estrelas. Coragem.
A CORAGEM DE SE DESNUDAR PUBLICAMENTE – Tenho me encantado com poemas de amor de jovens que não se envergonham de expor suas mazelas de amor, suas fraquezas, suas incongruências e se desnudam a cada verso, mostrando cada parte de sua alma, de seu eu – que poderia estar disfarçado, camuflado, envolto e preservado daquelas paixões. Estão ali em versos e estrofes completamente nus. Na metáfora do lirismo, divago e lhes imagino os corpos nus em praça pública, com suas imperfeições, suas marcas e cicatrizes expostas. Estão sem pejo, em pele e pelos, assim se atirando aos despenhadeiros, às críticas, aos menosprezos e desprezos alheios. Quanta coragem! O que se diz entre quatro paredes ao ser amado, o que se confessa de joelhos a este alguém, o que se derrama em noites insones e lágrimas no travesseiro … tudo se apresenta, sem reservas, integralmente aos versos. Quanta coragem! Quem já se viu diminuído, rejeitado, regurgitado, incinerado, com mãos estendidas pingando amor não tem esse desprendimento, essa valentia, esse heroísmo. É preciso ter muita bravura, muita ousadia, muita audácia para se deixar ler em verso e prosa assim. Quanta coragem!
o eunuco, por Luk Ank
há muito que não te vejo
nem silêncio enrustido
nem prévia de beijo
nem tédio entretido
nem roto desejo
queria saber
se mudou
de religião
se viajou
para o inferno
se aprendeu
latim
se esqueceu
de fato
de mim
queria saber
se encontrou
o amor
além
do
cinismo
se descobriu
algo mais
intenso
que o meu
escapismo
por fim
antes
do mar
me levar
para perto
das pedras
pontiagudas
da solidão
só queria
saber
o que
não
se diz
onde
diabos
te perdi
nas marés
de dias
imperfeitos
e-mails
em solilóquio
e pequenos
apelidos
infantis
o vácuo, por Luk Ank
não entendo
como posso
querer
estar
dentro
através
permeado
e
além
da
sua
essência
e não estar
dói
arde
mutila
arranca
risos
nervosos
e
histéricos
da
minha
bochecha
fúnebre
somos
estranhos
que
se
odeiam
por
não
se
completarem
somos
fardos
pesados
passados
e
ressentidos
na leve
inércia
da
incompletude
Chamei os seresteiros, em verso e prosa, para compor o cenário.
Tristão de Athayde escreve sobre João Guimarães RosaManuel Bandeira: ”ROSA DOS SEUS E DOS OUTROS/ ROSA DA GENTE E DO MUNDO,/ ROSA DE INTENSA POESIA/ DE FINO OLOR SEM SEGUNDO;/ ROSA DO RIO E DA RUA,/ ROSA DO SERTÃO PROFUNDO!Revisão/ edição de G. Rosa em seu texto.Poema de Drummond: ”UM CHAMADO JOÃO”
Leia também a deliciosa entrevista/ conversa de Guimarães Rosa com Pedro Bloch
Na manhã seguinte foi. Parecia querer resolver de uma vez aquilo. Entrou na cozinha da casa grande, mas não queria ninguém ali. Nem era dali. Ela era da senzala. Seu negócio, seu agro negócio era o lavrador de café, suado, vermelho da testa à ponta do queixo. Era ele que ela queria.
Era uma mulher de mais de 30 anos, cheia de graças e segredos. Ninguém ali a tivera nem para aquelas conversinhas de cerca-lourenço tão costumeiras por lá. Tinha a marra característica de quem sabe escolher. Era do campo. Quero isso, quero esse, faça assim, faça aqui, que aqui é bom. Pois é, Vilma era desse jeito.
Saíra da cidadezinha para estudar na universidade federal. Assim quis e continuou estudando … mas aquele gosto de terra e suor não saía de sua boca. Era prazer maiúsculo aquele negócio. Agro negócio – pensava sempre. Vou lá, vou voltar lá. Vai ser lá.
De lembranças da universidade na cidade do interior – nem tão pequena assim – havia uns três caras que lhe amansaram desejos, mas também lhe deixaram carências. Carências de quê? De terra molhada, de sujeira nas unhas, de cheiro de chuva e de pegada. Homem pra ela, que crescera por meio dos matos, tinha de ter pegada. E ela também tinha, que era broto do chão.
