Guimarães Rosa, o médico no escritor

Álbum de família de Guimarães Rosa
Guimarães Rosa e a esposa Aracy de Carvalho Guimarães Rosa

“Sim, fui médico, rebelde, soldado. Foram etapas importantes de minha vida, e, a rigor, esta sucessão constitui um paradoxo. Como médico conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência; como soldado, o valor da proximidade da morte …” ( J.G. Rosa)

”João Guimarães Rosa abandonou a Medicina após breves anos de profissão, mas ela jamais se separou dele. Ficou entremeada em seus textos, sempre correndo em sua veia artística. Desde suas primeiras experiências com contos e estrofes, até nos seus últimos escritos, pouco antes de morrer prematuramente, aos 59 anos, com muita constância o médico Rosa sobreviveu na obra do escritor Rosa. De sua epiderme literária, ou seja, da forma como escolhia e agrupava as palavras, à sua carótida poética, ou seja, suas essências e suas crenças, o viés do olhar médico ficou incrustado no cerne da mensagem que deixou para a posteridade. Seu pendor pelo jogo com as palavras, escolhendo sempre as mais adequadas, mesmo que inusitadas, ou inventadas, ficou registrado desde a morte de um colega vitimado pela febre amarela, quando cursava o segundo ano do curso médico. Proferiu então a frase que ficou registrada para sempre: “as pessoas não morrem, ficam encantadas”. Essa fala, quase um cochicho, foi presenciada pelos colegas Alysson de Abreu e Ismael de Faria; e João Rosa, como era conhecido entre os amigos de então, voltaria a usá-la no discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967, portanto, quarenta anos depois. (Rocha, 2002, p. 250), ”em ”O viés médico na literatura de Guimarães Rosa”, de Eugênio Marcos Andrade Goulart

Em 1932, na Revolução Constitucionalista, no confronto entre Minas Gerais e São Paulo, G. Rosa ficou aquartelado em Viçosa, aguardando o momento de seguir para mais uma sangrenta guerra entre irmãos brasileiros, o que felizmente, para ele, não aconteceu.

Juscelino Kubtischek, que era contemporâneo de Rosa na Faculdade de Medicina, em Belo Horizonte, trabalhou durante alguns meses como cirurgião-militar no hospital de campanha em Passa Quatro. JK, pouco depois, deixaria a profissão para se tornar político de grande sucesso e, posteriormente, ficou amigo íntimo de Guimarães Rosa, quando ambos residiram no Rio de Janeiro.

Em 1933, como oficial médico do 9º Batalhão de Infantaria, mudou-se para Barbacena, terra natal de seu sogro. Foi um período de vida mansa de médico de quartel, pois fazia exames de rotina na tropa, discursava nas solenidades e lia muito. Em Barbacena nasceu Agnes, sua segunda filha. Nas inúmeras horas vagas escreveu alguns poemas do livro Magma, o qual, todavia, não permitiu que fosse publicado em vida.

Esmerou-se no estudo de línguas, incluindo o alemão, o russo e o japonês, e já reconhecido pelos companheiros como poliglota, recebeu o estímulo de um colega de Barbacena para se inscrever em um concurso do Itamaraty para a seleção de diplomatas, e deixar a profissão de médico. Viajou para o Rio de
Janeiro, onde prestou concurso em 1934, tendo sido aprovado em segundo lugar, dentre 57 concorrentes.

Finalmente, pôde assumir que tinha alguma incompatibilidade com a prática da Medicina. Expressou claramente isso em carta ao amigo e colega Pedro Moreira Barbosa, datada de 1934 (Palmério, 1973, p. 156-7)

”Fui exercer a Medicina, durante dois anos, em Itaguara (Itaúna). Só lia Medicina. Naquele tempo, quando eu tinha que atender a doentes, montado a cavalo, longe, achava que qualquer coisa que eu lesse fora da Medicina me enfraquecia. Devorava tudo com angústia, voracidade. Se ao atender um doente eu tivesse lido um jornal ou qualquer coisa não médica, tinha a impressão de falta, enfraquecimento. Eu não podia aceitar, por exemplo, que doente meu morresse!”

