Vidas passadas: Campo Geral

Canal: NOVA ESCOLA

Como meu amigo Jorge, também fui seduzida pelas leituras – meu refúgio de um mundo com o qual quase nunca eu concordava – Guimarães Rosa foi meu encanto na idade madura, em suas obras bebi o mundo e me embriaguei com ele sempre. Aqui alguns trechos de Campo Geral, uma paixão.

De MIGUILIM e MUTUM

Um certo Miguilim, morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais, mas num covoão em trecho de matas, terra preta, pé de serra. Miguilim tinha oito anos. Quando completara sete, havia saído dali, pela primeira vez: o tio Terêz levou-o a cavalo, à frente da sela, para ser crismado no Sucuriju, por onde o bispo passava. Da viagem, que durou dias, ele guardara aturdidas lembranças, embaraçadas em sua cabecinha. De uma, nunca pode esquecer: alguém, que já estivera no Mutum, tinha dito: – ‘É um lugar bonito, entre morro e morro, com muita pedreira e muito mato, distante de qualquer parte; e lá chove sempre…’

(GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 27).

“Quando voltou para casa, seu maior pensamento era que tinha a boa notícia para dar à mãe: o que o homem tinha falado – que o Mutum era lugar bonito… A mãe, quando ouvisse essa certeza, havia de se alegrar, ficava consolada. Era um presente; e a ideia de poder trazê-lo desse jeito de cor, como uma salvação, deixava-o febrilaté nas pernas. Tão grave, grande, que nem o quis dizer à mãe na presença dos outros, mas insofria por ter de esperar; e assim que pôde estar com ela só, abraçou-se a seu pescoço e contou-lhe, estremecido, aquela revelação. A mãe não lhe deu valor nenhum, mas mirou triste e apontou o morro; dizia – ‘Estou sempre pensando que lá por detrás dele acontecem outras coisas, que o morro está tapando de mim, e que eu nunca hei de poder ver… ‘Era a primeira vez que a mãe falava com ele um assunto todo sério. No fundo de seu coração, ele não podia, porém, concordar, por mais que gostasse dela: e achava que o moço que tinha falado aquilo era que estava com a razão. Não porque ele mesmo Miguilim visse beleza no Mutum – nem ele sabia distinguir o que era um lugar bonito e um lugar feio. Mas só pela maneira como o moço tinha falado: de longe, de leve, sem interesse nenhum; e pelo modo contrário de sua mãe – agradava de calundu e espalhando suspiros, lastimosa. No começo de tudo, tinha um erro – Miguilim conhecia, pouco entendendo. Entretanto, a mata, ali perto, quase preta, verde-escura, punha-lhe medo.

 (GUIMARÃES ROSA, 2001, p. 28-29).

“E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora. Olhou os matos escuros de cima do morro, aqui a casa, a cerca de feijão-bravo e são-caetano; o céu, o curral, o quintal; os olhos redondos e os vidros altos da manhã. Olhou mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão. O verde dos buritis na primeira vereda. O Mutum era bonito! Agora ele sabia

“Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso o encarava. Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo da vista? (…) Miguilim espremia os olhos. (…) Este nosso rapazinho tem a vista curta. (…) E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. — Olha agora! Miguilim olhou. Nem podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo … (…). Coração batia descompassado.”

Guimarães Rosa, Campo Geral, Manuelzão e Miguilim.

Sobre Guimarães Rosa, leia aqui no blog: “Rosa & rosas” -https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2022/07/10/rosa-rosas/ “O sertão é confusão em grande demasiado sossego” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2021/04/20/o-sertao-e-confusao-em-grande-demasiado-sossego/ “Guimarães Rosa, o médico no escritor” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/12/06/guimaraes-rosa-o-medico-no-escritor/ “Bordando Rosa” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2020/06/01/bordando-rosa/ “O sertão é dentro da gente” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2019/10/18/o-sertao-e-dentro-da-gente/ “Guimarães Rosa, mire e veja” –https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/01/21/guimaraes-rosa-mire-e-veja/ “A colheita é comum, mas o capinar é sozinho” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2018/01/21/guimaraes-rosa-mire-e-veja/ “Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/10/19/qualquer-amor-ja-e-um-pouquinho-de-saude-um-descanso-na-loucura-g-rosa/ “O senhor sabe o que é silêncio é a gente demais” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/02/08/o-senhor-sabe-o-que-silencio-e-e-a-gente-mesmo-demais-g-rosa/ “Na terceira margem do rio: a de dentro” – https://poesiasdemaosquesentem.wordpress.com/2017/08/02/na-terceira-margem-do-rio-a-de-dentro/

Fotos de arquivo pessoal

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