Josué fora nascido e criado na vereda, na estrada do sem culpa nenhuma, no ensinamento do sertão, sem conceber nem conceder o pecado original. Bebia pinga e ria. E depois levitava o diabo do homem. Sestroso, manhoso, marrento. Como Vilma.
Naquela noite de cavalgada, eram muitos os peões ali. Paramentados como para um culto cristão, eram poucos os de raiz, flores e frutos. Josué era. Espalhava um perfume de maracujá, ou seria um sabor de jabuticaba? Bom mesmo era ver aquela boca vermelha dele, pendurada no rosto, quase sem sorrir. Vilma tomou as rédeas e seguiu.
Cavalgadas contam sempre com encerramentos religiosos, sagrados. Mas nem sempre. Às vezes, profaníssimos.
Josué rezou suas orações, benzeu-se, beijou a medalhinha e entregou-se à volúpia daquele negócio com Vilma.
Agro negócio de verdade!
(Texto publicado, originalmente, em 2015, na Carta Capital e no GGN)
LÁ PRAS BANDAS DO SERTÃO MINEIRO
O carro de som passou tocando as músicas que viriam com a dupla, naquele show de sábado à noite. O pessoal da cidadezinha mineira agradou daquilo, prestou atenção na hora e se animou a ir. Era festa de São João, quer coisa melhor, sô.
O cavaleiro moreno de pele lisa, sem pelos, apeou do cavalo, pediu a margosa no butiquim e garrou desejo de ir. Deu um vorteio pela praça, reparou numa casa mais antiga, mas fechada. Paixonou com ela, com a casa. Tinha um ímã nela, ficou garrado na casa. Subiu no cavalo, galopou pros altos e ficou de lá, com a garrafa de pinga, o bichão amarrado na árvore e a vontade de ver aquelas janela tudo aberta.
Aguardou mais de hora, só dali, bebeno e olhano, bebeno e olhano, assuntano. Aí foi que deu magia, porque alguém abriu as janela tudo uai, mas de súbito. Nem deu pra ver quem era, ou fosse efeito da margosa o encantado daquilo. Vai sabê – ruminou o moreno.
Tomou finura com coragem e foi no cavalo lá pra pertin da casa das janela azul. Fosse ver uma moça bonita, quem sabe – convidava ela pra dançar no coreto, depois do show da noite de sábado. Fosse ver. Foi.
O traçado estava destino – num soslaio refugo do pensamento – olhou na horinha e a moça endereçada surgiu rindo, olhou prazenteira e ele lhe acenou. Falou nada, deixou que ela entendesse.
No sábado se imantaram foi é muito. Depois de tudo acabado, do show, do povo se indo, inda dançou com ela, na friagem do coreto, encharcado de pinga e cerveja. Dançaram no coreto, até não poder mais.
Eita, que aquela casa tinha muita lindeza dentro, sô.
Pede boca um olhar Pede boca um aceno Pede boca um sinal de Fogo. Pede boca uma aceitação Pede boca um sorriso, uma gargalhada Pede boca uma afirmação, uma confirmação. Pede boca um gorjeio de canarinho da terra. Pede boca um gorjeio de sabiá.
CHOVENDO
Primeiro, sons de gotas Depois, cheiro de água na terra Agora, na sacada, vendo a precipitação dos pingos. entorno meu rosto por eles para que me lavem dores, para que me limpem do sangue, para que me purifiquem com o prazer. Nesse mesmo céu há pouco havia estrelas. Agora, entreguei a ele o meu coração.
INVERNOS
Quantos invernos cumprirão uma existência? Quantos dias de chuva e de bonança comporão uma existência? Quantas luas serão suficientes para um grito de êxtase e felicidade? Quantas raivas, dúvidas, indecisões e tropeços antecederão um beijo? Quantas falsas interpretações dos sinais emitidos pelos ventos, quantas incorretas leituras de sinais de fumaça, quantas incompreensíveis decodificações de letras e números quantas indecifráveis frases serão culpadas por improváveis leituras de estrelas?