(em entrevista a Pedro Bloch)

”Não nasci para isso, penso. […] Primeiramente, repugna-me qualquer trabalho material – só posso agir satisfeito no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro, dos subjetivismos. Sou um jogador de xadrez – nunca pude, por exemplo, com o bilhar ou com o futebol…”

Sino Azul (RJ) – 1933 – A NOITE (RJ) – 29/08/1932
Barbacena- 1933 (ano em que Guimarães Rosa viveu na cidade e nela nasceu sua 2ª filha. O pai de sua mulher era de Barbacena
Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa (Rio Negro, 5 de dezembro de 1908 — São Paulo, 28 de fevereiro de 2011) foi uma poliglota brasileira que prestou serviços ao Itamaraty (o Ministério das Relações Exteriores do Brasil), tendo sido agraciada pelo governo de Israel com o título de “Justa entre as Nações”, dado a apenas mais um brasileiro (Souza Dantas), por ter ajudado muitos judeus a entrarem ilegalmente no Brasil durante o governo de Getúlio Vargas.
1949-G. Rosa já diplomata e escritor


O VIÉS MÉDICO

“-Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de
vista? […]
E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com
todo o jeito.
-Olha agora!
Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma
claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as
árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia,
a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas
passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui,
ali meu Deus, tanta coisa, tudo…”

Em “Campo geral“, Miguilim encontrou por acaso um cavaleiro rico, doutor da cidade, que visitava para uma caçada os ermos onde morava, o Mutum (Rosa, 1994, v. 1, p. 540-1)


HANSENÍASE

Reportagem

O trem estancou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário…

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou…

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles…

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo

Socorro…

O trem se pôs em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio…

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem
costas…

Livro Magma, da década de 1930. G. Rosa conviveu com os enfermos de hanseníase e faz referência ao Leprosário de Santa Izabel, em Betim.

“O fazendeiro patrão não saía do quarto, nem recebia
os visitantes, porque tinha uma erupção, umas feridas
feias brotadas no rosto. Seria lepra? Lepra, mal-delázaro, devia de ser, encontrar-se um rico fazendeiro nesse estado não era raridade. Lamentava-se, a doença. O ar ali, era triste, guardado pesado.”

No livro No Urubuquaquá, no Pinhém, no conto “Cara-de bronze”, há também uma citação direta à hanseníase.

“Digo ao senhor: ele tinha medo de estar com o malde-lázaro. Pai dele tinha adoecido disso, e os irmãos dele também, depois e depois, os que eram mais velhos. Lepra – mais não se diz: aí é que o homem lambe a maldição de castigo. Castigo, de quê? Disso é que decerto sucedia um ódio em Sô Candelário. Vivia em fogo de idéia. Lepra demora tempos, retardada no corpo, de repente é que se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de aparecer. Sô Candelário tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a camisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçava a pele, de em sangue se arranhar. E carregava espelhinho na em sangue se arranhar.
E carregava espelhinho na algibeira, nele furtava sempre uma olhada. Danado de tudo. A gente sabia que ele tomava certos remédios – acordava com o propor da aurora, o primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, em poço, para a beira do córrego ia indo, nu, nu, feito perna de jaburu. Aos dava. Hoje, que penso, de todas as pessoas Sô Candelário é o que mais entendo.
As favas fora, ele perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo tempo, do mesmo jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado que mandava mortes, e matava.
Doido, era?
Quem não é, mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele homem, eu estimava. Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo.”

Em Grande sertão: Veredas.

MALÁRIA

Maleita

-“Que frio!… que fri-í-io!…
Que mosquitada brava!…
Estou com a sezão dos três dias…
Ei, Compadre, vamos quentar sol naquela pedra?…”
-“Volta pra casa, Compadre, deixa de bater queixo,
vai cortar a febre
com cachaça com limão…”
-“Você também está tremendo?!…
Que frio!… Tudo treme!…
Olha os pernilongos
zunindo nos meus ouvidos!…
Olha o quinino zunindo
dentro dos meus ouvidos!…
Que frio![…]”

Em Magma.