é prata mas é ouro é fogo mas é nuvem é tempero mas é sussurro é sangue mas é infecção é fala mas cala é falo mas é de fato é sal mas é açúcar é flor mas quer o beija-flor é encontro mas quer a busca é cego mas é sério é ida mas quer volta é antes mas quer depois é hoje mas foi ontem é hoje mas quer amanhãs é noite mas quer manhãs é fogueira é perfume é comparação é metáfora
A estrada de ferro chegou à cidade de Barbacena em 1880 e mudou a economia local, trazendo a modernidade. O vídeo mostra como as estações da cidade estão hoje; conta detalhes da criação de uma estação próxima ao então hospital Colônia, chamada Estação Sanatório; e também traz uma curiosidade sobre o poeta brasileiro Cruz e Souza, que morreu a caminho de Barbacena.
(O vídeo aponta como se pode e se deve RECRIAR aquilo que é MEMÓRIA da coletividade.) Contrariamente a isso, na semana passada, na calada da noite, foi destruída a ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE ANTONIO CARLOS, Sá Fortes, MG. Sem qualquer intervenção federal para sua recuperação, e sem qualquer interesse da empresa que adquiriu a malha ferroviária da EFOM, há anos, apenas para transporte de carga. Terrível constatação, nem foi possível transformá-la em equipamento cultural.
1ª viagem da EFOM (Estrada de Ferro Oeste de Minas), 30 de setembro de 1880(Sem crédito)
TREM DE CARGA
Nos dormentes, vagões vazios dormem solitários de vozes risos abraços beijos. Despedidas ausentes chegadas ausentes encontros e reencontros ausentes.
Carga pesada fantasma que apita chegadas partidas sem paradas sem estações sentimentais sem coloridos de saias e calças roçantes nos corpos sem cheiro de corpos roçando os sentidos sem massa de almas desejos súplicas. Vagões de carga apenas suportando o peso das remessas diárias, eternamente.
Tela do pintor e arquiteto maranhense Ricardo Martins – 1985Tela de artesão, Embu das Artes, SP – 1974Tela de artesão, Pelourinho, Salvador, 2003
DIA DA CRIAÇÃO
O chão a terra o céu elementos primeiros elementos sólidos alimentos físicos. A palavra a voz a vez elementos seguintes elementos consoantes alimentos constantes. A luz a cor a pele do gosto do molho do dorso encantamentos de elementos encantamentos em tempos encantamentos em espaços. Passos vozes internas em cores vozes internas em versos
Leitura em 1982
PROMETEU E A CRIAÇÃO
criar cri-ar no ar ser e estar revolver o caos re-criar o ser revolver os caos re-criar o estar garimpar os espaços vãos peneirar as camadas diárias re-constituir as vísceras re-elaborar os rumos re-viver no húmus seme-ar o broto cuidar do novo re-criar Prometeu ter coragem de criar-se ter audácia para recriar-se ser e estar revolver monturos adubar conceitos e cores flores e perfumes criar re-criar no ar
Leitura em 1978”Nós” não existe, mas é composto de ”Eu” e ”Tu”; é uma fronteira sempre móvel onde duas pessoas se encontram. E quando há encontro, então eu me transformo e você também se transforma” (Perls, SP, inverno de 1978)
PERTINÊNCIA: Durante décadas trabalhei a criatividade com alunos, com amigos em geral. Sinto pena daqueles que só copiam e colam o que já vem pronto, tornam-se meros copistas de obras alheias, não se arriscam a CRIAR e, muitas vezes, por vaidade, arrogância, sem suportarem a exposição e as críticas alheias. Assim, tornam-se improdutivos, para não correrem riscos. Isso se dá nas artes, na criação literária, na arquitetura e, principalmente, nas relações cotidianas. São da turma que copia e cola apenas. Lutei durante toda a minha vida para estimular as pessoas a não serem assim. Que sociedade resultará da falta de CRIATIVIDADE? Que soluções serão propostas? Triste situação.
o céu limpo o alvorecer claro a estrada desenvolta da neblina corre o tempo segue a roda gira a vida
o cavalo trotado o carro de bois gemido a aurora à bico de pena o desenho na tela sem moldura
o sino das seis horas declara a fé do entorno o perfume do sol atrai a cor do café coado ensina
as gentes rumam o róseo ir e vir marcha o peito cheio aspira brisa as pernas ardem em murmúrios
falam com os céus contam aos céus rogam aos céus amor por seus semelhantes
RIBANCEIRA
o pó da covardia empalidece a história no limiar da ação o medo ancestral na esteira da glória a fraqueza do caráter os compadrios coloniais a hipocrisia social contumaz o acordo dos cavalheiros semelhantes tudo repete o teatro dos costumes chicote nas mãos do capataz vilões mascarados de mocinhos sinhozinhos em gritos estridentes sangue correndo pernas abaixo dores em chagas sociais jogos de poder desenhando hipocrisias eternas falta coragem de formar fileiras falta coragem de traçar rumos falta coragem de tomar as rédeas a ribanceira espia os declínios a ribanceira não expia as culpas
DESPENHADEIRO
vulgaridades expelidas como ar atrocidades cometidas como rotineiras ações mentiras aos bocadinhos costumeiramente diariamente cruelmente
passos sempre na direção da farsa desfiles de risos burlescos imagens que não correspondem à realidade discursos sem lugar de fala vende-se aquilo que não se tem para vender promessas falsas de homens vendidos temerosos covardes
rostos atrás de cortinas de fumaça falta peito falta hombridade falta veracidade falta humanidade
você calado ficará? você camuflado continuará? não é com você que estão falando? não é de você que estão falando? não é você o atingido?
omissão é covardia silêncio é medo abstenção é cumplicidade
você tem medo de ser história você já é história triste retrato dessa história
”O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo… Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.”
“Uma coisa é por ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias… Tanta gente – dá susto de saber – nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza…”
“Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam.”
“Mire veja: o que é ruim, dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala?”
” Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”
“As pessoas, e as coisas, não são de verdade! E de que é que, a miúde, a gente adverte incertas saudades? Será que, nós todos, as nossas almas já vendemos?”
“A colheita é comum, mas o capinar é sozinho.”
“Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!… O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza…”
Separaram-se amando-se perdidamente. Perdidamente … já não se sabe. Só quem sabe de dois são os dois mesmo.
Filomena, a Filô, era apaixonada pelos diferenciais de Ricardo, o homem amado. Ele, envolto em um Édipo sem fim, de cuidados e superproteção materna, não se fixava em mulher alguma. Mas costumava deixá-las dependuradas nele eternamente – típico exemplo de gestalt interrompida. Seguiria assim, o perfeito amigo, posterior aos namoros e apaixonamentos.
Filô era corpo e pele, caixa amplificadora dos sons do amor. Alto- falantes à mostra, aos ouvidos. Viveram juntos por dois anos, tiveram um filho. Entretanto, o interesse de Ricardo por ela ia diminuindo. Logo depois do filho, ao se aninharem na cama, carinhosamente, aos beijos, abraços e prelúdio, perguntou-lhe se já poderiam ser um. Ao que ela não respondeu com palavras. Ele era assim. Depois foi vendo-a como a santa mãe de seu filho, quase num procedimento semelhante ao dos poetas românticos do século XIX. Isso incomodava demais Filô. Ora, ora, santa é a mãe !
Quando ele viajava a trabalho, junto com sua equipe, ela costumava ouvir das esposas dos outros ”Dou graças a Deus quando o zé viaja, me sinto livre, vou ao shopping, ao cinema, ao cabeleireiro, passeio, sem preocupação nenhuma. Podia ter uma viagem dessas por mês, né”. Filô era só ouvidos, porque, diferentemente, morria de saudades da voz de Ricardo, de sua pele aninhada à dela, de sua voz doce, de suas conversas com ele e de serem um.
Após tentativas de reaproximá-lo em corpo e alma, Filô, agora mãe, resolvera e dissera a ele. ”Quando você voltar dessa viagem a Salvador, vamos conversar sobre nós”. Ele concordou.
Antes disso, já havia conversado com a mãe de Ricardo sobre o assunto. Sentiu-se mexida em brios, como um filho seu, tão jovem, apresentaria tal comportamento. Pediu que marcasse uma consulta com aquele psiquiatra famoso da televisão para Ricardo. Ela pagaria. Foi. O psiquiatra disse – segundo ele – que todos os grandes personagens da literatura, por exemplo, tinham amor por suas musas e não tesão físico. Isso seria de menor importância, citando diversos exemplos. Isso serviu de álibi amoroso para o Ricardo de Filô. Era o vamos deixar como está pra ver como é que fica.