[…]” esses buracões precipícios – grotão onde cabe o mar, e com tantos enormes degraus de florestas, o rio passa lá no mais meio, oculto no fundo do fundo, só sob o bolo de árvores pretas de tão velhas, que formam mato muito matagal. Isto é um vão. E num vão
desses o senhor fuja de ir descer e ir ver, ainda que não faltem as boas trilhas de descida, no barranco matoso escalavrado, entre as moitarias de xaxim. Ao certo que lá embaixo dá onças – que elas vão parir e amamentar filhos nas sorocas; e anta velhusca moradora, livre de arma de caçador. Mas o que eu falo é por causa da maleita, da pior: febre, ali no oco,
falo é por causa da maleita, da pior: febre, ali no oco, é coisa, é grossa, mesma. Terçã maligna, pega o senhor; a terçã brava, que pode matar perfeito o senhor, antes do prazo de uma semana.”
– em Grande Sertão Veredas

TUBERCULOSE

”Miguilim corria, tinha uma dor de um lado. Esbarrava,nem conseguia ânimo de tomar respiração. Não queria aluir do lugar – a dor devia de ir
embora. Assim instante assim, comecinho dela, ela estava só querendo vindo pousando – então num átimo instante assim, comecinho dela, ela estava só querendo vindo pousando – então num átimo não podia também desistir de nele pousar, e ir embora? Ia. Mas não
adiantava, ele sabia, deu descordo. Já estava héctico. Então, ia morrer, mesmo, o remédio de seo Deográcias não adiantava”.

”-Miguiliiim!…
A Chica gritava dessa forma, feito ela fosse dona dele.
… -Miguilim, vem depressa, Mamãe, Papai tá te
chamando! Seo Deográcias vai te olhar…
Seo Deográcias ria com os dentes desarranjados de fechados, parecia careta cã, e sujo amarelal brotava por toda a cara dele, um espim de uma barba. – “A-há, seu Miguilim, hum… Chega aqui.” Tirava a camisinha.
-“Ahã… Ahã… Está se vendo, o estado deste menino não é p’ra nada-não-senhor, a gente pode se guiar quantas costelinhas Deus deu a ele… Rumo que meu, eu digo: cautelas! Ignorância de curandeiro é que mata, seu Nhô Berno. Um que desvê, descuidou, háde-o! entrou nele a febre. E, é o que digo: p’ra passar a héctico é só facilitar de beirinha, o caso aí maleja… Muito menino se desacude é assim. Mas, tem susto não: com ervas que sei, vai ser em pé um pau, garantia que dou, boto bom!…”
Em Campo Geral.

VARÍOLA

‘Mas, havia uma cruz, e José Malvino contou:
-Aqui foi que enterraram o bexiguento… Isto já faz muito, não é do meu tempo…
O varioloso tinha caído com febre, muito mal, quando passava por aqui. Ia para uma qualquer parte, vindo passava por aqui. Ia para uma qualquer parte, vindo depressa para casa, de volta do sertão. Levaram-no para uma cafua, lá embaixo, num rabo-de-grota. Só uma mulher velha, que já tivera a doença e pois estava imunizada, era quem cuidava dele. E
o homem sofria e delirava, e tinha medo, tinha horror de ficar sozinho. Pedia, chorando, que queria ver gente, outras pessoas, muita gente junta, ainda que fossem estranhos. E então, quando a febre amainou, na melhora pré-agônica, ele conheceu que ia morrer, e implorou que o enterrassem bem à beira da estrada, onde o povo passasse, onde houvesse sempre gente a passar…
-Lugar assombrado! – concluiu José Malvino. ”
– Em Minha gente, Sagarana”

DOENÇAS PSIQUIÁTRICAS

”Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de
água de pia benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe os
praças, determinou o desbando do povo, baldearam a moça para o hospício dos doidos, na capital, diz-se
que lá ela foi cativa de comer, por armagem de sonda.
Tinham o direito?”


”Assim a eles eu disse. Tanto enquanto riam, apreciando me ouvir, eu contei a estória de um rapaz
enlouquecido devagar, nos Aiáis, não longezinho da Vereda-da-Aldeia: o qual não queria adormecer, por
um súbito medo que nele deu, de que de alguma noite pudesse não saber mais como se acordar outra vez, e
no inteiro de seu sono restasse preso.”


”Pior não estive; mas, eu, de mim, sei. Todos, de em antes, me davam por normal, conforme eu era, e
agora, instantantemente, de dia em dia eu ia ficando demudado. Com uma raiva, espalhada em tudo,
frouxa nervosia. – “É do fígado…” – me diziam. Dormia pouco, com esforços. Nessas horas da noite, em que
eu restava acordado, minha cabeça estava cheia de ideias. Eu pensava, como pensava, como o quem-quem remexe no esterco das vacas. Tudo o que me ivinha, era só entreter um planejado. Feito num traslo copiado de sonho, eu preparava os distritos daquilo, que, no começo achei que era fantasia; mas que, com
o seguido dos dias, se encorpava, e ia tomando conta do meu juízo: aquele projeto queria ser e ação! E, o
que era, eu ainda não digo, mais retardo de relatar.
Coisa cravada. Nela eu pensava, ansiado ou em brando, como a água das beiras do rio finge que volta para
trás, como a baba do boi cai em tantos sete fios.”
Em Grande Sertão: Veredas

Leia também aqui no blog:

“Bordando Rosa”

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O sertão é dentro da gente”

“O sertão é dentro da gente”

Guimarães Rosa, mire e veja

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”A colheita é comum, mas o capinar é sozinho”

“A colheita é comum, mas o capinar é sozinho”, G. Rosa

‘Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”

“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura” G. Rosa

”O senhor sabe o que é silêncio é a gente demais”

“O senhor sabe o que silêncio é? É a gente mesmo, demais”, G. Rosa

Na terceira margem do rio: a de dentro

(N)A terceira margem do rio: a de dentro

Fragmentos de obras de Guimarães Rosa. Leia a íntegra em: ‘O viés médico na literatura de Guimarães Rosa”, de Eugênio Marcos Andrade  Goulart, em PDF.

Fotos do Facebook BárbarasCenas e do Registros de Barbacena

Vídeo: Canal Fernando Graça

11 comentários sobre “Guimarães Rosa, o médico no escritor

  1. Você tem feito um trabalho espetacular… Deveria ser contratada pela Prefeitura de Barbacena para organizar, escrever, recolher, memórias e histórias dos moradores ilustres e não ilustres da cidade. Quanta riqueza cultural em seus posts. Parabéns.

    PS: A Colônia Santa Izabel, no bairro Citrolândia, em Betim, desde sua criação foi acompanhada pelos frades franciscanos da Província de Santa Cruz. Em 1991, em meu encontro vocacional, visitei a Colônia e os pavilhões… Esta visita foi crucial para eu conhecer a relação que São Francisco de Assis tinha com a lepra e a importância desta antes de sua conversão no séc. XIII. Em 1998, quando noviço, fiz estágio de 20 dias na Colônia e em 1999, trabalhei por ano na Colônia e adjacências (bairros de periferia com mais de 60 mil habitantes). Uma destas comunidades já chegou a ter o IDH mais baixo de Minas.

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      1. Receio sempre, pelo fato, vejo isso em minha família aí de Barbacena, mas, também, do Paraná, por nosso povo ser tão relegado às sua luta pela sobrevivência e não poder ou mesmo quando pode, não saber preservar, valorizar sua própria história e cultura.

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  2. É a política de não se fazer conhecer para não se poder defender. Só se defende aquilo que se conhece e se valoriza. Mas o POVO é quem menos tem culpas disso e nisso, sabe-se bem. Existem políticas públicas excelentes e ”baratas” para se levar cultura à população. Mas é preciso haver VONTADE POLÍTICA para isso.

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