Filomena encheu-se de coragem e pediu que ele fosse embora. Sentia-se muito mal, humilhada mesmo, com seu desinteresse. Antes, batalhara tanto para tê-la, e ela resistira em nome de uma continuidade, eram tão amigos, tinham tantas identidades descobertas … depois de tudo aquilo, agora o desinteresse. Não. Inaceitável. Separaram-se.
Ricardo mudou-se para um prédio na mesma rua, dois quarteirões acima, no mesmo lado. Afirmava que com menino pequeno era bom ficarem próximos. Um novo terapeuta lhe teria dito ‘‘Pra que tantos gastos, entra um pela sala; outro, pela cozinha e estamos conversados” – ironizando a escolha de endereço de Ricardo. Pois é.
A cada fim de semana uma namorada nova, linda, mais jovem que Filô, o esperava no carro, enquanto ele subia para buscar o menino. Ela olhava da janela o carro sumindo, sumindo, levando sua cria e a namorada da vez. Assim seria ainda por alguns anos.
Agora, aquele bilhete, aqueles versos, aquele poema, deixado na portaria do prédio, em envelope aberto, no qual se lia apenas o número de seu apartamento. Pareciam letras femininas.
Perdi
” Perdi as folhas e os escritos, perdi o poema que escrevi à pouco, perdi a vontade de rescrever, perdi as nuvens que não chegaram e os sonhos que ainda não sonhei, perdi o sono que não encontrei e perdi a certeza de que sonhei. De entre todas as loucuras do mundo apenas a minha é sã, nesta liberdade condicional que me atribuíram sem julgamento, julgo escrever sem fundamento o que a alma vomita, porque sentir eu sinto, e viver nisso minto, não sei se vivo ou se morto, sei que eu sou, mesmo que não esteja, embriaga-me seriamente saber que me amas, ainda que eu te ame sem reciprocidade, amamo-nos, ainda sem nos somarmos, antes de nos dividirmos, na impossibilidade física de nos multiplicarmos… Que venha o sono, ou a loucura de o dormir!”
Ah, o amor, esse carrasco que fazia Filô chorar todas as noites, imaginando os beijos, os abraços e o sexo que Ricardo tinha com todas aquelas namoradas de ocasião.
Certa vez perguntou a ele se fazia AMOR com elas naquele colchão grandão, sob medida, que ambos haviam mandado fazer pra eles (Ricardo era muito alto), e se ele as chamava de ”marida” também. Ele riu, a abraçou, aconchegou-lhe a cabeça no peito e completou ”Cada relacionamento tem suas coisas particulares. Esqueça isso”.
Filomena, a muito amada, já diziam gregos e troianos.
CORPOS
nus eram uns nus eram outros sem nomes sem restos sem rostos sem máscaras sem mitos sem metas sem mesmos
tronco membros cabeça membros tronco cabeça
tronco e membros membros e tronco
sinfonias
GESTOS
de espasmos de espaços de espécie de epicentros de ex-pontes de ex-pulsos de ex-braços de ex-ventre de espasmos de expulsos
DAS DORES
Das Dores pinga dores lágrimas e lamentos. Das Dores verte sangue pus fedores. Das Dores amarga manhãs tardes noites na clausura de subidas e descidas em companhia solene de anjos, serafins e querubins. Das Dores entrega sua lira aos deuses na esperança de que pousem em sua janela, devolvendo-lhe luz, cor e o perfume dos dias.
MARIA
Bebe veneno no frio come veneno no calor cheira veneno no quintal olha a lua fala com as estrelas. Chora com as ondas soluça com as serras engasga com o sol. descama com a fumaça. Sofre com incertezas emagrece com torpezas engorda com durezas desfaz-se em friezas. Maria faz travessias na garupa do cavalo torpe que lhe encilha a alma.
O texto do bilhete é do poeta português Alberto Cuddel
Rita grita Rita ama Rita briga Rita vibra Rita vai, Rita pula, Rita dança Rita brilha Rita lança Rita ama Rita embarriga Rita vai, Rita vem Rita no sim Rita no não Rita embala os dias Rita embala baladas nas noites Rita incendeia as madrugadas Rita, Rita, Rita Rita grita Rita faz careta Rita sapateia nas hipocrisias Rita apita caretices Rita colore vidas Rita, Rita, Rita Rita ali, aqui, em qualquer lugar
VOU
Querer voar o mundo querer conhecer o mundo querer outros mundos
Ir-se. Voar.
Estar, descer, subir, cair, voar. Novidades de véspera. Novidades de hoje. Novidades de amanhãs. Arriscar-se no ar, em terra, em corações.
Voar é preciso. Voar é urgente.
VEREDAS
Meu corpo espera abraçar e ser em ti. Voe que te colho com minhas mãos como colho teus cenários e escrevo-te palavras.
Por quê, homem alado? Porque é de púrpura a cor do meu vestido.
ASAS
Tinha asas internas Ensinava outros a voar Esquadrinhava os céus, calculava imprevistos, equacionava soluções Tinha enorme prazer em vê-los em asas indo, indo, indo …
Tinhas asas internas Aguardava um voo duplo Nunca soube bater asas solitariamente Dizia que era como se o céu estivesse sempre nublado, sem vento, sem cor.
Preferia ensinar a voar. Aguardava por um voo incomum
NO RISCO DE VOAR
É a alegria que infla sua vela É a alegria que estufa sua expectativa É a alegria que enfuna seu peito. É o deslumbramento de ir, ver, encontrar, voar. É ter força nas pernas, vigor nos braços e movimento de quadril
É tudo que precisará. É tudo que arriscará. É tudo que tentará.
NOVO
Ei, vem aqui perto vem ouve o que quero te segredar vem, ouve É novo de novo
Vem Agora corre comigo agora ri comigo agora pega essa chuva forte comigo
Vem Anda comigo nos trilhos do trem Vem Você prometeu Vem Me faz rir com gracejos, trocadilhos e chistes Vem Faz verso, faz prosa Faz música, faz rio, faz ponte, faz trem Vem Me faz VIVER Vem, por favor, vem.
Vem, meu ano novo Vem, meu novo horizonte Vem, meu belo horizonte.
Eduardo Salvitti na batera, quebrando tudo.
ENSAIANDO O VOO
Tem as cordas nas mãos Tem as imagens no pensamento Tem as palavras no coração Tem a chance do voo na imensidão. Prepara ferramentas, paramentos, coragem. Vai rumo ao prazer. correndo todos os riscos.
VERSEJAR SEM LÁGRIMAS
Capaz de rir capaz de gozar capaz de flutuar capaz de ouvir e ser ouvida capaz de beber vinho e rir muito capaz de ver o mar em noite calma capaz de sentir vento quente nos cabelos capaz de ver a linda lua cheia de inverno capaz de sentir o fascínio do olhar varão capaz de ser feliz.
OUSADIAS
Com os dias passando, assim correndo, há que se correr também, há urgência em tudo. Corro pra visitar aquelas cachoeiras nunca tocadas corro para beber água gelada de serras amanhecidas corro para falar “eu te amos” aos que nunca o ouviram de mim corro para cozinhar delícias e, em comunhão, ofertar aos queridos aliados corro para beber sabores que nunca experimentei por impossibilidades várias corro para escrever letras, sílabas e linhas anoitecidas, enquanto ainda consigo andar ver falar ler respirar me encantar.
BAÚ FLORIDO
Tempos que vão tempos que vêm tempos que se guardam em baús de flores.
Quando as estações são sem flores, abrem-se as histórias, perfuma-se o ar com elas de novo, sorvem-se horas, dias, meses, anos encantados. Depois, fecha-se o baú e segue-se porque aquela bagagem estava repleta de fragrâncias.
Dedicatória: Ao meu ex-aluno Eduardo Salvitti, menino-homem, que cresceu, cresceu e acabou o gigante batera quebrando tudo junto com a Rita. Salve, nunca me esqueço de seu olhar doce e de seus olhinhos claros. Beijo
Poesias: Odonir Oliveira (escritas em 2016)
Fotos de arquivo pessoal – (A última é do Eduardo Salvitti)